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A metadogmática do Direito Comercial brasileiro (parte 2)

19 de outubro de 2015, 7h00

Por Walfrido Jorge Warde Jr., Jose Luiz Bayeux Neto

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Na semana passada, incumbidos da tarefa de definir o objeto e a função do Direito Comercial, afirmamos que é o Direito Privado externo da empresa, explicando-nos. Continuaremos essa reflexão hoje, de modo a distinguir o Direito Comercial do Societário.

II) O que é e para que serve o Direito Comercial

3. O Direito Comercial como “Direito Privado externo da empresa” – em razão de todo o direito de empresa que, sob intenso dirigismo e especialização, foi-lhe expurgado – é a parte especial do Direito Privado[1] que contempla, ao lado do Direito Civil (parte geral), muito do Direito Privado e, portanto, dos atos de configuração autônomo-privada de relações jurídicas.[2]

O “Direito Privado externo da empresa” disciplina o exercício da empresa, a atividade empresarial externa. Essa assertiva pressupõe que a organização seja um dos sentidos da empresa, que corresponde, por certo, à “empresa de dentro”[3], à estrutura de que decorre uma organização voltada ao exercício de um tipo de atividade econômica, a atividade econômica empresarial (“empresa de fora”). O Direito Comercial não disciplina a “empresa-organização” (a “empresa de dentro”), mas regra, exclusivamente, parte da empresa-atividade (a “empresa de fora”).

A disciplina da empresa-atividade corresponde ao regramento de algumas condutas do empresário em sentido amplo (o seu registro, o nome empresarial, a expressão contábil do estado da empresa, a representação do empresário, os contratos empresariais de exercício[4], a garantia e a titularização de direitos creditórios etc.), mas também ao tratamento da empresa como bem econômico e como objeto de direito em si (e.g, a transferência, a compra e venda e o arrendamento de empresa)[5], de sua proteção (por meio da tutela (de interesses privados) da concorrência, dos elementos imateriais de produção e da identidade empresarial) e de sua continuidade (e.g., nos casos de mudança de titular e de crise) etc.

O Direito Comercial disciplina, contudo, apenas parte da empresa-atividade. Expurgos, governados pela política do direito e por sucessivas especializações regulatórias, submeteram – sob intenso dirigismo estatal – importantes porções do objeto programático do Direito Comercial a outras ramas, a exemplo do Direito do Trabalho (que disciplina a apropriação do trabalho como elemento de empresa)[6], do Direito de Consumo (que impõe drástica intervenção regulatória sobre os contratos empresariais de exercício)[7] e mesmo do Direito da propriedade industrial (que provê tutela (de interesses privados) à concorrência, a elementos imateriais de empresa e à identidade empresarial)[8].

4. As sociedades são a forma prevalente de organização jurídica da empresa. E, por isso, o Direito Societário (ou, ainda, o Direito Societário interno[9]) corresponde a quase todo o “Direito Privado interno da empresa”.

O Direito Comercial não disciplina a organização jurídica da empresa-societária, que se especializou à afirmação histórico-dialética do Direito Societário, rama autônoma e especialíssima do Direito Privado.[10]

A disciplina das sociedades aparece e se desenvolve sob a inspiração de valores e de finalidades cambiantes. É possível distinguir vários momentos de inflexão no desenvolvimento do Direito Societário, que se firma como instituição, alinhada à caracterização de uma modelo de civilização ocidental capitalista. Todos esses momentos são marcados por um evento, por uma invenção ou por uma prática emblemática singular, que influem drasticamente à afirmação do Direito Societário como disciplina jurídica autônoma, submetida a princípios e a regras próprios.[11]

O Direito Societário não é, portanto, parte do Direito Comercial.

* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).


