Opinião

Ministro Fachin deveria mostrar que os mais vulneráveis é que são as vítimas

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18 de outubro de 2015, 8h02

Em artigo publicado na Folha de S.Paulo (11/10) e reproduzido pela ConJur, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Edson Fachin defende a aprovação do Projeto de Lei 658, que propõe alterar o Código Penal para dar novo tratamento às regras de prescrição, procurando, segundo ele, eliminar algumas incongruências. De acordo com o ministro Fachin, “a iniciativa do senador Álvaro Dias (PSDB-PR) é da maior validade para o debate sobre as garantias constitucionais, especialmente da não culpabilidade, e sobre a percepção de impunidade”.

Desde logo se registra que o que alguns insistem em chamar de “não culpabilidade”, com o nítido escopo de mitigar o princípio, trata-se de fato e de direito do sagrado e Constitucional princípio da presunção de inocência esculpido no capítulo que trata dos direitos e garantias fundamentais. Como é sabido, dito e repetido, de acordo com o referido princípio, ninguém, absolutamente ninguém, poderá ser considerado culpado antes de uma sentença condenatória definitiva, ou seja, transitada em julgado.

Ao referir-se a “percepção de impunidade” atrelando a mesma às garantias constitucionais, o ministro, com todas as vênias, equivoca-se. É de se estranhar num país com a terceira maior população carcerária do planeta, com cerca de 750 mil presos, que se fale em impunidade, sendo que desse total cerca de 200 mil é de presos provisórios, ou seja, que ainda não foram condenados em definitivo. Impunidade para quem? Em vez de reforçar o mito da impunidade, o ministro deveria mostrar que no Brasil os mais vulneráveis — pobres, negros, jovens, analfabetos — é que são as principais vítimas. Necessitaria reconhecer que o sistema penal é seletivo, repressivo e estigmatizante. 

Por outro lado, em um Estado Democrático de Direito, as garantias constitucionais não podem ser vistas como óbices a pretensão estatal. Na verdade, qualquer punição que atropele as garantias do devido processo penal, do contraditório, da ampla defesa, da presunção de inocência, da proporcionalidade, da imparcialidade etc., deve ser tomada como afronta e, até mesmo, negação ao Estado de Direito.

No processo penal democrático, o imputado, contra quem se exerce a persecução penal, é sujeito de Direito. Igualmente, como sujeito de Direito, o acusado está amparado pelos direitos e garantias do Estado Democrático de Direito emanados da Constituição da República.

Aqueles que responsabilizam a defesa e o direito de recorrer pela ocorrência da prescrição — leia-se “impunidade” — tem uma visão míope e autoritária do processo penal, enxergando este apenas como passagem necessária para se chegar à punição.  Quando, na verdade, o processo penal, no dizer de Rubens R. R. Casara e Antonio Pedro Melchior[1] “é um instrumento voltado, primordialmente, à realização dos direitos fundamentais”. Mais adiante, os eminentes processualistas afirmam que “a realização dos direitos fundamentais implica no reconhecimento de limites rígidos ao exercício do poder estatal… Ao conter a opressão do Estado, o processo penal assume um compromisso com o mais fraco da relação jurídico-processual”.

O ministro Fachin em nenhum momento do seu combatido artigo faz menção à inércia estatal. Olvida-se o professor da chamada cifra negra da criminalidade ou das subnotificações. É sabido que, na maioria dos estados brasileiros, do total de homicídios ocorridos, em menos de 10% são apontados os seus autores.

Em relação especificamente à prescrição — perda do jus puniendi em face do lapso temporal —, essa tem como base fundamento político, impedindo que o indivíduo permaneça indeterminadamente e eternamente sob a ameaça de uma punição estatal com a espada de Dâmocles sobre sua cabeça. Como bem assevera Cezar Roberto Bitencourt, [2] “é inaceitável a situação de alguém que, tendo cometido um crime, fique sujeito, ad infinitum, ao império da vontade estatal punitiva”.

Outro importante aspecto que não foi considerado pelo ministro Luiz Edson Fachin diz respeito ao tempo de duração do processo penal. Como bem assinala Aury Lopes Jr.[3], “quando a duração do processo supera o limite da duração razoável, novamente o Estado se apossa ilegalmente do tempo do particular, de forma dolorosa e irreversível. E esse apossamento ilegal ocorre ainda que não exista uma prisão cautelar, pois o processo em si mesmo é uma pena”.

