Pilares da operação

Acordos de delação premiada da "lava jato" violam Constituição e leis penais

Autor

15 de outubro de 2015, 7h39

Todos os acordos de delação premiada firmados na operação “lava jato”, que investiga esquemas de corrupção na Petrobras, possuem cláusulas que violam dispositivos da Constituição — incluindo direitos e garantias fundamentais —, do Código Penal, do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984). Isto é o que aponta levantamento inédito feito pela revista Consultor Jurídico. A pesquisa analisou os compromissos que 23 delatores celebraram com o Ministério Público Federal ou com a Procuradoria-Geral da República, desde o primeiro, firmado em 27 de agosto de 2014 pelo ex-diretor de abastecimento da Petrobras Paulo Roberto Costa, até o do lobista Fernando Moura, formalizado em 28 de agosto de 2015.

O ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavascki e o juiz federal Sergio Moro já homologaram os documentos. Mas, se os compromissos forem contestados judicialmente, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (PR, SC e RS), o Superior Tribunal de Justiça ou o próprio STF podem anular partes ou a íntegra deles. Neste caso, as provas e condenações decorrentes dos depoimentos podem ser derrubadas, colocando todo o caso em risco.

Fellipe Sampaio/SCO/STF
Janot disse que mais de 50 delações já foram concluídas ou estão em negociação, mas apenas 28 são conhecidas.
Rodrigo Janot

A ConJur analisou os acordos que são públicos. O MPF diz que já foram formalizados compromissos com 28 pessoas, enquanto o procurador regional da República Douglas Fischer disse, no último dia 8, que são 31 colaboradores. Além disso, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, afirmou em sua sabatina de recondução ao cargo, no Senado, que “entre 50 e 60” delações já foram concluídas ou estão em negociação na operação.

A delação premiada existe no Brasil desde as Ordenações Filipinas, de 1603. O instituto é previsto em diversas normas criminais, como no Código Penal, na Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/1990), na Lei de Proteção de Vítimas e Testemunhas (Lei 9.807/1999) e na Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), e aliviou as punições de contraventores confessos como Joaquim Silvério dos Reis (que entregou Tiradentes) e Roberto Jefferson (que denunciou o caso do mensalão).

Contudo, apenas com a Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013) a medida foi regulamentada no país. Com isso, as colaborações premiadas deixaram de ser feitas de modo informal e com reduções da pena dependentes da decisão do juiz e passaram a ser formalizadas em contratos com cláusulas detalhando todos os benefícios e as condições necessárias para obtê-los.

Mas a “lava jato” alçou as delações a um patamar de importância jamais visto no Brasil. O caso, que começou com suspeitas de lavagem de dinheiro por meio de um posto de gasolina em Brasília, cresceu graças aos depoimentos de Paulo Roberto Costa e do doleiro Alberto Youssef. Eles foram os primeiros a mencionar que havia um esquema de fraudes em licitações, sobrepreços e desvio de recursos que envolvia executivos da Petrobras, empreiteiros e políticos.

A partir daí, diversos outros investigados resolveram colaborar com a Justiça, seja pela possibilidade de receber uma punição mais branda, seja por medo de ficar preso preventivamente por um tempo excessivo. Segundo o juiz federal Sergio Moro, responsável pelos processos decorrentes da operação, as colaborações premiadas são a melhor forma de solucionar crimes financeiros e empresariais.

Garantias desrespeitadas
Há diversas cláusulas nos acordos de delação da “lava jato” que desrespeitam regras da Constituição, e a maioria delas viola direitos e garantias fundamentais. Todos os compromissos proíbem que o delator conteste o acordo judicialmente ou interponha recursos contra as sentenças que receber. Os mais recentes abrem exceções apenas para os casos em que a pena imposta, seu regime de cumprimento ou as multas extrapolarem os limites fixados no documento.  

