Olhar Econômico

A proteção da concorrência não depende somente do direito antitruste

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

22 de outubro de 2015, 7h29

Spacca
João Grandino Rodas [Spacca]Estudar o direito em ação é mais interessante e leve, do que examinar temas como conceituação, taxinomia e relações de determinada disciplina. Contudo, esses temas são fundamentais e necessários para a formulação e compreensão do direito em sua dinâmica. Tal observação aplica-se igualmente ao direito da concorrência, também chamado direito antitruste, que por ser área relativamente nova[1], ainda não obteve consenso com relação à sua conceituação, bem ao seu enquadramento no âmbito das matérias jurídicas.

Lembremos, inicialmente, descrições doutrinárias sobre o direito concorrencial:

— “Conjunto de regras e regulamentos mantidos pelos governos, com o objetivo de enfrentar tentativas para monopolizar o mercado” (Hoekman e Mavroidis).

— “Técnica de que lança mão o Estado contemporâneo para a implementação de políticas públicas, mediante a repressão ao abuso do poder econômico e a tutela da livre concorrência” (Tiedemann).

— “Ramo do direito … que disciplina as relações de mercado entre agentes econômicos e os consumidores, tutelando-lhes, sob sanção, o pleno exercício do direito à livre concorrência como instrumento da livre iniciativa, em prol da coletividade” (Franceschini).

— “Conjunto de regras e instituições destinadas a apurar e a reprimir as diferentes formas de abuso do poder econômico e a promover a defesa da livre concorrência” (Vaz).

— “Legislação que dá concretude aos princípios da livre iniciativa, da livre concorrência e da repressão ao abuso do poder econômico — princípios de base da ordem econômica constitucional brasileira” (Ana Maria Nusdeo).

Com os elementos das descrições referidas e com a preocupação de evitar que a definição contenha o definido, pode-se conceituar direito da concorrência como o conjunto de regras jurídicas destinadas a apurar, reprimir e prevenir as várias modalidades de abuso do poder econômico, com o intuito de impedir a monopolização de mercados e favorecer a livre iniciativa, em favor da coletividade.

Quatro são as hipóteses aventadas pela doutrina pátria, com relação ao ramo do direito   a que pertence o direito da concorrência:

  • Direito administrativo. O enquadramento no direito administrativo encontra óbices, mormente em razão da pressuposição, inerente a tal ramo do direito, de subordinação do agente em relação à administração pública. Contra a aceitação dessa teoria, além dos próprios antecedentes históricos do direito da concorrência, milita a não aplicabilidade a esse direito, em sua inteireza, dos atributos do poder de polícia administrativa: discricionariedade, auto-executoriedade e coercibilidade.
  • Direito administrativo-econômico. Tais invectivas não existiriam se o enquadramento se desse no direito administrativo-econômico, cujas infrações administrativo-penais (não crimes) estariam menos adstritas à tipicidade descritiva, possibilitando ademais, a admissão de condutas não elencadas de maneira expressa e perquirição menos rigorosa de elemento subjetivo.
  • Direito econômico. Por seu turno, a filiação do direito concorrencial ao direito econômico implicaria em considerar que o titular do bem jurídico “livre-concorrência” seja o Estado e não a coletividade o que em tese, possibilitaria intervenção estatal na própria liberdade econômica, periclitando, assim, princípios constitucionais entre os quais o da livre-iniciativa.
  •  Direito penal-econômico. Consoante Franceschini, exame endógeno do direito da concorrência, à luz de sua substância intrínseca, conduz à sua vinculação ao direito penal-econômico, o que, por via de consequência, o coloca na órbita do direito penal. Considera ele ser tal entendimento pacífico na doutrina brasileira. Contudo essa teoria não explica a coexistência no ordenamento jurídico brasileiro de tipos infracionais de direito da concorrência e de tipos penais de direito penal.

A dificuldade de se estabelecer a vinculação do direito concorrencial a determinado ramo do direito é agravado em nosso ordenamento, em virtude de a lei brasileira possibilitar a subsunção das condutas de abuso de poder econômico, tanto na lei penal, quanto no direito da concorrência! Por isso disse Reale Jr. haver a possibilidade de levar, quer a um bis in eadem com consequente cúmulo de penas, quer à eficácia em apenas um dos campos.

Daí a conclusão de que a “terceira via”, conforme sugestão de Hassemer e formulação de Reale Jr. ter o dúplice condão de resolver a questão teórica do enquadramento do direito concorrencial e de tornar o direito concorrencial mais efetivo. No entanto, tal somente poderá acontecer no ordenamento brasileiro por meio de reforma legislativa.

Na área das relações do direito da concorrência, sobressai a da política da concorrência (competition policy), sua grande auxiliar na defesa da dinâmica competitiva.

Há quem utilize como sinônimos as expressões direito da concorrência e política de concorrência , mas o correto é distingui-los. Para Hoekman e Mavroidis, o direito da concorrência geralmente diz respeito ao comportamento de entidades privadas ou empresas, enquanto que a política de concorrência é o conjunto de medidas utilizadas pelos governos para intensificar, valorizar o desafio dos mercados, inibindo tanto ações privadas quanto governamentais. Exemplificativamente, a aplicação dos objetivos da política de concorrência podem compreender a privatização das empresas pertencentes ao Estado, a redução de subsídios específicos para a empresa, a diminuição das exigências para licenciamento de novos investimentos ou a adoção de medidas de liberalização do comércio.

