Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo colombiano (Parte 30)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

14 de outubro de 2015, 16h30

Spacca
Entre liberais e conservadores: uma pequena história da Colômbia
André Maurois, em sua biografia do rei Eduardo VII, afirma que “em todo país parlamentarista, disfarçados sob máscaras transparentes e convencionais, dois grandes partidos disputam o poder. A França, no tempo de Louis Philippe, conhecia-os como Resistência e Movimento; sob Loubet, foram intitulados Direita e Esquerda. A Inglaterra de 1830, dizia Whigs e Tories; a de 1870, Conservadores e Liberais. Os nomes mudam, o debate continua”[1]

Retire-se o adjetivo “parlamentarista”, e essa definição de Maurois se aplicaria a vários outros países. A um deles é particularmente adequada: a Colômbia. Na era colonial, foi o centro do Vice-Reino de Nova Granada. Após a independência, como fruto do sonho de Simon Bolívar, renasceu sob o nome de Grã-Colômbia, a qual foi sucessivamente perdendo territórios, como os correspondentes às atuais repúblicas da Venezuela, do Equador e, no início do século XX, do Panamá. Os partidos Liberal e Conservador dominam a vida política colombiana desde meados do século XIX.

A designação de “liberais” aos membros desse partido colombiano, que se reconhece por sua bandeira vermelha, vem dos tempos da libertação e deve-se à identificação dos seguidores do general Francisco de Paula Santander (1792-1840), um advogado e militar, segundo presidente da República (1832-1837) e opositor de Bolívar. Fundado em 1848, os integrantes desse partido transitaram entre uma ideologia econômico-política liberal e, mais recentemente, com ligações ao que se poderia chamar de left-liberal, no jargão norte-americano. Independentemente dessas variantes em termos de economia e política, ser liberal quase sempre foi assumir-se como anticlerical, a favor da liberdade de imprensa e da ampliação do direito de voto. Essas contradições não explicam como o Partido Liberal foi um dos próceres do neoliberalismo nos anos 1980 e é membro da Internacional Socialista, mas só enaltecem o quão complicado é a qualificação de um liberal, algo sobre o que já escrevemos em outra coluna.

Os conservadores colombianos usam o estandarte azul, e seu partido foi criado em 1849. Dividiram a cena política com os liberais desde então, embora estes últimos tenham ocupado o poder por muito mais tempo ao longo do século XX. Com simpatias pela tradição católica e defensores das tradições rurais, os conservadores são internacionalistas em termos de política externa, mas não defendem uma maior integração do país com a América Latina. Suas conexões com o campo não se limitam à defesa dos grandes produtores rurais, embora assim tenha sido por muito tempo, e sim à proteção do setor e ao seu desenvolvimento. Seu domínio político estendeu-se até 1930, quando o crescimento da classe operária levou os liberais novamente ao poder.

Em todo esse período de alternância entre liberais e conservadores, revoltas sangrentas, guerrilhas e disputas internas dentro dos partidos levaram a Colômbia a experimentar os efeitos colaterais da transposição da luta política para o combate militar. A população mais humilde sofreu com os excessos de cada lado. 

Na segunda metade do século XX, com receio de uma militarização política, algo comum na América Latina, as elites colombianas uniram-se por 16 anos sob um movimento chamado Frente Nacional, que permitiu uma alternância controlada do poder, bem semelhante à política brasileira da República Velha.

O alheamento do campesinato e de setores urbanos dos centros decisórios reais, somados à formação de uma base estudantil revolucionária, determinaram o surgimento de movimentos guerrilheiros. Em contrapartida, a expulsão e a eliminação física dos traficantes de cocaína do Chile, nos anos 1970, graças às ações da ditadura do general Augusto Pinochet Ugarte, transferiu para a Colômbia o controle desse negócio, que se tornaria bilionário nas mãos de Pablo Emilio Escobar Gaviria.

De um ladrão de mármore de sepulturas e guarda-costas de um contrabandista de Medellín, no Departamento de Antioquia, Pablo Escobar criou o Cartel de Medellín e converteu-se em um dos homens mais ricos do mundo, graças ao tráfico de cocaína. Dizendo-se um “homem de esquerda” e inimigo da oligarquia que governava a Colômbia desde antes de sua independência, Escobar coordenou programas assistencialistas, corrompeu amplos setores da Polícia Nacional, do Exército e da política, fez-se eleger deputado ao Parlamento colombiano (até sua rápida renúncia) e, após ter-se iniciado a reação do governo a suas atividades, conduziu uma ação terrorista sem precedentes na América, com derrubada de aviões, explosões de prédios públicos, apoio à guerrilha (que invadiu a sede do Supremo Tribunal de Justiça) e sequestros.

