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Controle judicial de políticas
públicas é medida democrática

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26 de outubro de 2015, 7h32

O Supremo Tribunal Federal decidiu, recentemente, que o Poder Judiciário deve controlar a omissão do Poder Executivo no que diz respeito à realização de obras em estabelecimento prisional (RE 592.581-RS), fixando a seguinte tese: “É lícito ao Judiciário impor à Administração Pública obrigação de fazer, consistente na promoção de medidas ou na execução de obras emergenciais em estabelecimentos prisionais para dar efetividade ao postulado da dignidade da pessoa humana e assegurar aos detentos o respeito à sua integridade física e moral, nos termos do que preceitua o art. 5º, (inciso XLIV) da Constituição Federal, não sendo oponível à decisão o argumento da reserva do possível nem o princípio da separação de poderes”.

Tratou-se de Recurso Extraordinário interposto pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul contra acórdão do Tribunal Estadual, que entendeu que ordem para realização de obras constituiria indevida invasão de campo decisório reservado à Administração Pública, não obstante o reconhecimento da precariedade das condições às quais estão submetidos os detentos, com evidente violação de sua integridade física e moral.

A questão foi assim resumida pelo ministro relator, Ricardo Lewandowski: considerando a situação precária em que se encontram as prisões brasileiras e a delicada situação orçamentária do país, poderia o Poder Judiciário determinar ações para concretizar, com relação aos presos, o princípio da dignidade humana e os direitos que a Constituição Federal lhe garante, em especial o constante do art. 5º, XLIX?

A resposta foi positiva e a fundamentação, extensa, apoia-se em quatro eixos: (a) a dignidade da pessoa humana, como um dos pilares do Estado Democrático de Direito, a determinar limites à atuação do Estado e de seus agentes; (b) o princípio da inafastabilidade da jurisdição; (c) a eficácia dos direitos fundamentais dos detentos, que constaria, também, do arcabouço infraconstitucional, inclusive internacional, tudo a exigir a pronta intervenção do Poder Judiciário para a recomposição da ordem jurídica violada e (d) a não aplicação da teoria da reserva do possível.

Então, segundo apontou o ministro Lewandowski, não se cuidaria de “implementação direta, pelo Judiciário, de políticas públicas, amparadas em normas programáticas, supostamente abrigadas na Carta Magna, em alegada ofensa ao princípio da reserva do possível. Ao revés, trata-se do cumprimento da obrigação mais elementar deste Poder que é justamente a de dar concreção aos direitos fundamentais, regulamentares e internacionais”.

Quanto aos limites da atuação jurisdicional, consta deste voto que, embora não seja possível aos magistrados substituir os critérios do administrador pelos próprios, é de rigor a atuação naquelas situações em que se evidencie um não fazer comissivo ou omissivo por parte das autoridades estatais que coloque em risco, de maneira grave e iminente, os direitos dos jurisdicionados.

Como se constata, houve a análise dos, usualmente, três apontados limites ao controle judicial das políticas públicas: o princípio da separação dos poderes, a discricionariedade administrativa e a denominada reserva do possível. A eles, a Suprema Corte privilegiou a dignidade da pessoa humana, a eficácia dos direitos constitucionais e o princípio da inafastabilidade da jurisdição.

Com isto, dá-se mais um passo importante na luta para a concretização dos direitos e para o controle judicial de políticas públicas, deixando de render vassalagem à afirmação de falta de verbas e da teoria da reserva do possível, gestada no direito alemão e que não teve, lá, o conteúdo que no Brasil vem sendo defendido.

O Estado, amiúde, afirma que a intervenção judicial em matéria de políticas públicas ofende o princípio da separação de poderes, uma vez que competiria apenas ao Poder Executivo a decisão acerca da implementação, ou não, de tais direitos e, ainda, da forma como esta implementação seria feita, vale dizer, o caráter discricionário das escolhas feitas. Este entendimento não esconde o vezo autoritário e a concepção da separação de poderes como garantia, não da liberdade, mas, sim, daquele que está exercendo o poder. Lembre-se que o princípio da separação de poderes foi desenvolvido como um mecanismo do exercício controlado do poder que, assim, não serve para gáudio de seus exercentes.

Por outro lado, a execução de políticas públicas implica, em regra, recursos públicos, muitas vezes de monta.  Mas não apenas recursos públicos. Demanda também vontade política e eficiência na gerência destes recursos.

Nesse passo deve ser lembrado, como caso de pouca eficiência, estudo realizado pelo Banco Mundial abrangendo vinte anos do Sistema Unificado de Saúde – SUS, no Brasil, objeto de notícia veiculada no jornal Folha de S. Paulo, em 9 de dezembro de 2013 (pág. C1, caderno Cotidiano): “Falta mais eficiência ao SUS do que verba, afirma estudo”.  Consta ali que não obstante o Brasil gaste, em ações e serviços de saúde, cerca de 3,8% do PIB, seria possível fazer mais e melhor com o mesmo orçamento. O estudo aponta, como exemplo, a baixa eficiência da rede hospitalar, que poderia ter uma produção três vezes superior à atual, com o mesmo nível de insumos: “Mais da metade dos hospitais brasileiros (65%) são pequenas unidades, com menos de 50 leitos — a literatura internacional aponta que, para ser eficiente, é preciso ter acima de cem leitos. Nessas instituições, leitos e salas cirúrgicas estão subutilizados”.

Assim, embora seja verdadeiro que a execução de políticas públicas demanda recursos, não menos verdadeiro é que a gerência dos recursos financeiros pelo Estado deixa muito a desejar em termos de eficiência, de sorte que não se há que pretender que o indivíduo arque com deficiências estatais, especialmente à vista do princípio da eficiência, de estatura constitucional (art. 37, “caput”).

Outro dado que não se pode desconsiderar é o fenômeno da corrupção, que acaba por desviar os recursos dos cofres públicos e comprometer o atingimento, pelo Estado, de seus fins.

Embora a corrupção não seja um fenômeno exclusivamente brasileiro, ocorrendo em outros países, desenvolvidos ou não, não se negar que no Brasil esta praga está presente de forma muito intensa. Basta ler os noticiários para verificar, lamentavelmente, o grande número de ocorrências desta espécie. Assim, a aceitação, pela mais alta Corte do país, da possibilidade constitucional do controle judicial das políticas públicas merece aplausos.

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