Tribuna da Defensoria

Atuação da Defensoria em conflitos habitacionais garante direitos sociais

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13 de outubro de 2015, 13h45

Há cerca de uma década têm se intensificado no plano judicial e acadêmico os debates sobre a exigibilidade de direitos sociais por meio do sistema de Justiça. Invariavelmente, esses direitos são postulados em favor de pessoas economicamente debilitadas, o que traz à tona a importância da Defensoria Pública, já que, onde estabelecida razoavelmente, é quem protagoniza a maior parte de demandas da espécie. Temos notado, nesse sentido, avanços e contribuições relevantíssimas, em especial na área da saúde, onde a instituição não só se notabiliza pela atuação puramente judicial, mas, mais recentemente, por iniciativas variadas independente da intervenção do Poder Judiciário, conferindo presteza na garantia de direitos, o que é primordial ao se identificar como escopo fundante da Defensoria justamente o acesso à Justiça.

Contudo, as evoluções observadas quanto a determinados direitos — como saúde — não são a tônica no trato dos direitos sociais. Há algum tempo temos refletido sobre a forma pela qual o direito à moradia é viabilizado no contexto do sistema de Justiça[1].

Inicialmente, destacamos que não é propriamente por falta de base legal que a concretização do direito à moradia não se torna realidade. Em 2000, o direito em questão foi constitucionalizado — taxado de fundamental. Em 2001, tivemos a edição do Estatuto da Cidade. Em 2009, a lei que regula o Minha Casa, Minha Vida, a qual, além de regulamentar o programa, trouxe novidades no trato da regularização fundiária de interesse social. Todavia, na pesquisa antes referida, constatamos que a jurisprudência muito pouco avançou na análise da matéria, mantendo vínculos muitos firmes com nossa tradição patrimonialista, desconsiderando solenemente paradigmas como o da função social.

Hipótese interessante para explicar a paradoxal situação talvez seja a trazida pelo antropólogo James Holston[2], que argumenta que no Brasil não faltam leis, residindo o problema central na “torção” que delas se faz a fim de atender a determinados interesses e de conservar as bases de nossa “cidadania diferenciada” que sempre mantiveram as coisas mais ou menos em seu “devido” lugar. Assim, Izidora[3] ou Pinheirinho[4] não merecem, aos olhos de quem aplica a lei, a mesma “compreensão” que se tem com Alphaville[5].

A grande dificuldade, portanto, na atuação da Defensoria Pública, reside no fato de se deparar com uma legislação que reconhece direitos que, contudo, não são observados nem pelos particulares nem pela administração pública nem pelo próprio Poder Judiciário. Daí decorre a necessidade de o defensor público ter sua estratégia de atuação baseada na educação em direitos e na solução extrajudicial de conflitos. Quanto à educação em direitos, definimo-la como a conscientização do interessado a respeito das possibilidades — e também dos limites — de qualquer atuação jurídica, evitando a construção de expectativas irreais, permitindo o ingresso tendentemente consciente do cidadão nas esferas institucionais de aplicação do direito. Em relação à solução extrajudicial, frisamos que a administração pública, por vezes, acaba sendo mais “sensível” à questão do que o Judiciário, como observou Enzo Bello[6] em sua pesquisa, o que recomenda que, antes ou em paralelo à judicialização, haja tratativas com o Poder Executivo. Assim, o tradicional roteiro de atendimento/ajuizamento pode não ser o melhor caminho a ser trilhado, pois invariavelmente inexitoso.

De outro lado, não menos importante é que o cidadão assistido se conscientize de que o agir político da comunidade afetada é certamente mais determinante que os instrumentos manejados juridicamente. Dessa forma, apenas uma cidadania “insurgente”[7] e engajada poderá assegurar que o processo de solução do conflito ou de reivindicação do direito seja bem-sucedido. Frisamos, nesse sentido, que também a tradicional postura do assistido de que — “o caso já está com o defensor” — como se dele nada mais dependesse, também se revela insuficiente, exigindo que todos reexaminem seus papéis.

Portanto, o que se conclui é que, não obstante inexista hierarquia entre direitos fundamentais, é certo que determinados direitos, como a saúde, são tratados de forma mais benevolente pelos tribunais, enquanto outros — que interessam mais diretamente às pessoas carenciadas — são solenemente sonegados, como a moradia. Desse quadro decorre a necessidade de a Defensoria Pública construir alternativas à sistemática tradicional de atendimento e se conscientizar — e buscar conscientizar o(s) assistido(s) — dos limites e possibilidades do sistema de Justiça, fomentando uma atuação multilateral, jurídica e política, a fim de assegurar a efetiva tutela do direito proclamado pela Constituição.


[1] A questão foi analisada mais calmamente em “Conflitos Habitacionais Urbanos: Atuação e Mediação Jurídico-Política da Defensoria Pública”, publicado pela Editora Juruá, neste ano. Antes, porém, a temática foi abordada com menor profundidade em "Educação em Direitos e Defensoria Pública", obra publicada pela mesma editora no ano de 2014, em que divido a autoria com Domingos Barroso da Costa.
[2] Em Cidadania Insurgente, publicado em 2013 pela Companhia das Letras.
[3] Comunidade em Belo Horizonte.
[4] Comunidade em São Paulo.
[5] Conforme já cantou o rapper Emicida, em Dedo na Ferida, “Alphaville é invasão; incrimine-os”.
[6] Em “A cidadania na luta política dos movimentos sociais urbanos”, publicado em 2014 pela Educs, o jurista carioca detectou que o Poder Executivo se mostra mais suscetível a intervir em prol dos ocupantes de baixa renda com vistas à concretização do direito à moradia do que o Judiciário, ainda muito atrelado ao viés patrimonialista acima destacado.
[7] Como definida por James Holston.

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    é defensor público no Rio Grande do Sul. Especialista em Direito Urbanístico e mestre em Direito Ambiental, é autor de “Conflitos Habitacionais Urbanos: Atuação e Mediação Jurídico-Política da Defensoria Pública”.

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