[1] Cf. CANARIS, C.-W. Handelsrecht. 24. Auflage. Munique: Verlag C. H. Beck, 2006, §1 I 10, p. 4.
[2] Cf. FLUME, W. Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, Das Rechtgeschäft, Zweiter Band, Berlin / Heidelberg / New York / Tokyo, Springer-Verlag, 1992, pp. 1 ss.
[3] Os fundamentos de um conceito moderno de organização – dos quais o Direito ainda se mantém distanciado – foram lançados pelos primeiros estudos sociológicos dedicados à descrição do fenômeno. Nesse sentido, merecem atenção os trabalhos seminais produzidos entre os anos 1940-1960. Cf. SELZNIK, P. TVA and the grass roots. Berkeley: University of California Press, 1949; Simon, H. A. Organizations. New York: John Wiley, 1958; PARSONS, T. A sociological approach to the theory of organizations. In: PARSONS, T. Structure and process in modern societies. Glencoe, IL: Free Press, 1960. (Original work published 1956), Id. Some Ingredients of a general theory of formal organization. In: PARSONS, T. Structure and process in modern societies. Glencoe, IL: Free Press, 1960. (Original work published 1956); MARCH, J. G. Handbook of organizations. Chicago: Rand MacNally, 1965. Para além desses trabalhos, e depois deles, muitos outros poderiam ser citados a destacar a seriedade das pesquisas conduzidas no campo da sociologia das organizações. É lamentável, contudo, o desprezo dos operadores do Direito, especialmente daqueles dedicados ao estudo da empresa e de suas formas de organização jurídica, ao conhecimento produzido por essa parte da sociologia, tão importante à compreensão dos fenômenos que, particularmente o Direito Societário, mas também o Direito Comercial pretende disciplinar. São, de todo o modo, mais conhecidas entre os juristas algumas vertentes do institucionalismo organizacional, sujeitas a filtros analíticos monotemáticos e unidimensionais (mas não por isso menos importantes), a exemplo da chamada theory of the firm. Cf. Coase, R. H. The nature of the firm (1937). In: WILLIAMSON, O. E.; WINTER, S. G. (Ed.). The nature of the firm: origins, evolution, and development. New York; Oxford, Oxford University Press, 1933. p. 18-33.
[4] Correspondem ao que alguns autores italianos chamam de rapporti commerciali di attuazione[4] . A expressão é empregada, por exemplo, por Ferri, para designar as relações que “sorgono dai singoli atti in cui l’attività intermediaria si concreta” e para distingui-las das relações comerciais de organização. Cf. Ferri, G. Manuale di diritto commerciale. 4. ed. Torino: UTET. 1976.
[5] Aqui, o objeto é o controle empresarial, que é um poder do empresário.
[6] Para uma descrição da afirmação histórica do Direito do Trabalho a partir do Direito corporativo medieval, cf. Rossi, G. Sul Profilo della ‘Locatio Operarum’ nel Mondo del Lavoro dei Comuni Italiani Secondo la Legislazione Statutaria. In: SARTI, Giovanni & SARTI, Nicoletta (a cura di). Studi e Testi di Storia Giuridica Medievale. Milano: Giuffrè, 1997.
[7] Cf. Duggan, A.J. The Economics of Consumer Protection: A Critique of the Chicago Law School Case Against Intervention. Adelaide Law Review, Adelaide, SA: Adelaide Law Review Association, Research Paper n. 2, [s.d].
[8] É bastante questionável, contudo, que o Direito da propriedade industrial caracterize disciplina autônoma.
[9] O Direito alemão propõe uma separação entre Direito Societário interno e externo. Isso se explica, em grande medida, porque o modelo alemão de cogestão ampliou o objeto programático do Direito Societário, que passou a disciplinar importantes relações externas com eficácia interna. É certo que o crescente tratamento societário de interesses dos vários constituencies também contribui para prover fundamentos à distinção. A disciplina das relações internas, que correspondem (entre as sociedades empresárias) ao dDreito interno da empresa, nesse contexto, é tarefa do Direito Societário interno (ou Direito interno das sociedades). Cf. SCHMIDT, Karsten. Handelsrecht…, op. cit., §1, II, 2.
