Passado a Limpo

O caso da Revista do Supremo Tribunal Federal em 1925

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

15 de outubro de 2015, 8h42

Spacca
Arnaldo Godoy [Spacca] A história da literatura jurídica brasileira ganha insumo com conhecimento de parecer datado de 1925, confeccionado na Consultoria-Geral da República, a propósito de uma revista que publicaria, preponderantemente, os acórdãos do Supremo Tribunal Federal. O parecerista explorou a responsabilização da Fazenda Pública, quanto ao pagamento de valores devidos, à luz do então vigente Código de Contabilidade.

Há também alguma exploração sobre um conceito empírico de Governo, especialmente quanto à responsabilização deste para com eventuais débitos assumidos pela empresa que veicularia a publicação. O texto revela também uma extensa avaliação do contrato que então se entabulava. Segue o parecer:

“Gabinete do Consultor-Geral da República — Rio de Janeiro, 9 de junho de 1925.

     Excelentíssimo Senhor Ministro da Fazenda — Tenho a honra de restituir a Vossa Excelência o processo que se dignou entregar-me em mão, relativo ao ofício 9.220 do Presidente do Supremo Tribunal Federal, de 6 de fevereiro do corrente ano, solicitando pagamento à Revista do Supremo Tribunal.

     Para perfeito esclarecimento do caso, julguei conveniente fazer uma minuciosa exposição do mesmo.

     A empresa que explora a Revista do Supremo Tribunal veio obtendo, pouco a pouco, os favores em cujo gozo se encontra presentemente. A princípio, em 1917, obteve que se lhe pagasse a quantia de 15§000 por página editada. Depois obteve o pagamento também de uma cota fixa de 3:000$000 anuais, e franquia postal.

    Mas, aos 2 de março de 1921 celebrou-se um contrato entre essa empresa e o Presidente do Supremo Tribunal Federal, cujo objeto era “a publicação em volume dos acórdãos do Supremo Tribunal Federal”.

    Por este termo do contrato, a empresa obrigou-se: 1º) a publicar na aludida Revista, em fascículos mensais ou quinzenais, a jurisprudência do Supremo Tribunal, as atas das sessões, os pareceres da Procuradoria-Geral da República, e todos os atos administrativos do Tribunal; 2º) a publicar, a seu juízo, o recurso dos principais votos, mantendo, para esse fim, permanentemente, um ou dois redatores de debates, e serviço estenográfico; 3º) a publicar, em volumes anuais autônomos, toda a jurisprudência do Tribunal, atrasada, corrente e futura; 4º) a criar seções especiais, dedicadas à jurisprudência dos tribunais locais, do de Contas, do Supremo Tribunal Militar, e as leis da União e dos Estados; 5º) a publicar, em seções especiais, artigos de doutrina, e facultativamente críticas e comentários; 6º) a distribuir regularmente, até o dia 15 de cada mês, os fascículos relativos ao mês anterior, e no ano imediato o volume relativo à coleção autônoma da jurisprudência relativa ao ano decorrido, salvo motivo de força maior devidamente justificado; 7º) a fornecer a título gratuito, a cada um dos Ministros, e ao Secretário e Subsecretário do Tribunal exemplares da Revista, dos respectivos índices, e da coleção da jurisprudência, quer atrasada, quer corrente, e a seguir, bem como mais 25 exemplares de cada publicação para a  Biblioteca e funcionários.

     Como consequência ficou estipulado na cláusula 16ª o seguinte: “A segunda contratante perderá o direito ao presente contrato e às vantagens dele decorrentes, desde que deixe de observar qualquer das cláusulas acima estipuladas, não justificada a força maior”. Por seu lado, o Presidente do Supremo Tribunal concedeu à empresa os seguintes favores, como compensação dos ônus a que se sujeitava: 1º) a título de subvenção pela publicação da Revista, a cota fixa anual de 36:000$000 e, além disso, a quantia de 15$000 por página, de toda a matéria publicada; 2º) pagamento das despesas decorrentes da extração das cópias da jurisprudência; 3º) Isenção de direitos nas Alfândegas, de conformidade com o disposto no § 23 do art. 2º das Preliminares da Tarifa, para todo o papel de impressão e material de encadernação, num total de 125 toneladas aunais, e para todo o material tipográfico que a empresa importasse, compreendendo maquinismos de composição e impressão, tipos, metal para composição, tintas, etc.; 4º) Prazo de 25 anos.

