Direito Civil Atual

A metadogmática do Direito Comercial brasileiro (parte 4)

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2 de novembro de 2015, 7h00

Trataremos hoje, depois de termos nos desincumbido, na semana passada, da diferenciação entre o Direito Comercial e ramos do Direito dele aproximadas, das funções do Direito Comercial e, então, para finalizar, concluiremos as nossas reflexões.

III Como o direito comercial deverá cumprir suas funções
1.
Um consenso mínimo acerca do objeto do Direito Comercial é indispensável ao alcance de suas funções. Isso porque da definição do objeto se segue a determinação de conteúdo e de técnicas do Direito Comercial, a partir de um conjunto de princípios próprios, historicamente afirmados em articulação aos princípios gerais do Direito Privado[1].

A definição do conteúdo, do peso e dos métodos de aplicação dos princípios de direito comercial deve se submeter a uma política do Direito clara e democraticamente estabelecida.[2]

2. O Direito Comercial é parte especial do Direito Privado, que se estrutura sobre a autonomia privada e, portanto, na conformação autônomo-privada de relações jurídicas. Disso decorre sua adaptabilidade e a sua capacidade de autogeração, indispensável à disciplina dos fenômenos sempre cambiantes a que se dedica. Quaisquer restrições à autonomia privada, no âmbito do Direito Comercial, alijam-no, mais ou menos, dos seus predicados e da sua capacidade de cumprir suas funções essenciais. Bem por isso, essas restrições somente serão aceitáveis em consequência de um juízo e de uma decisão política, no contexto do processo legislativo. O interprete-judicante, é verdade, também poderá impor restrições à autonomia privada em matéria de direito comercial, mas apenas quando lhe for dado atualizar o conteúdo da norma (e.g., pela definição do conteúdo de conceitos legais indeterminados), ao espírito do momento, para fins de aplicação.[3]

A definição do conteúdo de conceitos legais indeterminados, pelo intérprete-judicante (especialmente pelo magistrado), deve, contudo, submeter-se ao processo sumular vinculante[4] e ao princípio do stare decisis (adaptado à realidade brasileira), ainda mais nos casos em que houver restrição à autonomia privada. Isso porque se trata, nesses casos, de restrição a liberdades fundamentais[5], que todos devem conhecer, saber que os submete, sendo-lhes dado julgar se é aceitável, ou, então, se merece repúdio por meio dos processos democráticos.

3. A criação de normas de Direito Comercial é necessária, para compassar os interesses de intervenção estatal na economia aos sempre cambiantes e crescentemente complexos fenômenos que se quer disciplinar. A produção normativa em matéria de Direito Comercial, que sempre tem adiante de si o fenômeno regulado (mais ágil e disposto a mudanças), pode ser prolífica, por vezes desenfreada.

É impossível, em vista de céleres e constantes transformações socioeconômicas (que atingem o objeto do Direito Comercial em um contexto de hipercomplexidade[6]), conceber um documento legislativo – um “código global” –, como o idealizou uma metadogmática oitocentista[7]. Mas é plausível, e pode ser de todo conveniente, a adoção de um “código central”, cuja função é prover sistematicidade e garantias de coerência interna à matriz regulatória do direito comercial.[8]

No Brasil, onde prevalece uma profunda assimetria de informação e de formação jurídica, códigos centrais são salutares, como repertório do direito aplicável, sem o que se arrisca perder o Direito em um canto do ordenamento, nos seus pontos cegos ou por conta de recorrentes antinomias. A esse código central se conecta, com maior coerência, a legislação especial, projetada a partir de um paradigma principiológico.

4. Não menos importante é a definição do conteúdo do direito comercial. O legislador não pode errar. Quando o legislador erra, a lei vige e a comunidade administrada padece.

A nossa dogmática do Direito Comercial deve atender as conveniências da política do direito e as necessidades brasileiras, sempre compassada à boa técnica, que se constrói a partir da melhor doutrina, mas, sobretudo, da formação de uma cultura, no seio da comunidade jurídica, em meio à dialética reflexiva dos debates.

IV Conclusões
1.
O Direito Comercial é o “Direito Privado externo da empresa”, que caracteriza uma rama autônoma e especial, contida pelo direito privado.

2. O Direito Comercial disciplina o exercício da atividade empresarial e, excepcionalmente, a sua organização não societária. A disciplina da organização não societária da empresa é função precária do Direito Comercial, que decorre, o mais das vezes, da categorização imprópria de formas não contratuais por meio do contrato.

3. O Direito Comercial se distingue do Direito Civil, em razão das suas próprias funções, mas, sobretudo, em vista dos fenômenos que disciplina.

4. Devem ser definidos princípios de direito comercial, especialmente no que concerne o seu conteúdo, o seu âmbito e a sua aplicação, sob uma política do Direito clara e democraticamente estabelecida.

5. As limitações ao principio da autonomia privada devem se submeter ao processo legislativo, sem que decorram da atuação do intérprete-judicante, à exceção das hipóteses de afirmação do conteúdo de conceitos jurídicos indeterminados.

6. A afirmação do conteúdo de conceitos jurídicos indeterminados deve sujeitar-se a processo sumular vinculante.

7. Devem ser identificadas categorias essenciais do direito comercial, sempre em observância à feição dos fenômenos disciplinados, definindo-se as hipóteses e as regras para a sua articulação com categorias essenciais do Direito Civil e, no geral, do Direito Privado.

8. É conveniente que o Direito Comercial brasileiro seja disciplinado por um diploma legislativo próprio, um código central, que deve atender as conveniências da política do direito, em atenção às peculiaridades e necessidades brasileiras e expressar a melhor técnica disponível.

* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Coimbra, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).

 


[1] Cf. BYDLINSKI, F. System .., op. cit.; e OPPO. G. “Princìpi”. In. Trattato di Diritto Commerciale. Diretto da Vicenzo Buonocore. Torino: Giappichelli Editore, 2001.

[2] Esse debate é tradicional no âmbito dos direitos fundamentais, e não há motivo para que não se estabeleça em matéria de princípios de direito privado e de direito comercial, no particular. Cf. AFONSO DA SILVA, V. Direitos Fundamentais. Conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2ª edição. São Paulo: Malheiros, 2010.

[3] Essa é a função dos conceitos legais indeterminados (unbestimmte Gesetzbegriffe) Cf. ACHTERBERG, N. Allgemeines Verwaltungsrecht, Heidelberg: C. F. Müller, 1982, §18, III, n. 33.

[4] Cf. art. 103-A da Emenda Constitucional n.º 45/2004.

[5] cf., nesse sentido, OFTINGER, Karl. Die Vertragsfreiheit, Die Freiheit des Bürgers im Schweiz Recht, Zürich, Schulthess, 1948, pp. 315 ss.

[6] Cf. JUNQUEIRA DE AZEVEDO, A. O direito pós-moderno e a codificação. Estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 55.

[7] Cf. VANDERLINDEN, J. Le concept de code en Europe occidendale du XIII au XIX siècle. Essai de définition. Bruxelles: Edition de L’Institut de Sociologie, 1967.

[8] Os Cf. COUTO E SILVA, C. Depoimento prestado à Comissão Especial do Código Civil na Câmara dos Deputados. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Arquivo, Centro de Doc. e Inf., 7 de agosto de 1975.

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