Opinião

Manifesto contra a unificação das carreiras da advocacia pública federal

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

24 de outubro de 2015, 14h29

Sou contra a unificação das carreiras na advocacia pública federal. Além de constrangimentos de ordem constitucional e legal, há razões de ordem histórica, temática, organizacionais, operacionais, logísticas, econômicas, psicológicas e conceituais que fortemente recomendam que se rejeite qualquer iniciativa de unificação. É do que trato neste manifesto de oposição à unificação das carreiras na advocacia pública federal, e o faço como resposta a muitos colegas, alguns de duas décadas, que me cobram uma posição.  

A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional detém assento constitucional, na qualidade de possuidora exclusiva da representação da União na execução de dívida ativa de natureza tributária (parágrafo 3º do artigo 131). Na construção do texto constitucional vigente, o Substitutivo 1, de 26 de agosto de 1987, aventava de uma Procuradoria-Geral da União, transformada em Advocacia-Geral da União, já no projeto B, de 5 de julho de 1988. Em ambas as versões já se definia a PGFN (inicialmente no parágrafo 3º do artigo 137).

Detida consulta às várias formulações de redação pelas quais passou o texto constitucional revela texto que manteve inalterado o desejo do legislador constituinte originário: desde a primeira versão sempre se teve em mente a fixação da PGFN como titular da representação da União, na execução da dívida ativa tributária, o que extensiva e logicamente alcança toda a matéria federal de natureza fiscal.

A desmobilização administrativa do modelo atual, com o escopo de uma carreira única, exige, do ponto de vista da simetria das formas, emenda constitucional de reajuste, com os necessários e decorrentes custos, em todos os sentidos. E todos sabemos que emendas constitucionais, ainda que necessárias para a construção de um direito vivo, muitas vezes não passam de atos de fé: baseiam-se em esperanças e alimentam idiossincrasias. Thomas Jefferson afirmava que as constituições deveriam ser mudadas a cada 25 anos. Isto é, cada geração tem o direito a sua carta de direitos e deveres: nós vivos nos recusamos a ser governados pelos mortos.

Porém, a fidelidade para com a ordem vigente, condição mesma para a estabilidade democrática, nos orienta no sentido de que o mérito constitucional da discussão presente –  unificação –  transcende a contenda corporativa. A Constituição teria que ser mudada, por quem de direito, no espaço próprio e no contexto do rito por ela mesma fixado.

Deve-se levar em conta também disposição contida em lei complementar de regência. A PGFN é órgão administrativamente subordinado ao titular do Ministério da Fazenda, nos exatos termos da Lei Complementar 73, de 10 de fevereiro de 1993 (artigo 12). Eventual medida de unificação demandaria alteração de lei complementar, o que afasta, entre outros, formulação por medida provisória. O titular da Fazenda precisaria de ser ouvido.

O quórum exigido e a articulação política que decorreriam do debate legislativo de construção de um novo modelo capturariam energia que poderia ser dirigida à edificação de arranjos institucionais para resolução de outras demandas, a exemplo do fortalecimento da atuação do procurador, que precisa de um escudo institucional para atuar em igualdade de condições com os outros atores do cenário jurídico e administrativo, a exemplo dos órgãos de controle. O procurador precisa de independência para opinar, na defesa dos interesses públicos e sociais, também tutelados pelo Ministério da Fazenda, ao qual se subordina administrativamente.

Há na PGFN uma unidade temática que a unificação ameaçaria. A eficiência da defesa da União exige especialistas de altíssimo nível, o que decorre da especificidade dos temas fiscais e financeiros, da necessidade do enfrentamento da qualidade da representação judicial de contribuintes em matérias complexas e de grande valor, do refinamento acadêmico dos assuntos tratados, bem como da necessidade da construção de uma massa crítica, que compreenda a tributação no contexto de garantias de direitos fundamentais. Como afirmou conhecido estudioso do direito público (Flávio Galdino), em exuberante dissertação de mestrado: direitos não dão em árvores.

