Opinião

Fim dos jabutis abre novo capítulo para Medidas Provisórias

Autor

  • Felipe de Paula

    é sócio da área de Assuntos Governamentais e Regulação do Levy & Salomão Advogados. É doutor em Direito pela USP mestre em Ciências Jurídico-políticas pela Universidade de Coimbra e ex-secretário de assuntos legislativos do Ministério da Justiça (2010).

22 de outubro de 2015, 5h51

Foi recebida com compreensível entusiasmo a decisão do plenário do STF, tomada no dia 15 de outubro, ao julgar a ADI 5.127. A Corte decidiu cientificar o Congresso de que, a partir de agora, não mais serão tolerados "contrabandos" ou "jabutis" em medidas provisórias. Restringem-se as emendas ao tema original do instrumento presidencial, com vistas a evitar o sistemático uso da "carona legislativa” (emendas sobre temas estranhos ao texto, inseridas no projeto de lei de conversão). Almeja-se resguardar o devido processo legislativo, para que as alterações legais sejam de fato debatidas dentro do Parlamento.

No entanto, convém cautela na comemoração. Embora a decisão seja clara — salvo algum debate relativo ao significado da chamada pertinência temática —, os efeitos reais do julgamento têm contornos menos óbvios. Não está em causa a manifestação do STF, sua correção ou seus aspectos jurídico-constitucionais. Coloco em foco, porém, o impacto que o julgamento pode gerar na relação institucional entre Executivo e Legislativo.

Embora pouco salientado em âmbito jurídico, é fato que as MPs exercem papel crucial na montagem e nos ajustes do desenho político-institucional brasileiro. Mudanças em seus contornos produzem efeitos importantes, às vezes imprevistos. De um lado, as variações de sua configuração jurídica têm influenciado, e muito, a dinâmica entre os poderes. De outro, o inverso também é verdadeiro: o diálogo entre Planalto e Congresso tem moldado, em maior ou menor medida, regras formais e informais de tramitação.

É preciso, inicialmente, amenizar a crítica comum. Por muito tempo enxergou-se nas MPs resquícios de despotismo, autoritarismo e afronta à separação de poderes. Um breve olhar sobre parte dos manuais recentes de direito constitucional mostra que a visão ainda é corrente. Todavia, sob uma ótica mais abrangente, e sem negar a existência de eventuais abusos, há outros elementos que iluminam o debate.

Em primeiro lugar, como mostra parte dos cientistas políticos, a MP é instrumento legislativo central ao chamado poder de agenda. Trata-se, grosso modo, da capacidade de controlar minimamente a pauta temática, o que é votado e o que se transforma em norma jurídica. É um dos principais itens da caixa de ferramentas à disposição do Executivo na estruturação e na estabilização da coalizão de apoio, composta ainda, por exemplo, pela montagem dos ministérios e pelo uso de recursos orçamentários (ao menos até a emenda constitucional do orçamento impositivo – EC 86/2015). Se bem utilizada, a Executive toolbox promove patamares mínimos de governabilidade ao presidencialismo de coalizão. Consequentemente, permite o avanço da agenda político-social, ainda que de forma incremental.

Depois, e ao contrário da tradicional abordagem jurídica, parte da doutrina política contemporânea detecta alguns aspectos cooperativos entre Executivo e Legislativo no que tange ao uso das MPs. Por certo há abusos e insatisfações. No entanto, haveria uma espécie de delegação condicional, do último ao primeiro, quanto à tarefa de assumir a agenda e de inovar no ordenamento. Longe de subjugação, a prerrogativa de manifestação a posteriori do Congresso Nacional lhe garantiria, dentre outras benesses, a possibilidade de mapear críticas, de não assumir medidas impopulares e de negociar ajustes em prol de setores econômico-sociais. A própria “carona legislativa” em MPs, agora atacada, aponta nesse sentido.

Feita a ressalva, é possível enxergar ao menos quatro fases distintas na história das medidas provisórias sob a Constituição de 1988. A partir de agora, talvez, cinco. Em cada uma delas há relação íntima e perceptível entre situação política e ajustes jurídicos, assim como forte influência recíproca. Em todas as ocasiões de mudança foi alterado, em maior ou menor medida, o padrão de relacionamento relativo à produção normativa entre Executivo e Legislativo.

A fase de consolidação do uso das MPs (1988-2001), por exemplo, foi marcada pela ampliação de seu uso e de seus contornos. Emergiram fortes questionamentos sobre seus limites materiais e processuais, mas foram aceitos — tanto política quanto juridicamente — o alargamento de seu escopo original (o Executivo é quem decide o que é urgente e relevante) e, principalmente, o fenômeno das reedições. O país contabilizou mais de 5 mil MPs até o primeiro ajuste constitucional (2001). O aval jurídico às reedições teve, diga-se, raízes profundamente político-econômicas: usaram-se MPs nos planos de estabilização (MP 29, MP 39, Planos Collor, Plano Real etc). Na prática, a reedição desvirtuou o desenho institucional da Constituição que previa a aprovação explícita do ato por parte do Parlamento. Minaram-se os mecanismos de controle democrático da atividade legislativa presidencial.

