Suscetibilidade corporativa

Estado não tem de indenizar pretores ofendidos por desembargador gaúcho

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13 de outubro de 2015, 14h36

O princípio da responsabilidade objetiva não pode ser aceito no âmbito dos atos judiciais porque a atuação do julgador sempre resultará em alguma perda para uma das partes. Se esse dano fosse indenizável, todo o efeito dos litígios seria transferido ao estado, causando verdadeira ‘‘socialização dos prejuízos’’. Assim, a regra ampla contemplada no artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição, deve ser trazida para os limites indicados no seu artigo 5º, inciso LXXV, que admite a indenização quando o ato é falho (erro na sentença) ou quando falha o serviço (excesso de prisão).

O fundamento levou o Superior Tribunal de Justiça a não conhecer o Recurso Especial 1196671 e, por consequência, manter acórdão que livrou o estado do Rio Grande do Sul da obrigação de indenizar em danos morais 27 pretores. Eles foram tachados de incompetentes pelo desembargador Nelson Antônio Monteiro Pacheco, do Tribunal de Justiça gaúcho, em acórdão prolatado em 11 de junho de 2004, que encerrou uma discussão sobre a inamovibilidade da classe.

‘‘Nesse contexto, a responsabilidade do ora recorrido [estado do Rio Grande do Sul] em indenizar os danos que teriam sido causados aos recorrentes [pretores] fora afastada exclusivamente com base na interpretação dada ao artigo 36, parágrafo 6º, da Constituição Federal, cujo exame é vedado em recurso especial, sob pena de usurpação da competência atribuída ao Supremo Tribunal Federal’’, expressou a ministra-relatora, Assusete Magalhães, em seu voto. 

Os pretores — tecnicamente denominados de juízes togados de investidura limitada — eram admitidos na Justiça comum gaúcha mediante concurso público de provas e títulos até 1988 — data da promulgação da Constituição Federal. Em abril de 2013, a Lei 14.235/13, que alterou dispositivos da Lei 6.929/75 (Estatuto da Magistratura), passou a reconhecê-los como magistrados. Hoje, existem 37 pretores na ativa, cargos que serão extintos à medida que seus titulares forem se aposentando. O recurso especial que negou a indenização foi julgado na sessão do dia 17 de junho.

Ação indenizatória
As palavras de Pacheco foram proferidas durante o julgamento de recurso (70008677809), no âmbito de uma ação que contestou a remoção de dois pretores numa comarca da Grande Porto Alegre. Naquela sessão, acompanhando o voto do relator, Pacheco teceu algumas considerações sobre a atividade de pretor, que também exercera numa comarca do interior.

Numa das intervenções, dirigindo-se ao representante do Ministério Público, disse: ‘‘O magistério de Nelson Oscar de Souza [Manual de Direito Constitucional] aqui reproduzido é a amostra efetiva deste ‘trem da alegria’ que, então, se patrocinou, porque só é pretor hoje quem não teve competência para passar nos concursos para juiz de Direito, isso ninguém de nós pode ignorar. Vossa excelência, doutor Brusque de Abreu, teve competência para passar no concurso do Ministério Público’’. Após, dirigindo-se ao advogado dos autores da ação, que fez a sustentação oral na tribuna da sala de julgamento, arrematou: ‘‘ (…) Com a máxima vênia, não vejo aí risco de ataque às garantias da magistratura, pois esses juízes temporários, que, até hoje, chamo de autoridades judiciárias, não tiveram nunca as garantias, tiveram sempre as prerrogativas’’.

A manifestação desagradou profundamente 27 pretores, que ajuizaram ação indenizatória contra o estado na 3ª Vara da Fazenda Pública do Foro Central da capital gaúcha. Na inicial, alegaram que o ‘‘detrator’’, de modo inoportuno, considerou os pretores como uma classe inferior, formada por pessoas incapazes de passar em um concurso para juiz de Direito. Em síntese, tais palavras foram proferidas em desprestígio da classe, causando danos aos seus integrantes.