Nos anos 1990, a Colômbia derrotou Pablo Escobar, mas a ação das guerrilhas de esquerda e dos grupos de paramilitares, criados para combatê-las, assumiu proporções ainda piores. O financiamento de guerrilheiros e paramilitares deu-se por meio do narcotráfico. Parte das forças do Estado que combateram o Cartel de Medellín associaram-se aos paramilitares e aos traficantes, criando-se uma promiscuidade vergonhosa entre esses setores. Muitos dos policiais e militares que lutaram contra o narcotráfico, incluindo-se os que caçaram e mataram Escobar, elegeram-se para cargos públicos com dinheiro dos cartéis ou dos paramilitares e terminaram por perder seus mandatos e encerrar suas carreiras políticas na prisão.

O combate à guerrilha, após o fracasso das negociações dos anos 1990-2000, tornou-se o ponto central da política colombiana, o que permitiu a eleição de Álvaro Uribe Vélez, ex-governador de Antioquia, para a presidência da República em 2002. Católico fervoroso e filiado ao Partido Liberal, Uribe desligou-se de sua agremiação e elegeu-se por um grupo independente. Seu governo, que se desdobrou em dois mandatos (2002-2006 e 2006-2010), foi marcado pelo crescimento econômico (duplicação do PIB), abertura para o mercado internacional, combate violento à guerrilha, apoio financeiro norte-americano e resgate de centenas de sequestrados pelos guerrilheiros. Em termos de moral, o governo foi conservador. As relações com o Poder Judiciário não foram das melhores, e houve denúncias de ligação de membros do governo com os paramilitares.

A clivagem liberais-conservadores foi posta em causa nos anos 2000 em diante. Antigos guerrilheiros tornaram-se atores políticos de destaque, e o movimento independente de Uribe congregou diversas forças anteriormente dispersas nos partidos tradicionais.

O atual presidente da República, o jornalista e economista Juan Manuel Santos Calderón, é membro da elite colombiana, com antepassados entre os líderes da independência nacional e políticos de destaque na cena nacional dos séculos XIX e XX. Durante o terror conduzido por Pablo Escobar, Santos foi um dos sequestrados a mando do narcotraficante, com o objetivo de pressionar o governo para a realização de um acordo. O presidente Santos é liberal de origem, mas hoje chefia um partido autônomo e tem conseguido enormes avanços na política de acordo e anistia aos guerrilheiros. Essa distensão provocou sua ruptura com Álvaro Uribe, seu antigo líder e de quem foi ministro da Defesa.

“Homens vestidos de preto” e as mudanças no Direito colombiano
Se o Peru tem suas glórias literárias na pessoa do prêmio Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa, criado Marquês de Vargas Llosa pelo rei Juan Carlos, a Colômbia tem seu equivalente em Gabriel García Márquez. Em sua obra-prima, Cem Anos de Solidão, pode-se compreender a Colômbia do final do século XIX e início do século XX, com a chegada das ferrovias, a decadência das famílias aristocráticas dos tempos coloniais, as guerras civis e o papel das armas como fator decisivo nas lutas entre liberais e conservadores. Emociona-me até hoje lembrar a descoberta do gelo por José Arcadio Buendía, que, ao vê-lo pela primeira vez, murmurou: “É o maior diamante do mundo”[2].

García Márquez foi um estudante de Direito em 1947, período de enorme agitação política na Colômbia. E, em Cem Anos de Solidão, os advogados aparecem quase sempre como homens “vestidos de negro”, com a “gola das casacas levantada até as orelhas”. Eles são descritos como “os advogados de terno escuro que em outra época esvoaçavam como corvos em torno do coronel”. Serviçais do governo central, em busca do coronel Aureliano Buendía, prócer da nação e líder dos liberais nas guerras civis, a propositura da paz, eles voltavam, agora como “decrépitos advogados vestidos de negro”. Eles, que “em outros tempos tinham assediado o coronel Aureliano Buendía”, “agora eram procuradores da companhia bananeira, desvirtuavam a função com arbitrariedades que pareciam passes de mágica”. Nessa nova fase, os advogados serviam ao poder econômico, que transformaria a face da Colômbia, durante o período de fastígio do Partido Conservador, e se mimetizavam como prestigitadores das palavras. Se antes tentavam ludibriar o antigo cabo de guerra liberal, agora o faziam, com seus trajes ainda escuros e seus cabelos já encanecidos, de modo idêntico em relação aos trabalhadores.