     Estipulou-se ainda na cláusula 14ª que a empresa terá absoluta autonomia, relativamente à administração econômica e financeira da Revista, não cabendo, nessa parte, a mínima responsabilidade ao outro contratante.

     Como o contrato na cláusula relativa, 15ª, não especificasse o material tipográfico a ser adquirido, a empresa entregou ao Presidente do Supremo Tribunal, em 2 de dezembro do mesmo ano de 1921, uma relação completa e especificada do mesmo material, assim distribuído: oficinas de composição, oficinas de impressão, oficinas de encadernação e de estereotipia para obras, oficinas de químico-gravura, maquinismos e utensílios diversos, sala de redação, revisão e arquivo (móveis), e oficina de mecânica. Foi o contrato transcrito o que o art. 14 da Lei nº 4.555, de 10 de agosto de 1922, aprovou, com referência à relação do material acima mencionado, nos seguintes termos: “A fim de atender à requisição feita ao Congresso Nacional pelo Supremo Tribunal Federal, o Poder Executivo abrirá os créditos precisos à execução do contrato de publicação da jurisprudência e anais do mesmo Tribunal, celebrado a 2 de março de 1921, o qual fica aprovado pra todos os efeitos, sendo elevada a 30$000 a contribuição móvel por página editada, e bem assim para aquisição do material tipográfico constante da relação apresentada a 2 de dezembro de 1921, e protocolada sob nº 3.719”.

     Os favores novos que a lei conferia eram – a isenção de direitos alfandegários, o prazo de 25 anos, e a elevação da contribuição móvel de 15$ a 30$000, pois esta contribuição e a anual taxa já constavam de leis anteriores. Autorizou também o Governo a adquirir o material constante da mencionada relação, sem esclarecer se a propriedade desses maquinismos ficaria pertencendo ao Governo, ou se por este seriam doados à empresa.

     Compreendendo talvez a grave procedência desta dúvida, e as falhas do contrato e desse texto legislativo, resolveu a empresa assinar com o Presidente do Supremo Tribunal, um mês depois, um segundo Termo de Contrato que tem a data de 28 de setembro de 1922.

     Nesse Termo se declarou que ele era um aditivo ao contrato de 2 de março de 1921, e que esse Termo era necessário para <pôr o contrato de acordo com a Lei nº 4.555, do mesmo ano, e com os demais atos públicos relativos à matéria contratual. Por esse Termo o presidente do Supremo Tribunal fez o seguinte: 1º) Elevou a 168:000$000 a subvenção fixa anual, que era de 30:000$000. 2º) Criou o serviço de estenografia com o seguinte quadro: 2 redatores dos anais e 4 redatores de debates, 4 taquígrafos e 5 datilógrafos, todos eles com vencimentos correspondentes aos dos funcionários de igual categoria do Senado Federal. 3º) Incorporou para todos os efeitos, dentre outras peças, um ofício que a empresa dirigiu ao Presidente do Supremo Tribunal em 2 de dezembro de 1921, capeando a relação protocolada a que se refere o art. 14 da Lei nº 4.555, e o Ofício nº 5.199, de 31 de julho de 1922, dirigido pelo Presidente do Supremo Tribunal ao Inspetor da Alfândega do Rio de Janeiro.

     Pelo primeiro desses ofícios, a empresa: 1º) Adquiriria para si em plena propriedade por conta do Presidente do Supremo Tribunal, ou seja, por conta dos cofres públicos, todo o material constante da mencionada relação. 2º) Por conta ainda dos cofres públicos faria a instalação do referido material, independentemente de qualquer despesa ou ônus para a empresa. 3º) Consideraria prorrogado, para todos os efeitos, por mais 25 anos o contrato, desde que o Congresso Nacional aprovasse a relação de maquinismos. 4º) Gozaria de todos e quaisquer direitos e isenções já outorgadas ou que se venham a outorgar à sociedade anônima Banco do Brasil. (Estará incluído o direito de emitir cédulas de curso forçado?  5º) Teria o uso e gozo, durante o prazo do contrato, de um próprio nacional, dos situados no recinto da Exposição Nacional que o Governo entregaria à empresa com as adaptações necessárias,  sem quaisquer ônus para a empresa.


