Grande tem sido a repercussão com relação à tal escritura pública de “união estável” poligâmica. Afirma a notícia que “o fundamento jurídico para a formalização desse tipo de união é o mesmo estabelecido na decisão do STF de 2011, ao reconhecer legalmente os casais homossexuais”.
Já tive oportunidade de escrever anteriormente que a confusão entre os dois temas (uniões poligâmicas e união de pessoas do mesmo sexo) decorre de desconhecimento da estrutura do direito de família e do próprio sistema do Código Civil.[2]
No debate sobre o tema, há argumentos no seguinte sentido: se a união estável homoafetiva que não conta com expressa previsão legal é possível, se o casamento homoafetivo[3] também o é, nenhum problema há com a união poligâmica.
Este argumento simplesmente demonstra absoluto desconhecimento do Direito Civil e de suas categorias por parte do interlocutor.
Quando se tratava historicamente de casamento de pessoas do mesmo sexo, à luz dos ensinamentos de Zachariae von Linghental ocorridos em meados do Século XIX, dizia-se que o casamento era inexistente e não inválido.
Note-se: a dualidade de sexos era compreendida como elemento de existência do casamento. A escola da exegese francesa, que tem em Aubry e Rau seus expoentes, afirmava que o ato que não reúne os elementos de fato de sua natureza e sem os quais é logicamente impossível, deve ser considerado não apenas nulo, mas inexistente.[4]
Fato é que a noção jurídica de existência ou não de um instituto sofre alterações conforme a mudança social que se opera.
O Código Civil e a Constituição Federal brasileira não exigem dualidade de sexo como elemento de existência do casamento. Se muda a realidade social, mudam também os elementos de existência do casamento.
Assim, o STJ, ao admitir o casamento de pessoas do mesmo sexo, apenas percebeu que o conceito de casamento se alterou com o passar dos séculos. Não se trata mais de união entre o “homem e a mulher”, mas sim de união entre “pessoas”.
O mesmo não pode se dizer da poligamia escriturada. Não se trata de elemento de existência, mas sim de requisito de validade do negócio jurídico. Havendo causa de proibição legal, seja ela culminada de sanção penal ou civil, a afronta à norma cogente acarreta nulidade absoluta da escritura poligâmica.
A única conclusão que se chega é que e escritura é nula, nos termos do artigo 166, por motivo evidentemente ilícito (contra o direito) e por fraudar norma imperativa que proíbe uniões formais ou informais poligâmicas.
Para que se admitisse o casamento de pessoas do mesmo sexo, não havia necessidade de mudar o Código Civil porque não há artigo que expressamente determine: o casamento se dá entre o homem e a mulher.
Entretanto, para se admitir a poligamia como forma de criação de família, é imprescindível a revogação do CP que a trata como crime e do CC que pune com e sanção maior: nulidade absoluta.
Note-se, portanto, como o desconhecimento de categorias jurídicas pode levar a afirmações que parecem corretas, de acordo com um discurso político-ideológico, mas não se sustentam em termos jurídicos.
O sistema não concebe, com base em um valor secular, a possibilidade de dupla união como forma de constituição de família. Se sempre existiram famílias poligâmicas e isso não se nega, nunca o sistema jurídico brasileiro as admitiu. Muito menos sob a forma de união estável, que como forma de constituição de família, conta com a proteção da Constituição (artigo 226, parágrafo 3º).
Em suma, o próprio Supremo Tribunal Federal já decidiu pela base monogâmica da família quando se deparou com a questão:
“É certo que o atual Código Civil, versa, ao contrário do anterior, de 1916, sobre a união estável, realidade a consubstanciar o núcleo familiar. Entretanto, na previsão, está excepcionada a proteção do Estado quando existente impedimento para o casamento relativamente aos integrantes da união, sendo que se um deles é casado, o estado civil deixa de ser óbice quando verificada a separação de fato. A regra é fruto do texto constitucional e, portanto, não se pode olvidar que, ao falecer, o varão encontrava-se na chefia da família oficial, vivendo com a esposa. O que se percebe é que houve envolvimento forte (…) projetado no tempo – 37 anos – dele surgindo prole numerosa – 9 filhos – mas que não surte efeitos jurídicos ante a ilegitimidade, ante o fato de o companheiro ter mantido casamento, com quem contraíra núpcias e tivera 11 filhos. Abandone-se a tentação de implementar o que poderia ser tido como uma justiça salomônica, porquanto a segurança jurídica pressupõe respeito às balizas legais, à obediência irrestrita às balizas constitucionais. No caso, vislumbrou-se união estável, quando na verdade, verificado simples concubinato, conforme pedagogicamente previsto no art. 1.727 do CC (RE 397.762-8/BA, j. 03/06/2008)”
Há que se ponderar o seguinte: três pessoas podem se dirigir ao Tabelionato de Notas para fazerem uma declaração conjunta. Essa declaração pode ter o seguinte teor: “declaramos que somos todos felizes”; “declaramos que quem achar uma conta bancária em nosso nome no Exterior pode ficar com o dinheiro”[5]; “declaramos que moramos sob o mesmo teto e que mantemos relações sexuais com habitualidade”; “declaramos que todo o patrimônio que adquirirmos nesse período será de propriedade dos três em partes iguais”; “declaramos que ao fim de nossa união haverá pagamento de pensão alimentícia de acordo com a possibilidade de quem paga e a necessidade de quem recebe”. Das declarações acima temos:
— É válida e eficaz a declaração de que todos são felizes. Não cabe ao Tabelionato perquirir a veracidade desta.
