Estado da Economia

A economia na dinâmica do Direito Concorrencial brasileiro

Autor

  • José Maria Arruda de Andrade

    é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da Universidade de São Paulo (USP) livre-docente e doutor pela mesma instituição professor do programa master de pós-graduação em Finanças e Economia da Escola de Economia de São Paulo Fundação Getulio Vargas (FGV EESP) foi secretário-adjunto da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).

25 de outubro de 2015, 7h00

Spacca
Deslocando o tema de meus primeiros textos nesta coluna, até então sobre os gastos tributários indiretos como forma de atuação do Estado sobre a economia, no texto de hoje gostaria de tecer considerações sobre o uso de elementos da ciência econômica no direito concorrencial.

O direito concorrencial brasileiro teve seu fortalecimento institucional, normativo e doutrinário recente, com forte influência de teorizações econômicas norte americanas.

Ao se privilegiar o uso de vocabulário e de técnicas da economia, muitas vezes, o estudo da relação entre economia e direito parece pressupor que exista algo como “a ciência econômica”, um saber com pontos de partida bem estabelecidos e bases científicas consolidadas. As dúvidas, crises e inquietações metodológicas estariam no direito, que precisaria de uma metodologia como a do law and economics para evoluir e produzir melhores resultados, reduzindo suas incertezas[1].

Não à toa Herbert Hovenkamp mencionou que “o mercado das ideias econômicas não é diferente do mercado de outros produtos e serviços. Quando uma demanda surge, alguém tentará supri-la a partir de alguma fonte qualquer”[2], ou seja, as teorias econômicas são desenvolvidas a partir de demandas especificas de suas épocas e também apara confrontar outras teorias, seja por razões puramente metodológicas ou, o que é mais comum, por razões ideológicas e metodológicas.

Essa premissa nos conduz ao entendimento de que a defesa do estudo conjugado entre economia e direito parte de escolhas muito sérias, por vezes negligenciadas: qual teoria jurídica? (positivista clássica?, contemporânea? jusnaturalismo? moralismo jurídico?); qual teoria econômica? (neoclássica? neoschumpeteriana? keynesiana? marxista?). Quem estabelece essas escolhas ou o faz com a certeza do que pretende (conta de chegada) ou atua de forma ingênua.

O debate econômico sobre a evolução das legislações de diversos países e de sua aplicação está longe de ser homogêneo e sequer de passar pelos mesmos pressupostos ou fases. Nos Estados Unidos da América, por exemplo, uma escola que tem, há tempos, despertado certo fascínio em alguns juristas brasileiros é a Escola de Chicago (com ou sem os desdobramentos que justificariam alterar a denominação para “pós-Chicago). Essa escola surge no contexto de reação a uma atuação severa e estrita da legislação antitruste por parte da Corte Supremo daquela nação.

Economistas e juristas desenvolveram uma série de estudos para tornar o direito concorrencial mais técnico, o que, do ponto de vista político, contudo, coincidiu com a ascensão de um grupo conservador de economistas e juristas que, em breve, estaria em várias esferas do Poder, a partir dos governos de Ronald Reagan (“government was the problem and not the solution”) e de George Bush.

A Escola de Chicago teve como fundamento a análise das indústrias com base em sua eficiência produtiva (produzir e distribuir bens econômicos incorrendo no menor volume possível de custos). Robert Bork, um dos juristas centrais da escola, escreveu um importante livro[3] para criticar a jurisprudência das décadas de 1950 e 1960 (Warren Court), lançando a fórmula de que haveria um paradoxo a ser enfrentado: a política antitruste seria para defender a concorrência, porém, tinha como consequência a ineficiência econômica no mercado. Para tanto, defendeu, o autor, a ênfase deveria recair sobre a eficiência econômica (que promoveria a concorrência) e não sobre a política antitruste[4]. Em palavras mais simples, o autor buscou defender a redução do grau de intervencionismo e controle sobre as grandes indústrias. Aos poucos, os postulados e dogmas da escola dominariam a jurisprudência norte-americana da década de 1980.

Com a eficiência econômica alçada a principal objetivo a ser alcançado pelo direito concorrencial e com a sua promessa de bem-estar social e dos consumidores, fica mais difícil opor-se a ela. Com lemas retóricos apelativos, qualquer oposição representa obstáculo de difícil superação: O contrário de eficiente é ineficiente, o de bem-estar do consumidor, mal-estar (prejuízo) do consumidor.

A pior consequência dessa amarração retórica entre eficiência econômica e bem-estar foi deixar em segundo plano as discussões mais técnicas, como grau de intervenção que cada nação deve ter para se desenvolver; a diferença entre crescimento econômico em um país como os Estados Unidos e crescimento econômico em país periférico etc.