 

 

 

 

 

     É a esse termo aditivo de contrato que se refere o art. 13 da Lei nº 4.632, de 6 de janeiro de 1923, nas seguintes expressões: “Fica aprovado, para todos os efeitos, como fazendo parte integrante do instrumento contratual de 2 de março de 1921, a que se refere o art. 14 da Lei nº 4.555, de 10 de agosto de 1922, o Termo aditivo de contrato lavrado a 28 de setembro de 1922, e que também consolidou as alterações prescritas na mencionada lei, abertos os créditos precisos à sua execução”.

 

     Do conjunto das peças referidas resulta que à empresa da Revista do Supremo Tribunal foram concedidos os seguintes favores: 1º) O direito de adquirir para si, em plena propriedade, à custa dos cofres da União Federal, uma poderosa e opulenta oficina tipográfica; 2º) O direito de instalar e montar, num próprio nacional, ainda à custa dos cofres da União, a mesma oficina; 3º) O direito de explorar, em proveito próprio, sem qualquer intervenção do poder público, a referida oficina; 4º) O uso e gozo, pelo prazo de 50 anos, de um valiosíssimo próprio nacional, cuja adaptação aos fins da empresa devia correr por conta dos cofres públicos; 5º) Isenção de todos os direitos aduaneiros para o material, concernente à indústria, importado do estrangeiro; 6º) Concessão de todos os favores e isenções já concedidos venham a ser ao Banco do Brasil, não sendo difícil acreditar que nesta cláusula considere a empresa compreendido o direito de emitir bilhetes fiduciários de curso forçado; 7º) A subvenção fixa de 168:000$000 anuais; 8º) A subvenção móvel de 30$000 por página para publicação de todas as decisões e atos do Supremo Tribunal Federal, Corte de Apelação, Supremo Tribunal Militar, Tribunal de Contas, e juízos dos Estados; 9º) Manutenção de um serviço de estenografia e redação de debates, por conta dos cofres públicos; 10º) O direito de pagar com os dinheiros públicos as cópias da jurisprudência do Supremo Tribunal.

     Passarei agora em revista as diversas questões que suscitam estes contratos, que não tem paridade, ao que eu saiba, com qualquer contrato porventura celebrado pelo Governo do Brasil, desde a sua independência.

 

     Pode-se rescindir o contrato?

     Por mais estranhos que pareçam esses contratos, e realmente o são, celebrados pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal e aprovados pelo Poder Legislativo sem conhecimento perfeito do seu conteúdo, não se lhes pode negar força obrigatória. Discutiu-se a competência do Presidente do Tribunal para celebrá-los. Pode-se sustentar a sua competência para contratar a publicação dos atos oficiais do Tribunal; mas essa competência não pode ir ao ponto de fazer doações, a uma empresa particular, de bens adquiridos pela Nação, de conceder isenção de direitos alfandegários, do imposto em geral, e outras concessões exorbitantes dos poderes de administração, porque esses atos envolvem atos de disposição para os quais a lei exige poderes expressos e especiais.

     Mas veio a lei posteriormente, e aprovou esses contratos. Qual é a consequência jurídica desses atos de aprovação? Em direito, os atos são nulos, ou simplesmente anuláveis, conforme a natureza do vício que interveio na sua formação. A lei só considera ratificável o ato anulável, e tal a considera: 1º) o praticado por pessoa relativamente incapaz; 2º) o resultante de erro, dolo, coação, simulação ou fraude. O ato nulo não é suscetível de retificação. O juiz deve pronunciar a nulidade, quando conhecer do ato ou dos seus efeitos, não lhe sendo permitido supri-la, ainda a requerimento das partes (Código Civil, arts. 145 a 152).

     É nulo e, portanto, irratificável, o ato jurídico (art. 145): 1º) Quando praticado por pessoa absolutamente incapaz; 2º) Quando for ilícito ou impossível o seu objeto; 3º) Quando não revestir a forma prescrita em lei; 4º) Quando for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade; 5º) Quando a lei taxativamente o declarar nulo, ou lhe negar efeito.

     A validade do ato jurídico requer agente capaz, objeto lícito, e forma prescrita ou não defesa em lei. Não vale o ato que deixar de revestir a forma especial, determinada em lei, salvo quando esta comine sanção diferente contra a preterição da forma exigida. (Código Civil, arts. 82 e 130).