Reprodução
Proibir contestação judicial de sentenças vai contra garantia constitucional, explica Guilherme Nucci.
Reprodução

A obrigação entra em choque com o direito de ação (artigo 5º, XXXV), que assegura que nenhuma lesão ou ameaça a direito pode ser excluída da apreciação do Judiciário. Para o desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo e professor de Direito Penal da PUC-SP Guilherme Nucci, é “lógico” que essa cláusula viola uma garantia constitucional, e nenhuma lei ou contrato pode  estabelecer uma proibição desse tipo.

Os compromissos de Paulo Roberto Costa e Youssef ainda vedam a impetração de Habeas Corpus e obrigam que eles desistam dos que estão em tramitação. Vale lembrar que o Ato Institucional 5, editado em 1968, no governo ditatorial de Costa e Silva, suspendeu o Habeas Corpus nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular. A proibição durou 10 anos e inibiu a aplicação da medida de modo geral. Para evitar que a situação se repetisse, o Habeas Corpus recebeu especial importância dos deputados e senadores constituintes, que a elevaram à categoria de cláusula pétrea e direito fundamental na Carta de 1988 (artigo 5º, LXVIII).

Outro dispositivo problemático, que consta de quase todos os termos de delação, determina que a defesa não terá acesso às transcrições dos depoimentos do colaborador, que ficarão restritas ao MP e ao juiz. Ou seja: os advogados do delator não têm acesso às próprias declarações de seu cliente. A justificativa dos procuradores para essa restrição é a manutenção do sigilo, como forma a não prejudicar outras investigações.

Porém, a "boa intenção" do MP afronta os princípios do contraditório e da ampla defesa, que são assegurados a todos os acusados e litigantes (artigo 5º, LV). O criminalista Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, lembra que os advogados devem ter acesso a todos os documentos e informações de inquéritos e processos. Caso contrário, a paridade de armas dá lugar a um cenário em que a acusação hipertrofiada sufoca a defesa sem recursos. 

Os termos de colaboração premiada também obrigam quem os assina a renunciar ao direito ao silêncio e à garantia contra a autoincriminação (artigo 5º, LXIII). O advogado e professor de Direito Penal da UFMG Marcelo Leonardo afirma que não se pode renunciar a um direito constitucional, menos ainda a um que também está previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), e é considerado um instrumento contra a tortura praticada por agentes públicos. O Brasil é signatário do Pacto, o que lhe confere força de lei no país.

Nelson Jr./SCO/STF
Renunciar ao direito ao silêncio é considerado instrumento de tortura, conta Marcelo Leonardo.
Nelson Jr./SCO/STF

Em todos os acordos, o MP se compromete a suspender por 10 anos todos os processos e inquéritos em tramitação contra o acusado uma vez que as penas imputadas a ele atinjam um certo número de anos – 30 no caso do Youssef; 18 no caso do dono da UTC, Ricardo Pessoa; 8 no do lobista Hamylton Padilha; por exemplo. Transcorrida a década sem o delator descumprir qualquer condição do contrato, os prazos prescricionais dos procedimentos contra ele voltarão a correr até a extinção de sua punibilidade.

Além disso, o MP se compromete a não propor novas investigações e ações decorrentes dos fatos que são objeto do compromisso. Em agosto, Moro absolveu Youssef de ter repassado cerca de R$ 4 milhões num esquema que fez a Petrobras contratar navios-sondas entre 2006 e 2007, porque o caminho apontado pelos procuradores na denúncia é diferente do confessado pelo doleiro. Moro disse que cabia nova denúncia, mas os membros do órgão desistiram de ajuizar outra ação por esse crime, uma vez que as penas que ele recebeu já somam o limite de 30 anos.

Ao deixar de agir, mesmo sabendo da ocorrência de delitos, o MP descumpre suas funções institucionais de promover a ação penal e requisitar investigações e a instauração de inquéritos (artigo 129, I e VIII). Na opinião do advogado especialista em Direito Penal e professor de Direito Processual Penal da PUC-RS, Aury Lopes Jr., o órgão não pode abrir mão de suas atribuições. “Esse tipo de cláusula de não proceder coloca o MP com um poder de disposição que ele não tem. Assim, viola os princípios da legalidade, indisponibilidade e obrigatoriedade”, analisa Lopes Jr., que também é colunista da ConJur.