Evenett vê dúplice objetivo para a política de concorrência. Um congrega finalidades econômicas, tais como a liberdade de comerciar, a proteção do processo competitivo (não necessariamente dos competidores), além de imperativo de eficiência. O outro resume-se em finalidades não econômicas, como preocupações de equidade e justiça social. Para ele, o direito da concorrência é apenas um dos muitos instrumentos de política de concorrência, que, ademais, possui um arsenal de medidas outras, por exemplo, restrições à entrada regular do comércio, restrição à saída, barreiras de comércio e aos investimentos exteriores e advocacia da concorrência. Deve-se ter em mente, ainda, que são os objetivos e prioridades da política concorrencial que influenciam o desenvolvimento e a interpretação das leis de concorrência.

A advocacia da concorrência (competition advocacy) comporta ações para esclarecer os agentes econômicos sobre os ganhos associados e de produção, proporcionados pela concorrência; ações essas diversas dos atos de implementação, quer preventivos (controle de atos de concentração), quer repressivos (inibição de condutas restritivas da concorrência). Embora não seja a advocacia da concorrência privativa da Secretaria de Acompanhamento Econômico-Seae do Ministério da Fazenda, o artigo 19 da Lei 12.529/2011 colocou-a entre suas atribuições.

Para Khan é no desenvolvimento da política de concorrência, em sua inteireza que “as condições de concorrência” são determinadas no mercado nacional. Entretanto, para determinar a ênfase e o equilíbrio entre aqueles que recebem os benefícios da política de concorrência entra em jogo complexa série de ponderações, relativas à maximização do bem estar dos consumidores, ao interesse público e ao bem estar dos fornecedores. Impõe-se considerar também o bem estar geral que pode acarretar a diminuição da importância dada ao aspecto do bem estar do consumidor, enquanto componente da política de concorrência. O desenvolvimento de tal política deve levar em conta não somente as pressões domésticas, pois em mercados globalizados, as políticas são elaboradas em resposta, também, a pressões externas. Por isso, a regulação das concentrações, frequentemente, inclui preocupações relativas a concentrações domésticas e internacionais.

À despeito do número sem precedente de leis sobre concorrência editadas ultimamente, a mera vigência de textos legais não garante, necessariamente, que a concorrência  venha de fato a ocorrer. Consoante Scherer, após a entrada em vigor da respectiva legislação, serão necessários cerca de dez anos para que os países adquiram a necessária expertise para implementá-la de maneira efetiva. Além disso, é cada vez mais evidente que, para garantir o processo competitivo, faz-se mister a existência de infraestrutura legal e econômica como complemento da legislação concorrencial.

Khemani cita a necessidade da existência de instituições capazes, assim como de outras “leis e políticas, que governam o direito da propriedade, direito à informação reconhecido aos indivíduos e às empresas, devido processo legal etc.” Adverte também que, sem ampla vinculação entre direito e concorrenciais “o processo competitivo poderá ser capturado por grupos especiais de interesse de empresas -risco existente nas economias industriais e ainda mais em economias de países em desenvolvimento e mercados emergentes”. A existência de monopólios tradicionais governamentais, bem como a possibilidade de interesses comerciais entrincheirados, preservando situações monopolísticas mesmo anteriores à privatização, especialmente na ausência de conhecimento e ação do consumidor, são exemplos de limitações das leis de concorrências solitárias.

Diz-se que muitos países possuem política de concorrência, mesmo não possuindo direito concorrencial corporificado. Diversas são as medidas políticas utilizadas por países para promover competição de mercado, premiar empresas eficientes, punir as não eficientes e garantir competição por meio de políticas industriais e comerciais. Na verdade, Singh explica que, até recentemente, muitos países em vias de desenvolvimento não possuíam nem legislação concorrencial, nem política de concorrência, pois havia considerável controle estatal sobre a atividade econômica. Em resposta ao comportamento anticompetitivo de alguns setores, o governo simplesmente intervinha diretamente, fixando preços de produtos essenciais. Entretanto, mesmo com o advento de políticas de concorrência prescritas formalmente, alguns países têm preferido continuar a enfatizar estratégias e diretrizes econômicas globais, a depender somente da aplicação do direito concorrencial para assegurar o processo competitivo.

China e Hong Kong são exemplos de localidades onde a efetiva política da concorrência tem-se baseado em instrumentos outros que não a legislação antitruste. Garantiu-se antes de tudo, alto grau de abertura de mercado, suplementados por regras setoriais, além de outros instrumentos quando necessários. Assim, antes do afã para criar legislação de concorrência propriamente dita, os países devem-se preocupar com o relacionamento entre política de concorrência e outras políticas governamentais, além de assegurar que o substrato legal das instituições possibilite a efetiva aplicação das leis.

Para Khemani, a aplicação do direito concorrencial, por ser feito, por definição, concretamente caso a caso, possui impacto em empresas específicas, já a política de concorrência pode e deve impactar sistemicamente, contribuindo para ampliar o “ambiente concorrencial em que a firma opera”. Ele sugere que, ademais das políticas governamentais, tais como redução ou retirada de tarifas, liberalização do controle de propriedade e de investimento, é importante que a advocacia da concorrência, por intermédio das agências de concorrência, favoreça o entrelaçamento das leis e políticas, com o intuito de promover a cooperação sistêmica.

A tríade direito da concorrência, política da concorrência e advocacia da concorrência garantem a existência de efetiva concorrência em um determinado mercado.


[1] Ver Rodas, João Grandino, A preocupação com a concorrência surgiu no direito interno. Conjur, 17/09.15

Autores

  • Brave

    é professor titular da Faculdade de Direito da USP, juiz do Tribunal Administrativo do Sistema Econômico Latino-Americano e do Caribe (SELA) e sócio do escritório Grandino Rodas Advogados.

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