Segunda Leitura

Ministério Público ocupa espaços de poder, mas aumentam suas responsabilidades

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

18 de outubro de 2015, 9h30

Spacca
O Ministério Público é a instituição que mais cresceu após a Constituição de 1988. Com efeito da atuação exclusiva na esfera criminal e em algumas ações cíveis, o MP passou a órgão presente nas mais importantes questões nacionais.

Pertenci ao MP  do Paraná de julho a novembro de 1970 e ao de São Paulo de novembro de 1970 a março de 1980. Pude acompanhar o início da luta, a partir do “I Congresso do Ministério Público de São Paulo” (1971), ao qual compareceram delegações de todo o país. Deslumbrado, assisti a grandes lideranças de todo o Brasil reivindicando participação mais ativa da instituição.

Aos poucos isto foi se tornando realidade. Em 1973, o Código de Processo Civil dispôs no artigo 82, III que o MP oficiaria nas ações em que houvesse litígios coletivos pela posse de terras ou interesse público evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte. No mesmo ano, a Lei dos Registros Públicos assegurou-lhe participação em diversos tipos de ações. Em 1981, a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente outorgou-lhe o direito de propor ações coletivas na defesa do meio ambiente.

Mas foi na Constituição de 1988 que se deu o grande passo. O artigo 127 reconheceu o MP como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, e o 129 atribuiu-lhe a função de promover  inquérito civil e ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos, defesa dos direitos e interesses das populações indígenas e exercer o controle externo da atividade policial. De sobra, fortaleceu o MP Federal ao proibir a advocacia que, até então, era permitida aos procuradores da República.

Assim, a partir de então o MP foi se tornando protagonista e entrou na vida pública brasileira através das portas que lhe foram abertas pela Carta Magna.

Na área ambiental assenhorou-se da titularidade quase absoluta das ações civis públicas e, por força do preparo de seus agentes, conquistou vitórias e levou o Judiciário brasileiro a ter a mais sólida jurisprudência da América Latina. Ganhou legitimidade para propor ações de improbidade administrativa, através da Lei 8.429/92, o que resultou na condenação de muitos administradores com perda de direitos políticos.

Criou, nos estados, grupos especializados como combate ao crime organizado, à violência contra as mulheres, educação, direitos dos animais e saúde. No MPF, Câmaras de Coordenação e Revisão sobre os assuntos mais importantes, como a do consumidor e ordem econômica.

Entre estes órgãos especializados, tem crescido em importância o Gaeco, que teve origem em São Paulo em 1995 e combate as organizações criminosas, atuando em conjunto com agentes da Polícia Civil e Militar estadual. Esses grupos têm intensificado suas ações e alcançado resultados positivos em casos de difícil elucidação. Em maio deste ano o MP obteve vitória ímpar no Supremo Tribunal Federal ao ver reconhecido seu direito de investigar fatos criminosos.[i]

Recentemente, o MP propõe dez medidas de combate à corrupção.[ii] A louvável iniciativa vai ao encontro ao anseio popular de moralização das práticas no serviço público. Algumas dependem da criação de um tipo penal (v.g., enriquecimento ilícito de agentes públicos), outras da iniciativa dos tribunais (v.g., especialização de varas de improbidade administrativa), algumas são ousadas, mas necessárias (v.g., confisco alargado dos bens do criminoso que tem patrimônio muito inferior ao real, fato reconhecido por sentença definitiva) e outras polêmicas (v.g., reconhecimento da corrupção de altos valores como crime hediondo).

No entanto, se o empoderamento do MP trouxe benefícios à sociedade brasileira, no outro lado da moeda impõe-se ao órgão ser modelo de ética e eficiência. Sim, porque, sabidamente, quando mais interferir nas relações de terceiros mais será, por estes, fiscalizado. E nesse passo algumas observações devem ser feitas.

Os atos da vida pública estão em permanente controle pelo MP. Por exemplo, em São Paulo o MP não concorda com o fechamento da avenida Paulista aos domingos, determinado pelo prefeito.[iii] Esse tipo de intervenção em política pública leva o órgão à posição de autêntico gestor indireto, um verdadeiro ombudsman do Direito sueco a representar o cidadão. Mas é preciso que essas iniciativas tenham um comando único ou, pelo menos, posição uniforme.

Por exemplo, se diversos agentes do MP em um estado dirigirem recomendações  a um secretário da Saúde, que trazem implícitas o aviso de que se desobedecidas será proposta ação judicial, o administrador ficará quase imobilizado. O poder do Poder Executivo administrar estará sendo transferido para outras pessoas, com diferente formação e visões que nem sempre tem conhecimento do todo.

Os licenciamentos ambientais também merecem atenção. Atualmente, licenças são concedidas e depois discutidas em juízo. Empreendimentos exigem financiamento e suspensões significam investimento alto sem resultado. Não se ignora que alguns órgãos ambientais possuem problemas de estrutura e até casos de corrupção. Mas o sistema como está desestimula o investimento em um momento no qual o país atravessa grave crise econômica e desemprego.

A solução seria o MP oficiar na esfera administrativa e desde logo apresentar suas exigências. O empreendedor cumpre ou desiste. Mas não fica na insegurança, na falta de previsibilidade que hoje se tornou comum. Alerta Luiz Guilherme Marinoni que:

Quando o próprio Estado, mediante os órgãos incumbidos de aplicar o direito, mostra-se inseguro e contraditório, ora afirmando uma coisa ora declarando outra, torna-se impossível desenvolver uma consciência social pautada no sentimento de responsabilidade ou no respeito ao direito”.[iv]

Na área de direitos e vantagens é preciso cuidado. Quem controla os atos dos demais Poderes deve dar o exemplo. Todavia, algumas práticas revelam-se contraditórias com esta proposta.

Qual a justificativa para que todos os procuradores da República possam viajar em primeira classe nos aviões? Está certo promotores do Maranhão, estado que apresenta péssimos índices de desenvolvimento, receberem R$ 3.047 mensais a título de auxílio-alimentação? [v] Quem está no teto do funcionalismo deve receber R$ 953 de auxílio-educação, como se faz no MP do Rio de Janeiro? Em alguns estados, a existência de 60 dias de férias, recesso, feriados nacionais e locais, compensações de plantões justificam que a cada cinco anos ainda se goze licença-prêmio? Faz sentido um casal de membros do MP receber dois auxílios-moradia, mesmo que residam na mesma casa ou apartamento?

É certo que parte dessas vantagens está também em outras carreiras, como a magistratura. Mas isso não as torna éticas. Em um país que vê o número de vulneráveis aumentar a cada dia nas ruas, não tem sentido acumular auxílios que, isoladamente, constituem salários disputados no mercado de trabalho. Distribuição de renda não pode ser apenas objeto apenas de discursos ou teses, é algo a ser praticado.

Estas observações não têm, nem remotamente, a intenção de desqualificar o MP, cujas ações e méritos são e devem ser reconhecidos. O objetivo é exatamente oposto. É mostrar que há um risco das virtudes serem obscurecidas por práticas e vantagens que extrapolem os limites do razoável e que levem a sociedade descrer da instituição.

O Brasil não merece mais uma decepção. O Conselho Nacional do Ministério Público e as lideranças das instituições têm um papel exponencial neste processo.  Confiemos.                                                                                                                                  

 


[i] Recurso Extraordinário 593727

[iii] Estado de São Paulo, 17.10.2015, A21.

[iv] MARINONI, Luiz Guilherme. A ética dos precedentes,  RT, p. 113.

Autores

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    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente eleito da "International Association for Courts Administration - IACA", com sede em Louisville (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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