Violações penais
Mas as irregularidades dos acordos de colaboração premiada da “lava jato” não se restringem à Constituição. Eles também têm diversas cláusulas que contrariam dispositivos do Código Penal, do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal. Todos os compromissos público firmados na operação, exceto os dos lobistas Mário Góes, Milton Pascowitch e José Adolfo Pascowitch, e o do doleiro Shinko Nakandakari e de seus filhos Luís e Juliana, estabelecem um prazo indeterminado para o delator ficar no regime em que começar a cumprir sua pena. Por exemplo, o contrato do ex-executivo da Camargo Corrêa Eduardo Leite determina que ele fique de dois a seis anos no regime semiaberto. Os termos do empreiteiro Ricardo Pessoa e do lobista Fernando Moura estendem essa incerteza até para a segunda fase de execução.

Reprodução
Indeterminação sobre prazo de prisão  subverte a lógica do processo penal,
diz Aury Lopes Jr.
Reprodução

O tempo exato que o colaborador permanecerá no regime inicial (e também no posterior, nos casos de Pessoa e Moura) só será determinado após posterior avaliação da efetividade das informações por ele prestadas. Assim, em um período que varia de seis meses a um ano da assinatura do acordo, as partes voltarão a se reunir e cada uma delas apresentará uma proposta de prazo. Se elas chegarem a um acordo, ele seguirá para o juiz, que decidirá sobre sua homologação. Se não, o magistrado avaliará as duas sugestões e estabelecerá a duração da permanência do acusado em tal regime.

Essa indeterminação não condiz com a exigência de que a pena tenha sua quantidade de tempo fixada pelo juiz (artigo 59, II, do Código Penal). Lopes Jr. destaca que essa regra “subverte toda a lógica do processo penal”, e cria um regime de cumprimento condicional da pena à margem da lei. Marcelo Leonardo diz que só é possível aceitar tal condição caso se esqueça tudo o que está escrito no Código Penal, no Código de Processo Penal e na Lei de Execução Penal.

Também quanto aos regimes de cumprimento da pena, a maioria dos termos de delação premiada prevê progressão mesmo que em desconformidade com os requisitos estabelecidos na Lei de Execução Penal (artigo 112 e seguintes). O fundamento do MPF nesse caso é que a Lei das Organizações Criminosas autoriza tal exceção. No entanto, a norma só admite a medida para colaborações firmadas após sentença condenatória (artigo 4º, parágrafo 5º).

Dessa forma, a inclusão da regra em acordos celebrados na fase de investigação ou do processo viola o princípio da legalidade (artigo 5°, II e XXXIX, da Constituição, e artigo 1º do Código Penal). Nucci ressalta que não se pode fazer interpretação extensiva para aqueles que ainda não foram condenados. Senão, as leis penais passam a ser mescladas, e seus dispositivos, aplicados conforme a conveniência do caso.

Uma outra disposição ilícita é a que trata dos efeitos da delação premiada em caso de rompimento do acordo. Esta cláusula, presente em todos os documentos, estabelece que se o colaborador descumprir alguma obrigação, ele perderá os benefícios, mas seus depoimentos e as provas derivadas deles permanecerão válidas. Nada muda quanto à utilidade das informações se quem quebrar uma condição for o MP ou o juiz. Neste caso, a única prerrogativa do acusado é a de parar de contribuir com a Justiça.

Wilson Dias/Agência Brasil
O rompimento do acordo torna os depoimentos e suas decorrências provas ilícitas, afirma Kakay.
Wilson Dias/Agência Brasil

Essa desigualdade nas consequências de inadimplemento contratual desrespeita o princípio do contraditório e da ampla defesa. E mais: o rompimento do acordo torna os depoimentos e suas decorrências provas ilícitas, declara Kakay. Dessa maneira, essas evidências e as derivadas delas devem ser desentranhadas do processo (artigo 157 do Código de Processo Penal).   