A permeabilidade do direito tributário pelo giro linguístico das teorias de interpretação, bem como, em polo oposto, pelas contribuições da análise econômica do direito e do realismo jurídico, demanda profissional concentrado, especializado, conhecedor da jurisprudência, a par das doutrinas estrangeiras absorvidas pela realidade empírica de nossos tribunais e espaços administrativos. Não há ambiente para o improviso ou para o diletantismo que resultam da migração temática que uma unificação suscitaria. Procuradores da Fazenda Nacional somos peritos em matéria fiscal e financeira.

São exemplos dessa especificidade de atuação, nos termos de lei complementar, a apuração da liquidez e da dívida ativa da União de natureza tributária, inscrevendo-a para fins de cobrança, amigável ou judicial; a representação privativa da União na execução de sua dívida ativa de caráter tributário; o exame prévio da legalidade dos contratos, acordos, ajustes e convênios que interessem ao Ministério da Fazenda, inclusive os referentes à dívida pública externa; a promoção da respectiva rescisão por via administrativa ou judicial; a representação da União nas causas de natureza fiscal.

Essas últimas são definidas por lei complementar, alcançando os tributos de competência da União, inclusive infrações à legislação tributária; os empréstimos compulsórios; a apreensão de mercadorias, nacionais ou estrangeiras; as decisões de órgãos do contencioso administrativo fiscal; os benefícios e as isenções fiscais; os créditos e estímulos fiscais à exportação; a responsabilidade tributária de transportadores e agentes marítimos; bem como todos os incidentes processuais suscitados em ações de natureza fiscal. Compartilhamos uma relação peculiar com a Administração: há de nossa parte, uma inegável relação com o Ministério da Fazenda, em todos os níveis.

A unificação não resultaria em economia de escala. Não há dados, estudos ou conclusões que justifiquem a medida. A acomodação, a alocação e a taxinomia dos integrantes desse exército de advogados públicos de que alguns cogitam fomentará a discussão e o dissenso. Unificados em uma carreira com a qual não nos identificamos viveremos uma algaravia que sugará nossa energia profissional, de algum modo fragmentando nossos ambientes de trabalho.

Há um profundo problema psicológico que a questão também nos coloca. Há uma identificação que nos aproxima (pelo bem ou pelo mal). Contamos com jargão de algum modo próprio. Dividimos histórias e reminiscências. Compartilhamos anedotas. Convivemos com heróis, anti-heróis e com mártires. Construímos um ideário no qual sempre sabemos algo de alguns, muito de outros, e muito –ou pouco– também de nós mesmos. Definimos, em nosso íntimo pensamento, imagens de trabalhadores infatigáveis: sabemos quem são eles, e talvez intimamente avaliamos quem não seriam eles. Nossa percepção comum também nos indica que o ativismo e a atividade não são realidades convergentes. Detemos uma memória comum que nos identifica.

Como toda organização, talvez contemos também com profissionais iluminados, com profissionais que simplesmente cumprem as obrigações, com profissionais obcecados com distintivos políticos, com acadêmicos e teóricos de valor, com zelosos advogados, talvez também com alguns cujos olhos se fixam em outros ambientes, para os quais se preparariam, boa parte do tempo. Ninguém nos engana o tempo todo: sabemos quem é quem; e também não enganamos todos o tempo todo: todos sabem quem somos. E todos somos humanos, com qualidades e defeitos, que precisamos de compreender. Há espaço para que melhoremos.

Um sentimento de identidade gravita em torno da carreira. E ainda que pensemos diferentemente sobre vários assuntos, porque a unanimidade é burra, há um núcleo fundacional que nos serve de amálgama. Essa identidade detém raiz histórica, que não pode ser desprezada. Contida originariamente em um alvará datado de 10 de maio de 1808, regulamentador do funcionamento da Casa de Suplicação, esta identidade radica no Procurador dos Feitos da Coroa.

Agostinho Marques de Perdigão Malheiro (1824-1881) é nosso antepassado mais comum. Autor de um Manual do Procurador dos Feitos da Fazenda Nacional (Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert, 1873, esta já é segunda edição) fixou que o Procurador dos Feitos era o Advogado e representante da Fazenda Nacional. A ele eram também devidos porcentagens e gratificações pelas diligências feitas a bem da Fazenda. Deveria proceder no desempenho de seu cargo com toda a civilidade, decência, boa fé e discrição, próprios de um perfeito Advogado.