[10] Para uma descrição desse processo, mesmo limitada a eventos até a virada do século XIX, cf. Goldschmidt, L. Storia Universale del Diritto Commerciale. Torino: UTET, 1913. A exponencial e progressiva especialização do Direito Societário, que, por si, fundamenta a sua autonomia, pode-se acessar pela compreensão de suas atuais feições e complexidades, exemplarmente descritas em KRAAKMANN, R., DAVIES, P., HANSMANN, H., HERTIG, G., HOPT, K., KANDA, H., ROCK. E. The Anatomy of Corporate Law: A Comparative and Functional Approach. Oxford/NewYork: Oxford University Press.
[11] A redução de um conjunto intrincado de fenômenos, em fluxo e transformação constantes, à caracterização de momentos inflexivos, é, de todo o modo, uma técnica de descrição por aproximação. O estabelecimento desses padrões despreza regionalismos e aceita a supremacia de uma modelo ocidental e capitalista de Direito Societário, para o qual, pressupõe-se, converge a esmagadora maioria dos ordenamentos nacionais. A passagem de uma fase a outra não importa, por certo, uma completa ruptura. Muitos elementos estruturantes (que definem o Direito Societário como ramo autônomo do Direito) sobrepõem-se, em camadas, fase a fase, para formar um amálgama em que devem predominar os traços da última fase. Seria impertinente, aqui, descrever detalhadamente cada uma dessas etapas. Uma referência superficial é útil, contudo, para esclarecer a especialização que aparta Direito Comercial e Societário. A evolução do Direito Societário pode ser rememorada por alusão: (i) ao proto-Direito Societário: compropriedade afetada por fins econômicos. Cf. Dalla, D.; Lambertini, R. Istituzioni di Diritto Romano. 2. ed. Torino: Giappichelli, 2001, p. 269; (ii) a uma fase privatista. Cf. Montanari, M. Impresa e Responsabilità. Sviluppo Storico e Disciplina Positiva. Milano: Giuffrè, 1990; (iii) à fase de gestão pública de externalidades: limitação de responsabilidade e privilégio. Cf. ABBOTT, H.; SPRINGER, F. M.; EUGENE, A. G. Corporation law: a comprehensive treatise on federal and State legislation relative to private and public service corporations and interstate commerce. Chicago: American School of Correspondence, 1913, p. 34, 79; Cooke, C. A. Corporation, Trust and Company; an Essay in Legal History, Manchester: Manchester University Press, 1950; (iv) ao financiamento massivo da macroempresa societária e o aparecimento do princípio majoritário. Cf. DUNLAVY, C. A. Corporate governance in late 19th – Century Europe and U.S. The Case of Shareholder Voting Rights. In: HOPT, K. J. et al (Eds.). Comparative corporate governance: the State of the art and emerging research. Oxford: Oxford University Express, 1998. p. 17; (v) à “popularização societária” com a criação da pequena anônima. cf. BARROS DE Mello. História e Constituição das Sociedades de Responsabilidade Limitada. Recife: Diário da Manhã, 1950; Peixoto, C. F. C. As Sociedades por Cotas de Responsabilidade Limitada: Doutrina, Jurisprudência, Legislação e Prática. V. 1, 2. ed.  Rio de Janeiro: Forense, 1956; (vi) à de tutela de interesses trans-societários. Cf. Riechers, A. Das “Unternehmen an Sich”. Tübingen: J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), 1996; e (vii) à fase de regulação de mercados. Cf. BERLE, A.; MEANS, G. The modern corporation and private property. Chicago: Commerce Clearing House, Inc. 1932. p. 86 et seq.; DOUGLAS, W. O. directors who do not direct. Harvard Law Review, v. 47, n. 8, p. 1315, 1934.