— É válida e eficaz a declaração de doação do dinheiro encontrado em eventual conta bancária existente no Exterior, apesar de a promessa de doação não contar com força obrigatória, pois não se pode compelir ninguém a uma liberalidade.
— É válida e eficaz a declaração de sociedade de fato entre três pessoas, como, de resto, o direito das obrigações já admite há milênios.
— É válida e eficaz a declaração de pagamento de alimentos ao fim da relação, pois a vontade é fonte de criação do dever alimentar e não apenas a lei. Se eu quiser, por contrato, obrigar-me a pagar alimentos a duas primas queridas, poderei assumir a obrigação por força da vontade.
Contudo, a escritura pública não é de união estável e não gera efeitos ao Direito de Família:
— Não haverá pagamento de pensão pelo órgão previdenciário ao fim da relação societária (INSS, por exemplo).
— Não haverá dever de pagamento de alimentos nascido da lei, pois de família não se trata (notem que acima mencionei a possibilidade de a vontade criar tal dever em havendo sociedade de fato).
— Não haverá aplicação das regras da sucessão legítima, pois família não há (o que não impede ao trio que, por atos de última vontade individuais, cuide da transmissão de seu patrimônio).
— Não haverá a criação do parentesco por afinidade com os parentes dos outros membros da sociedade de fato (artigo 1.595 do CC) e, portanto, não haverá a incidência dos impedimentos matrimoniais decorrentes deste parentesco.
— Não haverá surgimento de impedimentos políticos decorrentes do parentesco e/ou da conjugalidade.
E para finalizar minhas reflexões vem a pergunta: por que a doutrina que afaga é a mesma que apedreja?
Em matéria contratual, prega parte da doutrina que tem por base a constitucionalização do Direito Civil forte intervenção do Judiciário sobre o conteúdo e eficácia do contrato. A dignidade da pessoa humana tem sido usada sem nenhuma parcimônia em toda e qualquer decisão que se pretende afastar a obrigatoriedade da vontade, para se proteger o mais fraco.
Essa mesma doutrina, afirma, por outro lado, que toda a forma de amor gera família e que, em nome da liberdade constitucional, o Código Civil não pode limitar/restringir as famílias. Em querendo, havendo afeto, família existe para todos os efeitos jurídicos.
A vontade de contratar é desconsiderada, pois a pessoa humana vulnerável e hipossuficiente (termos usados de maneira aleatória e sem precisão conceitual) precisa de proteção, sob pena de se atentar contra sua dignidade. Já no momento de constituição de família, a intervenção do Poder Público é indesejada, ainda que decorra do texto de lei, pois a liberdade constitucional é maior que os outros valores adotados pelo Código Civil e Penal (monogamia, por exemplo).
Duas conclusões então:
1. Estes mesmos autores forçosamente concluirão que a proibição do incesto por meio de impedimentos matrimoniais é igualmente atentatória à liberdade constitucional e que o direito de ser feliz não pode ser limitado por “valores antiquados”. Afinal, se toda forma de afeto gera uma família com todos os efeitos do direito de família, o art. 1.521, com todos os impedimentos, é inconstitucional.
2. A defesa da família homoafetiva e os efeitos jurídicos dela decorrente tem ocorrido em quase todos os países que compõe as Américas, Europa e Oceania. Nos países ditos ocidentais (com exclusão do continente africano), entendeu-se que a discriminação é que impedia o reconhecimento de direitos aos casais homoafetivos. Não há nestes mesmos países debates consistentes em torno da uniões poligâmicas, salvo quando em razão de crença religiosa. No Brasil, o debate ganha ares de vanguarda, que denota um desencontro com os demais países, contra o valor jurídico da monogamia, mas ajuda a vender jornais e escrituras públicas.
Fica minha sugestão aos defensores da poligamia com efeitos jurídicos do direito de família: mudem a lei. Aliás, o novo Código Civil argentino extirpou o dever de fidelidade do rol dos deveres dos cônjuges… Por fim, mesmo, nem sempre aqueles que fazem mais barulho por meio das redes sociais, por engajamento ideológico e não com base no Direito, tem razão em suas proposições e ataques. Mas que fazem uma grande barulho, fazem!
[1] “Rio registra primeira união entre três mulheres”, p. A 22, Metrópole, 18 de outubro de 2015.
[2] Revista do Instituto de Direito Brasileiro, Ano 2, 2013, n. 1. Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
[3] O STJ já admitiu a habilitação para casamento de pessoas do mesmo sexo (REsp 1183378/RS) e o TJ/SP também (Conselho Superior da Magistratura, APELAÇÃO CÍVEL N° 0034412-55.2011.8.26.007).
[4] Silvio Rodrigues, 19ª Ed., Direito de Família, v. 6, Saraiva, 1994, p. 75.
[5] Já houve um político que fez essa declaração. Posteriormente se descobriu que as contas estavam em nomes de pessoas jurídicas e o dinheiro ali depositado decorria de corrupção.