Os compromissos de colaboração mais recentes, como o do ex-gerente da Área Internacional da Petrobras Eduardo Musa, fixam um certo número de anos como base para benefícios penais,  como remição da pena (seja pelo trabalho, frequência escolar ou estudo), saída temporária, anistia e indulto. Entretanto, a regra prejudica quem for condenado a um tempo inferior ao patamar estabelecido. Na visão de Aury Lopes Jr., tal cláusula viola a legalidade e toda a sistemática das execuções penais, além de gerar problemas no cálculo dos benefícios. 

Os dias de trabalho de Paulo Roberto Costa, por exemplo, não valem para a remição de sua pena, mesmo que a compensação esteja prevista na Lei de Execução Penal (artigo 126, parágrafo 1º, I). Kakay considera essa cláusula uma “violação frontal” à norma, e afirma que não se pode abrir mão de um direito como esse. O desembargador Nucci tem opinião semelhante, e aponta que a Lei de Organizações Criminosas não estabelece isso, o que torna ilegal a inserção dessa condição no acordo de delação premiada do ex-diretor da Petrobras.

Outro lado
O procurador regional da República Orlando Martello, que integra a força-tarefa da “lava jato”, contesta as alegações de inconstitucionalidades e ilegalidades nos acordos de delação premiada da operação. Segundo ele, o MPF está apenas usando seu poder de negociar com o acusado, algo previsto desde a Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/1995).

Assim, Martello entende que a restrição à interposição de recursos evita medidas protelatórias que visam à prescrição e geram impunidade. O raciocínio é semelhante para a cláusula que veda o desconto de dias trabalhados da pena de Paulo Roberto Costa, que tem o objetivo de não deixar sua punição muito baixa, explica.

Com relação à fixação de um certo número de anos para concessão dos benefícios penais, o procurador diz que o patamar é sempre inferior à pena que o MPF estima que o acusado irá pegar. Porém, se essa previsão se mostrar errada e o delator for condenado a um tempo menor do que aquele, o órgão irá requerer ao juiz que a cláusula seja modificada, explica.

O membro da força-tarefa da “lava jato” também refuta a alegação de violação do contraditório e da ampla defesa pelo fato de os advogados do delator não ficarem com cópias dos depoimentos dele. De acordo com ele, tal restrição ocorre apenas por um breve período, e com o objetivo de não prejudicar as investigações. Logo que o termo é homologado pelo juiz, a defesa volta a ter acesso a todos os documentos que mencionam seu cliente.

Martello ainda diz não “ver sentido” em continuar propondo investigações e oferecendo denúncias contra aqueles cujas sentenças já superam os limites estabelecidos nos acordos de delação premiada. A seu ver, a inércia consentida do órgão alivia a PF e o Judiciário, e ajuda a desafogar a Justiça.

Para Bottini, é incompatível que um acusado firme acordo de colaboração premiada e permaneça calado.
Reprodução

O professor de Direito Penal da USP Pierpaolo Cruz Bottini, que negociou o termo de colaboração premiada do ex-presidente da Camargo Corrêa Dalton Avancini, argumenta que se as medidas dos acordos forem mais benéficas aos delatores do que as previstas na lei, elas devem ser aceitas. Desta maneira, Bottini — que também é colunista da ConJur — sustenta não haver problema em cláusulas como a que admite, já antes da sentença, progressão de regime, mesmo que ausentes os requisitos objetivos.  

Ele diz ser incompatível que um acusado firme acordo de colaboração premiada e permaneça calado, uma vez que esse tipo de acordo é baseado na renúncia ao silêncio, que é um direito disponível. Com visão semelhante à de Martello, o criminalista não vê violação ao contraditório e à ampla defesa pelos advogados não ficarem com cópia dos depoimentos do delator, já que este não está litigando, e sim sendo investigado.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!