     Poder-se-ia, em vista destes preceitos, dizer que são nulos os contratos em questão, porquanto foram celebrados com inobservância de diversos dispositivos do Código de Contabilidade Pública, aprovado pelo art. 162 da Lei nº 4.632, de 6 de janeiro de 1923, e do Decreto nº 4.536, de 28 de janeiro de 1922. Dir-se-á, porém, que a aprovação dos contratos por uma lei sanou a nulidade, e deu-lhes toda a força, e que a figura jurídica que se apresenta não e propriamente a do ato jurídico, mas a da gestão de negócios, com aplicação, portanto, do art. 1.343 do Código Civil, segundo o qual a ratificação pura e simples do dono do negócio retroage ao dia do começo da gestão, e produz todos os efeitos do mandato.

     Acreditando que possa ter aplicação este dispositivo, deixo de aconselhar qualquer ação para anulação do contrato.

     A quem compete a execução do contrato?

     Uma coisa é a celebração do contrato com a consequente ratificação pela lei, outra coisa é a execução do contrato.

     A quem compete velar pela execução do contrato? O Código de Contabilidade estabelece, no art. 795, que aos Ministros de Estado e aos Chefes das repartições cabe prover à integral execução dos contratos celebrados com a administração pública, e aprovados segundo as disposições do mesmo código. Nesta matéria, o contrato de 2 de março de 1921 dispôs, na cláusula 9ª, que a Revista do Supremo Tribunal, na seção destinada à jurisprudência do Supremo Tribunal, e relativamente aos volumes anuais será fiscalizada pelo Subsecretário do Tribunal.

     No ofício dirigido pela empresa ao Presidente do Supremo Tribunal em 2 de dezembro de 1921, e incorporado ao contrato na cláusula 28ª, lê-se o seguinte: Os diversos maquinismos, utensílios e materiais acima relacionados, que serão adquiridos na Europa e os Estados Unidos da América do Norte, independente da concorrência pública, e diretamente pela sociedade anônima Revista do Supremo Tribunal – sob fiscalização do Governo –, poderão ser, etc.

     Ora, o contrato contém duas partes bem distintas: uma é a publicação da jurisprudência e atos do Supremo Tribunal; outra é a que diz com a aquisição de bens com dinheiros da nação, a utilização de um próprio nacional, e a importação de mercadorias com isenção de direitos.

     Quanto à primeira parte, o contrato é claro; subordina a sua execução, no que diz respeito à publicação dos trabalhos do Supremo Tribunal e seu pagamento à fiscalização do Subsecretário do Tribunal. Mas, quanto à segunda parte, no que entende com as coisas do patrimônio da Fazenda Pública, o contrato fala em fiscalização “do Governo”, o que não é a mesma coisa.

     Mas, por Aviso nº 1.161-C, de 10 de abril de 1923, o Sr. Ministro da Justiça comunicou ao Presidente do Supremo Tribunal que a esse Tribunal é que compete providenciar sobre a execução dos contratos em debate, cabendo àquele Ministro somente ordenar os pagamentos do material adquirido, mediante as requisições legais.


 

 

 

 

 

     A mim me parece, pelas razões já dadas, que esse Aviso viola dispositivos expressos do Código de Contabilidade, e das leis de Fazenda, e que contra elas não pode prevalecer. Parece-me que ao Ministério da Fazenda é que compete administrar os bens imóveis da União, posto que na posse e fruição de terceiros. Assim como a esse mesmo Ministério é que compete tudo quanto concerne a impostos e suas isenções. Ora, há muito que ver na execução deste contrato.

 

     Assim: a empresa ficou autorizada a adquirir, na Europa e nos Estados Unidos, mas sob fiscalização “do Governo”, os diversos maquinismos, utensílios e materiais constantes de uma determinada relação, e a montar e instalar esses maquinismos num determinado próprio nacional. Mas, quem tem de pagar o custo total desse material é a Fazenda Nacional. Logo, a Fazenda precisa de saber: 1º) Qual foi, discriminadamente, o material adquirido; 2º) Em quanto importou a aquisição, incluídas as despesas de transporte, seguro, etc. 3º) Em quanto importaram as despesas de montagem e instalação; 4º) Se essas despesas, tanto com a aquisição como com a montagem, foram fiscalizadas por um agente do Governo, e qual foi ele.

     Quanto às obras de adaptação do prédio, não me parece que a elas tenha direito a empresa. Ao Governo é que competia, de acordo com o contrato, entregar o prédio com as adaptações necessárias. Ao Governo é que incumbia, pois, fazer as adaptações. A empresa recebeu o prédio, sem essas adaptações, e, por sua conta e risco, fez as obras que entendeu. Segundo se diz, as obras são vultosas, e equivalem a uma completa remodelação do edifício. Penso que o Governo, se tivesse de fazer as adaptações, faria nos termos do contrato – as necessárias, deixando de mão as supérfluas e voluptuárias. Outro ponto é o consumo dos objetos importados com isenção de direitos. Penso que escapa também à competência do fiscal nomeado pelo Presidente do Supremo Tribunal, porque a função deste é restrita ao serviço de publicação.