O juiz Niwton Carpes da Silva reconheceu que as palavras do desembargador lançadas no acórdão foram ‘‘duras, cruéis e até desnecessárias’’, mas tiveram conotação menos impactante no contexto dos fatos. Neste caso, ‘‘a análise deve ser contextualizada e o acórdão lido na inteireza e na completude’’ — destacou na sentença. É que a parte da ofensa foi reproduzida da obra do doutrinador Nelson Oscar de Souza.

O mesmo pode ser dito, segundo Carpes, quando Monteiro afirmou que faltou competência aos pretores para passar no concurso de juiz de Direito. ‘‘Se simplesmente examinarmos a afirmação sob a ótica parcial e torcida de que o eminente desembargador Nelson Pacheco chamou os pretores de incompetentes, em outra situação, em outra circunstância, que não um julgamento envolvendo justamente as garantias da magistratura, se são ou não alcançáveis por essa categoria — pretores —, a conclusão seria lógica e inafastável de que teria havido ofensa deliberada e acintosa’’, expressou Carpes.

Conforme o julgador, o ato de jurisdição, às vezes, agride e machuca, mas qualquer exegese na interpretação deve ser benéfica ao estado, pois é difícil julgar sem desagradar uma das partes ou mesmo terceiros. Assim, encerrou, a ‘‘interpretação benevolente’’ e a ‘‘exegese restritiva’’ resultam da leitura atenta do artigo 133 do Código de Processo Civil combinado com os artigos 41 e 49 da Loman (Lei Complementar 35, de 1979). Afinal, todos os dispositivos destacam, sem exceção, hipóteses restritas de responsabilização funcional e civil do magistrado na prestação da jurisdição.

Recursos
Inconformados, os pretores apelaram à 9ª Câmara Cível do TJ-RS. Em julgamento realizado no dia 17 de dezembro de 2008, a maioria do colegiado firmou entendimento de que o magistrado não deve ir além dos limites do caso concreto, tecendo impressões pessoais sem relevância para o desfecho da causa em julgamento. ‘‘Não é lícito ao órgão jurisdicional, por meio de quem lhe representa, fazer comentários atentatórios à dignidade de quem quer que seja — acobertado pelo escudo da independência e da soberania” —, sob pena de por isso ter de responder civilmente’’, registrou o acórdão.

Para a desembargadora-relatora, Marilene Bonzanini, a palavra ‘‘competência’’ foi empregada em sentido pejorativo e aviltante por parte do desembargador. ‘‘Compreender de forma diversa, em que pese possível, significa tratar com demasiada complacência inaceitável manifestação’’, expressou no voto. Reconhecida a lesão aos direitos de personalidade da classe dos pretores — expressos no artigo 5º da Constituição —, a 9ª Câmara Cível arbitrou o quantum indenizatório em R$ 6 mil para cada autor da ação.

Como a decisão se deu por maioria, o estado entrou com embargos infringentes no 5º Grupo Cível — que reúne a 9ª e a 10ª Câmaras Cíveis —, pedindo a prevalência do voto divergente da desembargadora Íris Helena Medeiros Nogueira, que manteve a sentença de improcedência.

Reunidos em sessão de julgamento no dia 15 de maio de 2009, os cinco desembargadores decidiram, em sua maioria, acolher o voto divergente, que confirmou na íntegra a sentença do juiz Niwton Carpes. Para o relator, desembargador Paulo Kretzman, já aposentado, a responsabilidade do estado pelos atos judiciais deve ser reconhecida somente nas hipóteses previstas em lei, como sinalizam diversos precedentes julgados pelo Supremo Tribunal Federal.

Mais uma vez derrotados, os autores ingressaram com recurso especial no Superior Tribunal de Justiçam em 6 de julho de 2010. A ação indenizatória foi analisada, em definitivo, pela ministra Assusete Magalhães, na sessão de 17 de junho de 2015.

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