Não se pretendeu neste limitado artigo tecer profundas considerações sobre o instituto da prescrição penal. Como é sabido, trata-se de um instituto complexo, propício a um profundo debate desde sua natureza jurídica (material e processual) até às suas diversas espécies. Sendo certo, contudo, que o instituto da prescrição penal é admitido desde o século VIII pelo Direito romano. No Brasil, embora o Código Criminal do Império de 1830 afirma que “as penas impostas aos réos não prescreverão em tempo algum” (artigo 65), o Código de Processo Criminal de 1832 (artigos 54 a 57) previa a prescrição da ação (pretensão punitiva). Já o Código Penal de 1890 tratava tanto da prescrição da pretensão punitiva como da prescrição da pretensão executória. Nosso atual Código Penal trata fundamentalmente de duas espécies de prescrição: i) prescrição da pretensão punitiva (prescrição antes de transitar em julgado) e ii) prescrição da pretensão executória (prescrição depois do trânsito em julgado).

Não se ambicionou, por ora, discutir o termo inicial da prescrição, os prazo de prescrição, as causas impeditivas e interruptivas da mesma. Matérias extremamente intricadas para serem analisadas en passant.

Pretendeu-se aqui, tão somente, chamar a atenção para o fato de que um país em que a população prisional cresceu 74% em sete anos, passando de 296.919 presos em 2005 para 515.482 presos em 2012, sendo que atualmente está com cerca de 750 mil, terceira maior população carcerária do mundo, não pode, definitivamente, dizer-se o país da impunidade.

Não é despiciendo ressaltar que por trás do desejo de elevar o prazo prescricional, acrescer causas interruptivas e impeditivas da prescrição, transformar em imprescritíveis determinados crimes etc., esconde-se o desejo punitivista de incrementar cada vez mais o encarceramento, fazendo com que o Direito Penal continue sendo um instrumento de poder, legitimador da desigualdade e de controle social.

Vale aqui lembrar as palavras do professor da Universidade Federal do Paraná e criminólogo Juarez Cirino dos Santos[4], tão bem conhecido do ministro Fachin: “A prisão é o aparelho disciplinar exaustivo da sociedade capitalista, constituído para exercício do poder de punir mediante privação de liberdade, em que o tempo exprime a relação crime/punição: o tempo é o critério geral e abstrato do valor da mercadoria na economia, assim como a medida de retribuição equivalente do crime no Direito. Portanto, esse dispositivo do poder disciplinar funciona como aparelho jurídico econômico, que cobra a dívida do crime em tempo de liberdade suprimida, e como aparelho técnico disciplinar, programado para realizar a transformação individual do condenado”.

De igual modo, pretendeu-se refutar a ideia ordinária de que os direitos e garantias do processo penal e da Constituição da República são obstáculos à pretensão estatal. É preciso deixar assentado que no Estado Democrático de Direito os fins jamais podem justificar os meios. O processo penal democrático e garantista próprio do Estado Democrático de Direito, que tem na dignidade da pessoa humana um dos seus principais alicerces, não pode tratar o homem como coisa ou meio, mas tão somente, dentro da formulação kantiana, como pessoa e um fim em si mesmo.

O processo penal, conforme ressalta Aury Lopes Jr., não pode ser visto hoje como um simples instrumento a serviço do poder punitivo, mas, também, como aquele que cumpre o imprescindível papel de limitador do poder e garantidor do indivíduo a ele submetido. Como bem alertado pelo abalizado processualista, “há que se compreender que o respeito às garantias fundamentais não se confunde com impunidade, e jamais se defendeu isso. O processo penal é um caminho necessário para chegar-se, legitimamente, à pena. Daí por que somente se admite sua existência quando ao longo desse caminho forme rigorosamente observadas as regras e garantias constitucionalmente asseguradas (as regras do devido processo legal)”[5].

Por maior que seja o desejo de punição, não pode o Estado transformar esse desejo numa busca implacável e eterna contra o acusado. Caberá ao Estado, dentro de um tempo razoável, punir aqueles que devem ser punidos, respeitando o devido processo penal e os demais princípios norteadores do processo e do Direito Penal. Assim sendo, o exercício do direito a defesa com os recursos a ela inerentes não pode ser visto como busca da “impunidade”. O sagrado e irrenunciável direito de defesa é um dos pilares do processo penal democrático e do próprio Estado Democrático de Direito.

Por fim, espera-se que todo e qualquer projeto de lei que vise cercear direitos e garantias, criminalizar condutas em desacordo com os princípios da legalidade estrita, da lesividade, da intervenção mínima, da proporcionalidade, da culpabilidade etc. seja inteiramente rejeitado em nome dos direitos humanos e fundamentais e do próprio Estado Democrático de Direito.


[1] CASARA, Rubens R. R. e MELCHIOR, Antonio Pedro. Dogmática e crítica. Conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.
[2] BITENCOURT, Cézar Roberto. Supressão de parcela da prescrição retroativa: inconstitucionalidade manifesta. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 18, nº 87, nov-dez, 2010.
[3] LOPES JÚNIOR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional, vol I. 5ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
[4] CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal: parte geral. 6ª ed. ampl. e atual. Curitiba: ICPC, 2014.
[5] LOPES JÚNIOR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucionalob. cit.

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