A omissão discursiva a objetivos — tais como a existência e proteção da concorrência em si, a proteção às pequenas empresas ou o desenvolvimento econômico com bases redistributivas e sociais — se torna uma omissão não desejável, que deveria passar, inclusive, por um teste de constitucionalidade em cada sistema jurídico, antes de sua proposta de adoção irrefletida. Trata-se, sem dúvida — e esse é um ponto que precisa ser sempre repisado — de um modelo econômico e político normativo a defender a menor intervenção estatal sobre a atividade das grandes indústrias.

Isso explica porque se lê tanto por aqui sobre os benefícios teóricos da análise jurídica a partir da eficiência econômica, tanto sobre as benesses de um direito orientado ao bem-estar do consumidor e tão pouco sobre uma teoria baseada nos ganhos de escala e aumento de produção das grandes empresas, que é a verdadeira definição de eficiência econômica como defendida por eles (eficiência produtiva).

O constrangimento científico cresce à medida que se percebe que, muito embora retórica e textualmente, a expressão “bem-estar do consumidor” pareça ter aderência com a defesa do consumidor (final e hipossuficiente) tal como prescrita no direito brasileiro, tal proximidade não passa de mera coincidência dos termos utilizados.

Nesse ponto do texto podemos questionar: se não há uma única teoria ou ciência econômica, qual seria o papel dela na construção do direito concorrencial brasileiro?

Uma possível resposta seria defender que a economia define o conteúdo e o alcance das normas jurídicas aplicadas nas decisões de direito concorrencial (sobretudo do Conselho Administrativo de Defesa Econômica).

Outra, preferível, no nosso entender, o instrumental econômico é utilizado para dar suporte aos elementos fáticos apresentados na argumentação (produção de provas) e até mesmo na teorização (garantia) de porque certos fatos ou premissas podem ser alegados para a conclusão de uma decisão jurídica (por exemplo: a partir de tais elementos fáticos como o grau de redução de custos na produção, espera-se que os agentes econômicos se comportem de tal forma). Isso é uma construção teórica que parte de um dado construído como prova (volume de redução de custos a partir de determinada operação societária). Mas em nenhuma dessas situações (dados fáticos ou teorização sobre eles), a economia seria o fundamento último da decisão jurídica do caso concreto. Essa decisão continua sendo jurídica como a de qualquer outra legislação (afinal, construir o sentido de como um determinado artigo da lei deve ser aplicado ao caso concreto ainda é uma elaboração hermenêutica e argumentativa jurídica, pois o fundamento da decisão ainda será como e se o tal artigo da lei deve ser aplicado).

Isso significa, e isso é importante, que o apoio (fundamento último) deverá ser sempre um texto normativo vigente em nosso ordenamento jurídico e não uma teoria econômica (ou moral, jurídica, política) qualquer. A especificidade da doutrina do direito concorrencial como comunidade epistêmica, o seu vocabulário internacional e comum, não a destaca dos demais setores jurídicos.

O desafio do instrumental econômico será o da incessante busca por melhores modelos e simulações, mais realistas, adaptados aos nossos mercados e mais transparentes (expondo os seus pressupostos e delimitações). De outro lado, deveria haver uma pauta de pesquisa empírica que demonstrasse como os agentes econômicos comportaram-se efetivamente, após as simulações que tentaram antecipar suas ações ao longo dos processos que julgaram as operações de concentração econômica.

Daí a nossa conclusão de que a(s) teoria(s) econômica(s) atua(m) mais como meio de provas do que como teoria da decisão (teoria de como deveriam ser as decisões do direito concorrencial brasileiro).

A nossa preocupação — por sorte — não é com a crítica à jurisprudência do Cade (reconhecida por sua qualidade técnica), mas com a explicação teórica doutrinária que se faz acerca do papel da economia no direito concorrencial brasileiro.

Todos aqueles que já ouviram em diversas palestras (ou que já leram algo semelhante) afirmações como: “o direito contribui com a forma jurídica do processo e a economia com o conteúdo”, ou “a concorrência não está definida na Constituição, então, o conteúdo do direito concorrencial brasileiro deve ser buscado nos manuais de economia”, hão de reconhecer a problemática aqui narrada.

A importância da economia não está diminuída só porque o seu papel é o de ser a garantia teórica dos fatos alegados para justificar inicialmente uma decisão concreta, enquanto o direito posto é o apoio (fundamento final, decisivo e imprescindível) que avaliza a decisão construída.

Assim, quando se discute se o direito concorrencial (brasileiro) possui ou deveria possuir algum método específico para a sua aplicação e teorização, a resposta só pode ser negativa. Muito embora se trate de uma especialidade jurídica doutrinária, que estuda as condutas e as estruturas dos agentes econômicos em mercado (o que revela relevante proximidade com o objeto de estudo das ciências econômicas), não há qualquer razão metodológica para dizer que, do ponto de vista hermenêutico ou argumentativo, o direito concorrencial (doutrinário e em sua aplicação por tribunais) devesse ter técnicas próprias e específicas. A questão da autonomia epistemológica de ramos e sub-ramos do direito é uma discussão absolutamente datada.