Abertura de Créditos Especiais. O art. 96 do Código de Contabilidade estabelece que a duração dos créditos especiais será a determinada na lei que os autorizar, e, no caso de omissão, o de dois exercícios, observada a disposição do art. 40. O que o art. 40 dispõe é o seguinte: “ Os créditos especiais, que, em virtude de disposição de lei, vigoram por vários exercícios, serão regulados, nos primeiros, pelo sistema de gestão anual, transportando-se de um a outro ano financeiro os saldos apurados e as despesas empenhadas até 31 de dezembro, referentes a serviços ou fornecimentos não efetuados até então; mas, no último exercício vigorarão, como os demais créditos, até 31 de março”.

     Ora, a lei, que aprovou os contratos, não determinou a duração dos créditos que autorizou o Executivo a abrir para o pagamento dos serviços e fornecimentos a que a Revista do Supremo Tribunal se obrigou em todo o decurso do contrato. A lei foi evidentemente omissa neste ponto. Portanto, a duração dos créditos especiais, autorizados pela lei retificativa do contrato, não pode ultrapassar o período de dois exercícios. Nem é possível que seja de outra maneira, pois quer se trata de despesas incertas no seu quantum, e mesmo na sua essência, porquanto trata-se de um contrato que pode ser executado e pode não o ser, e de despesas que só se conhecem depois de realizadas.

     O crédito especial é um crédito de uma quantia determinada que fica destinada ao pagamento de um também determinado serviço, e por conta do qual se vão fazendo pagamentos, que vão sendo debitados à proporção que são feitos. Ao Governo é impossível, e mesmo vedado abrir créditos indeterminados. É o que diz o art. 86 do Código de Contabilidade: “Abertura de crédito é a fixação, em ato do Poder Executivo, das importâncias necessárias a despesas públicas não computadas, ou insuficientemente dotadas nas leis do orçamento”. A prevalecer a ideia contrária, como se trata de um contrato celebrado com o prazo de 25 ou de 50 anos (conforme se interprete a cláusula relativa), seria mister que o Governo avaliasse as despesas relativas a esses 25 ou 50 anos, e abrisse o crédito da importância total para, por conta dele, irem se fazendo os pagamentos parciais.

     Evidentemente, seria absurdo que assim se procedesse. Portanto, o Governo só pode abrir o crédito para atender às despesas relativas a dois exercícios, consoante o disposto no art. 96 do Código de Contabilidade. Notáveis jurisconsultos, cujos pareceres a empresa ofereceu ao Governo, dizem que os créditos especiais, votados pelo Congresso para um serviço contratado, têm, segundo a legislação em vigor desde o tempo do Império, e no domínio da República, a duração dos contratos.

     Por maior que seja o meu constrangimento em divergir de tão abalizadas opiniões, sou, todavia, forçado a dissentir. Não me parece acertado afirmar-se que, segundo a legislação da República, os créditos especiais, votados pelo Congresso para um serviço contratado, têm a duração do contrato. Os dispositivos citados em apoio desta asserção são a lei e o Código de Contabilidade Pública. Mas nenhum dos dispositivos invocados (art. 80, § 3º, 2ª alínea da Lei, e art. 96 do Código) autoriza essa conclusão, por quanto o que ambos dizem, repetindo-se, é que, como já vimos, a duração desses créditos será a determinada na lei que os autorizar, e, no caso de omissão, a de dois exercícios. Estão muito longe de dizer o que asseguram os notáveis jurisconsultos, isto é, que os créditos têm a duração dos contratos.

     A lei do Império, invocada, foi a de 25 de agosto de 1873, art. 18, § 1º, 2ª alínea.

     Tal lei, quando contivesse essa cláusula (o que é escusado investigar), não pode ser invocada, porquanto tanto a lei como o Código de Contabilidade, consolidando todos os dispositivos relativos à matéria, declararam revogadas as disposições em contrário.

     Penso, em suma, que o Governo só pode abrir credito especial que não ultrapasse dois exercícios financeiros, competindo ao Congresso, daí em diante, consignar no orçamento a verba necessária, ou autorizar as medidas que julgar convenientes.