Em tempos mais recentes, há notícias de um primeiro concurso, realizado em 1970, quando 27 vagas foram disputadas por 2.370 bacharéis em direito. Leon Frejda Szklarowsky (1933-2011) nos ensinava essas peculiaridades de nossa carreira, cuja memória cultuava, e talvez também por isso com tanta qualidade atuava: foi coautor do projeto que resultou na Lei de Execuções Fiscais, de 1980. Foi um lutador.

Deve-se levar em conta também um juízo de respeito devido àqueles que optaram por uma rota, cujas referências de caminho uma unificação poderia fragilizar. Há procuradores que são egressos de outras carreiras de advocacia pública, e que optaram por um novo caminho, e também por um novo concurso, por intermédio do qual se empossaram em nossos quadros. E há de algum modo direito potestativo de pretensão de continuidade do modelo, ainda que saibamos lição clássica do direito administrativo que nos dá conta da inexistência de direito a regime jurídico.

A rejeição da unificação não implica na rejeição de uma ação unificada. Há um catálogo comum de ação, que exemplifico com questões salariais, com a pauta da liberdade e do fortalecimento das opiniões do parecerista, com o tema da paridade das armas, com o sonho da construção de uma escola da PGFN verdadeiramente centrada na produção acadêmica de excelência, que resulte na qualificação do procurador que se reflita na defesa da União. Precisamos de um amplo diálogo com nossos pares do estrangeiro, o que exige conhecimento de línguas e vigor cultural cosmopolita, e que efetivamente nos realçaria em uma sociedade globalizada. A colaboração com autoridades de outros países é pauta comum no combate à corrupção, ao desvio e à sonegação.

Registro e enfatizo o meu respeito para com os Advogados da União, para com os Procuradores Federais e para com os Procuradores do Banco Central do Brasil. Ao longo dos anos constato a qualidade do trabalho protagonizado por estes colegas, com os quais constantemente aprendo. Realmente acredito que a potencialização de nossas forças decorre também do respeito por nossas peculiaridades e por nossa história. Advogados da União, Procuradores Federais e Procuradores do Banco Central também sairão fortalecidos na medida em que se respeite suas trajetórias e ideais comuns.

Os leitores de Max Weber (1864-1920) aprendemos que há três tipos de dominação, que qualificam a ocupação dos espaços do poder. A denominação racional-legal radica nos atributos da lei. A dominação tradicional decorre das contingências da história. A denominação carismática depende da devoção a dotes sobrenaturais de líderes arcanos, cheios de mistérios e de fórmulas mágicas. Não há mais espaço para esse tipo de liderança, que se esgotou pela própria seiva. Ninguém mais leva a sério falsos profetas que se nutrem de um passado no qual nada construíram, e por isso desses profetas nada herdamos. São mágicos e feiticeiros: e para bruxos e mandingueiros não há espaço no mundo da racionalidade.

Ainda nesta perspectiva weberiana, o lugar do Procurador da Fazenda Nacional, no contexto de seu excepcionalismo, de suas qualidades e atribuições singulares e intrínsecas, é plenamente justificado por argumentos racionais, legais e históricos. É nesse sentido que apoio e subscrevo integralmente manifestação de nosso Procurador-Geral, Paulo Roberto Riscado Junior.

Sou contra a unificação das carreiras da advocacia pública federal porque a medida contrariaria a Constituição vigente.  Sou contra a unificação das carreiras da advocacia pública federal porque a fórmula contestaria a Lei Complementar com a qual hoje contamos. Porque detemos um ambiente cultural próprio, no contexto do qual compartilhamos uma razão histórica. Porque a medida não resultaria em economia de escala para a Administração e, por extensão, para o bolso do contribuinte. E sou contra a unificação das carreiras da advocacia pública federal porque detemos um tirocínio próprio dentro de uma temática absolutamente singular. 

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