Tampouco sustenta-se a premissa de que a Análise Econômica do Direito (law and economics) deveria ser o método (ou o principal método) de compreensão do direito concorrencial (brasileiro). A Análise Econômica do Direito tem muito a oferecer aos estudiosos do direito, na qualidade de mais uma das disciplinas propedêuticas, mas não como método de aplicação e orientação normativista e finalística dos aplicadores do direito. Nem mesmo no direito concorrencial.

O estudo panorâmico de law and economics acaba por deixar a desejar na profundidade jurídica de suas propostas e, ao mesmo tempo, na profundidade econômica, já que tem dificuldades (devido ao caráter panorâmico e normativo) de acompanhar inclusive os avanços matemáticos da economia (e de lidar com as outras variantes do próprio pensamento econômico), isso sem contar o esvaziamento das características de ciência social aplicada que marcam o direito.

Além disso, o processo administrativo que regula a atividade do Cade não possui características peculiares em relação ao processo administrativo que regula aplicação do direito estudado por outros ramos do direito. O direito concorrencial, em sua dinâmica processual,  está submetido às mesmas garantias da ampla defesa, do contraditório e da motivação das decisões presentes na Constituição, na legislação processual vigente e na lei que rege o processo administrativo federal.

Nesse sentido, seria incorreto afirmar que o direito prescreve a forma (os procedimentos) do sistema brasileiro de defesa da concorrência e a economia permitiria a definição (ou descoberta) de seu conteúdo.

Em nossos estudos, temos defendido uma ideia de diferente do papel dos construtos da economia no direito concorrencial, a privilegiar:

(i) um uso ainda mais intenso de estudos e modelos econômicos, não engessado, não determinista e não consequencialista (contrário ao discurso normativo da eficiência econômica estática do law and economics metodológico), ou seja, um even more economic approach[5].

(ii) que essa abordagem defende o uso intenso de modelos microeconômicos no campo próprio da teoria das provas e não no da teoria da decisão.

A especificidade da doutrina do direito concorrencial como comunidade epistêmica, o seu vocabulário internacional e comum, não a destaca dos demais setores jurídicos. Decisão jurídica deve ser fundamentada, seja ela proferida por uma autarquia, seja pelo Poder Judiciário. Essa fundamentação é jurídica e deve atender ao dever de fundamentação com base em direito positivado. Trata-se de conquistas importantes do Estado Democrático de Direito, que não precisam ser relativizadas por uma visão conservadora antiestatal qualquer.


[1] Convém registrar que esse tipo de crença na existência de um status evolutivo superior da economia parece ser muito mais de juristas do law and economics do que dos economistas acadêmicos, o que costumo denominar de “paixão pelo saber alheio”.
[2] HOVENKAMP, Herbert. “The Antitrust Movement and the Rise of Industrial Organization” in Texas Law Review, vol. 68, 1989, p. 167.
[3] Robert H. BORK, The Antitrust Paradox: A Policy at War with Itself. New York: The Free Press, 1993.
[4] ELEANOR FOX, décadas após, defenderia a ideia do Paradoxo da Eficiência, em que o antitruste norte-americano, apesar da busca da eficiência, teria gerado como consequência prática, por conta da confiança nas estratégias das firmas dominantes, a proteção do monopólio e do oligopólio e a supressão da inovação tecnológica, o que significou sufocar a própria eficiência do mercado. Ver FOX, Eleanor. The Efficiency Paradox. In: PITOFSKY, ROBERT (Org.). How the Chicago School Overshot the Mark: The Effect of Conservative Economic Analysis on U.S. Antitrust. New York: Oxford University Press, USA, 2008. p. 77.
[5] DREXL, Josef. “Wettbewerbsverfassung”, in Europäisches Verfassungsrecht: theoretische und dogmatische Grundzüge, org. Armin von Bogdandy e Jürgen Bast, Dordrecht [u.a.]: Springer-Lehrbuch, 2009, p. 940) cunhou a expressão even more economic approach para defender o uso mais intensivo da economia, mediante seu aprofundamento (não deixando de lado a importância do papel das instituições e sem olvidar a importância de modelos evolucionistas e abordagens empíricas. Usamos a mesma expressão (Economicização…, p. 189-190) para dar um passo adiante, no sentido de incluir o debate metodológico, declarando que um even more economic approach poderá transformar-se em mais positivismo jurídico contemporâneo e menos consequencialismo ou ativismo econômico-jurídico.

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    é Professor Associado de Direito Econômico e Economia Política da USP, livre-docente em Direito Econômico e doutor em Direito Econômico e Tributário pela USP. Foi pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique, Alemanha.

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