A presença dos juristas na Colômbia, à semelhança do que ocorreu no Brasil, foi importante para a organização nacional após a independência, e boa parte dos líderes nacionais alternaram-se nos ofícios de advogado, militar, sacerdote e jornalista. Os liberais foram pródigos no uso dos jornais. O clero foi, ao menos até o Vaticano II, profundamente conservador. Militares houve de ambas as fileiras, assim como os advogados.

O Direito, nos séculos XIX e XX, foi central para a formação da elite política colombiana. Mesmo nos mais críticos momentos históricos, como o período da violência (final da década de 1940), a guerra contra o narcotráfico (1980-1990) e contra a guerrilha (segunda metade do século XX), a formação jurídica não deixou de ser uma forma de acesso aos postos de relevo no Estado colombiano.

A abertura para os Estados Unidos, resultado de uma intensa política de cooperação militar, de inteligência e financeira decorrente da luta contra o narcotráfico e a guerrilha, também serviu para ampliar a influência cultural norte-americana no meio universitário, o que se refletiu na formação de centros de excelência privados. Criada em 1948, a Universidad de los Andes é um exemplo dessa visão internacionalizada do ensino colombiano. Nos últimos 50 anos, muitos membros das classes alta e média da Colômbia estudaram nos Estados Unidos, como é o caso dos presidentes Juan Manuel Santos (Kansas e Harvard) e Andrés Pastrana (Harvard).

Outra instituição emblemática no ensino superior colombiano é a Universidad Externado de Colombia, fundada em 1886 pelo jurista Nicolás Pinzón Warlosten. Seu nome “externato” foi-lhe atribuído para representar uma ruptura com os modelos então prevalecentes de formação pedagógica, marcados pela ideia de clausura dos alunos (os internatos). Sua faculdade de Direito tem 126 anos e é considerada a melhor do país. Um verdadeiro celeiro de pesquisadores, o Externato da Colômbia tem fortes ligações com a Alemanha e a Itália, sendo patrocinadas por essa instituição as traduções de relevantes obras estrangeiras.

O Tribunal Constitucional da Colômbia é outro exemplo da evolução do Direito nesse país da América do Sul. Muitas construções dessa corte são hoje examinadas como referência em Direito Constitucional Comparado.

Conclusões
A influência do entorno sobre as instituições de um país nunca deve ser mitigada. Em geral, não adianta construir castelos e torres de marfim na burocracia, na universidade, na ciência e tecnologia, quando os arredores sociais são incomparavelmente atrasados e há uma nítida dissociação entre o plano civilizatório e a realidade de pobreza e de desvios éticos. Com o tempo, a contaminação dessa realidade suja termina por corroer as bases desses centros de excelência. Japão, Alemanha e Coreia, para se ficar apenas nessas três nações arrasadas pela guerra, reconstruíram suas instituições a partir da formação de base. Os coreanos sacrificaram duas gerações para só muito recentemente conseguirem êxitos efetivos no ensino universitário.

Os colombianos viveram décadas de guerra civil (que ainda persiste) e de conflitos com narcotraficantes, com milhares de mortos anuais. A captura de parte significativa da burocracia e de setores econômicos também contribuiu para a perpetuação de problemas seculares, como a corrupção policial, a ineficiência administrativa e a evasão de divisas. Mesmo com tantos problemas, os colombianos conseguiram manter e melhorar sua estrutura universitária em relação ao Direito, e hoje o país desponta, ao lado do Chile, como um exemplo de qualidade e internacionalização em plena América do Sul.

A descoberta desse modelo desconhecido começa com a coluna de hoje e terá sequência nas próximas semanas.


[1] MAUROIS, André. Depois da rainha Victoria, Edward VII: Os anos que levaram à Primeira Guerra Mundial. Tradução de Vera Giambastiani. São Paulo: Globo Livros, 2014. p.79.
[2] GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Cem anos de solidão. Tradução de Eliane Zagury. 48ª ed. Rio de Janeiro: 1967. 

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    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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