     O que pode o Governo exigir da empresa antes de abrir o crédito.

     Penso que o Governo, para que possa deliberar sobre a abertura do crédito especial solicitado, deve exigir que a empresa da Revista apresente uma demonstração contendo:

     1º) A quantidade, qualidade e preço do material adquirido, acompanhada dos respectivos documentos; 2º) Nota, devidamente comprovada, das despesas feitas com o transporte do mesmo material; 3º) Conta devidamente comprovada de todas as despesas efetuadas com a montagem e instalação do material adquirido; 4º) Demonstração das despesas exigidas pelo serviço propriamente de publicação relativas ao corrente ano de 1925. Penso também, pelos motivos já expostos, que o Governo deve negar aprovação e pagamento às obras de adaptação do edifício, porquanto estas foram feitas arbitrariamente pela empresa, sem autorização do Governo e da lei.

     Deve ter também em conta os pagamentos efetuados.

SUGESTÕES

    Tomo a liberdade de fazer uma sugestão ao Governo. Pelo que se sabe, e é público, o presente contrato é onerosíssimo à Nação. Nem se pode avaliar o montante das despesas, atento o longo prazo de duração do contrato. É de tal natureza o contrato que, se porventura a empresa faltar-lhe ao cumprimento, a única sanção será a resolução do contrato; mas nada dispõe este acerca da devolução à Fazenda dos custosos maquinismos adquiridos com o dinheiro da nação, em proveito da empresa. Portanto, o que se impõe no presente caso, antes de efetuado qualquer pagamento, é a revisão do contrato, nas seguintes bases, que me parecem razoáveis: I – Renúncia às contribuições em dinheiro, estipuladas no contrato para manutenção da Revista (cota fixa anual de 168:000$000), para publicação (cota móvel por página), para o serviço de estenografia e redação de debates, e extração de cópias); II – Renúncia à isenção de direitos aduaneiros, e aos favores e isenções concedidas ou por conceder ao Banco do Brasil; III – Reconhecimento do direito de propriedade do Estado sobre o conjunto da oficina montada pela empresa; IV – Redução do prazo do contrato a 20 anos.

     Restarão ainda favores excepcionais. Terá a empresa o uso e gozo, por dilatado tempo, não só de uma opulenta e bem montada oficina tipográfica, como de um vasto e confortável edifício, magnificamente aparelhado.

     Se a empresa não se quiser submeter a estas razoáveis exigências, e a outras que ao critério do Governo ocorrer, restará a este o doloroso expediente de rescindir o contrato, correndo embora o risco de ser condenado a pagar perdas e danos, porquanto mais vale correr esse risco, que aliás talvez possa ser evitado, do que executar um contrato sobrecarregado com ônus de tal magnitude.

     Devo por último advertir que o contrato contém uma cláusula resolutiva expressa, a 16ª, a que fiz referência, e que reza assim: “A segunda contratante perderá o direito ao presente contrato e às vantagens dele decorrentes, desde que deixe de observar qualquer das cláusulas acima estipuladas, não justificada a força maior”.

     Segundo o Código Civil, art. 119, parágrafo único, a condição resolutiva, sendo expressa, opera de pleno direito, não necessitando de interpelação judicial.

     Parece-me que a empresa tem deixado de observar algumas cláusulas do contrato. É um fato que demanda uma investigação, que comecei a fazer, mas que não tive tempo de concluir. Posso, porém, desde já adiantar que não está sendo cumprida a cláusula 7ª pela qual a empresa obrigou-se a distribuir regularmente, até o dia 15 do mês seguinte, os fascículos, relativos ao mês anterior, da Revista, salvo motivo de força maior, devidamente justificado.

     Finalmente, julgo de meu dever chamar a atenção do Governo para o que dispõe a cláusula 14ª. Essa cláusula estabelece que a empresa terá absoluta autonomia no tocante à sua administração econômica e financeira, não cabendo, nessa parte, a mínima responsabilidade ao outro contratante, que é o Governo da União. Por conseguinte, a Fazenda Nacional não responde pelo pagamento de qualquer dívida por ventura contraída pela empresa.

     Esclarecido, por esta forma, o caso da Revista do Supremo Tribunal, tenho a honra de, restituindo a Vossa Excelência o processo, renovar-lhe os protestos de minha elevada estima e consideração.

Astolpho Rezende.”

Autores

  • Brave

    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!