A emenda constitucional 32/2001 emergiu, pois, como resultado da luta pelo resgate de poderes do Parlamento — e também de um acordo com o governo da época que queria proteger seus atos normativos até então reeditados. Restrições formais e materiais foram estabelecidas, com destaque à limitação temática, à proibição das reedições e à figura do trancamento de pauta, que almejava garantir a participação parlamentar no resultado legislativo. De um lado, é fato que a participação do Congresso nos textos normativos aumentou: houve mais emendas, mais análises em plenário, e um maior número de MPs rejeitadas. Todavia, o entendimento de que o trancamento configurava-se em excelente instrumento de controle da agenda legislativa por parte do Executivo — e também o entendimento de que a MP era veículo rápido e simples para emendas por parte do Congresso — fez com que o número de MPs crescesse, ao contrário do que se esperava. A dinâmica legislativa, e não seu novo desenho constitucional, incentivou seu uso.

Em 2009, o estabelecimento da chamada “Doutrina Temer” sacudiu a estrutura posta, em resposta política sob vestes jurídicas. A insatisfação de parte do Congresso frente ao controle da agenda do plenário pelas MPs do Executivo foi amainada com a liberação da votação de instrumentos como emendas constitucionais, leis complementares ou projetos de lei cuja matéria não fosse suscetível de tratamento via MP. De se notar que a alteração atingiu especialmente a produção legislativa penal, que passou a ser deliberadamente incluída em quaisquer projetos de lei visto não poder ser tratada por MP e, portanto, ser apta a ser votada mesmo com a pauta trancada. A alteração — realizada mediante resposta a uma simples questão de ordem, sem ajuste legislativo e chancelada pelo STF — novamente alterava as bases da relação entre os poderes. O Executivo perdeu importante instrumento de controle e precisou ampliar seu foco para a agenda mais ampla (talvez sem grande sucesso). Em paralelo, MPs progressivamente ganharam status de trem de cargas de portas abertas, recebendo mais e mais contrabandos legislativos, negociados caso a caso.

Finalmente, em 2012 o STF deu nova contribuição às adaptações da relação institucional ao julgar a ADI 4.029, que tratava da criação do ICMBio por medida provisória. Ao declarar a inconstitucionalidade com efeitos ex nunc de MPs que não observassem o rito constitucionalmente previsto no artigo 62, parágrafo 9º — Comissão mista de deputados e senadores especifica para cada novo ato, com prazos pré-definidos —, alterou-se a lógica de tramitação de MPs vigente. Relatores que se apoderavam dos projetos de lei de conversão e negociavam a inclusão de emendas, com ou sem pertinência temática, perderam parte de seu poder de barganha; o Senado voltou a ter relevância no rito (seus membros compõem comissões e relatam MPs originais); o Executivo viu o espaço de negociação de texto ser significativamente reduzido, com ligeiro incremento de previsibilidade.

A decisão da semana passada inaugura nova fase para as MPs. Consequentemente, também o faz para a relação entre os poderes quanto à prática legislativa. Apontar seus efeitos reais agora é mero exercício de adivinhação. Contudo, é razoável assegurar que eles não se restringirão ao mero cumprimento da decisão. A relação institucional sofrerá adaptações.

Por enquanto, parece trilhado o mesmo caminho iniciado com a decisão de 2012. Devolvem-se ao instituto, por assim dizer, "características originais". É provável que os relatores percam parte do seu poder de barganha; o texto do governo e a política por ele instituída podem voltar ter centralidade. Isso obriga o Executivo, em tese, a ter mais cuidado e precisão. Não se pode descartar, contudo, nova saída interpretativa ou procedimental que devolva prerrogativas ao Congresso.

A nós, cabe compreender que MPs são relevantes para a dinâmica entre poderes. Alterações em seu desenho geram efeitos político-institucionais importantes, às vezes imprevisíveis. Assim como ocorre no vetor oposto, em que ajustes políticos moldam o regramento da tramitação normativa. Ao jurista, importa perceber que ambos impactam fortemente resultados legislativos. A ver como se desenvolverá mais este capítulo.

Autores

  • é doutorando em Direito pela USP e pela Universidade de Leiden, Holanda. Mestre em Ciências Jurídico-políticas pela Universidade de Coimbra. Foi secretário de assuntos legislativos do Ministério da Justiça (2010).

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