Opinião

A reforma tributária estrutural do Brasil proposta por Mangabeira Unger

Autor

  • Marcos de Aguiar Villas-Bôas

    é advogado conselheiro da 1ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e ex-assessor para assuntos tributários da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Doutor em Direito Tributário pela PUC-SP e mestre em Direito pela UFBA.

10 de outubro de 2015, 8h30

O ex-ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da República e professor da Harvard University, Roberto Mangabeira Unger, meu estimado mestre, gravou há pouco tempo, antes de deixar o seu cargo, um vídeo no qual apresenta uma proposta de reforma tributária que mexeria completamente com a estrutura do sistema brasileiro[1]. Ao contrário das propostas superficiais que são apresentadas com frequência no Brasil, Mangabeira sugere medidas que são avançadas até mesmo para os países mais desenvolvidos do mundo, que, por sinal, se encontram em um nível infinitamente à frente do brasileiro em termos de design de políticas tributárias.

Mangabeira Unger, pensador amplamente respeitado no planeta, apresenta três pilares que deveriam sustentar a estrutura do sistema tributário: a) um Imposto sobre o Valor Agregado – IVA (ou VAT), proposta já conhecida no Brasil e que se tentou implantar algumas vezes; b) um Imposto sobre os Gastos (expenditure tax); e c) um Imposto sobre a Exportação que penalize mais aquelas operações com produtos cujo nível de agregação produtiva dentro do país é baixo. Apesar de não fazer parte do vídeo, em outras intervenções Mangabeira Unger considera também fundamental uma adequada tributação progressiva das doações e heranças (ITCMD).

O IVA (ou VAT) é um tributo federal cobrado em mais de 160 países do mundo. Nas melhores teorias e práticas, ele consiste numa tributação unificada do consumo, com o máximo de simplicidade e neutralidade. É um imposto que, se bem desenhado, permite grande arrecadação de receitas com baixa redução de eficiência econômica. O seu problema é ser regressivo, ou seja, atinge ricos e pobres na mesma proporção, gerando mais insatisfação, obviamente, a esses últimos, que têm menos riqueza e renda disponível. Essa é, aliás, a razão pela qual o presente subsistema de tributação do consumo, que envolve PIS/COFINS/IPI/ICMS/contribuição previdenciária sobre a receita, precisa ser simplificado e ter a sua carga tributária reduzida com muita urgência. Sem que isso aconteça, dificilmente teremos um crescimento relevante e sustentável no Brasil.

Para que o sistema não seja regressivo, é preciso criar um imposto bastante progressivo, que permita cobrar bem mais daqueles que têm muito mais para contribuir. Seria o caso do Imposto sobre os Gastos (expenditure tax), também chamado de Imposto Progressivo sobre o Consumo (progressive consumption tax), que ficou mais conhecido pela obra de Nicholas Kaldor.

O Imposto sobre os Gastos assemelha-se ao Imposto sobre a Renda, porém ele deduz todos os investimentos realizados pelo contribuinte, de modo que se tributa a diferença entre toda a renda e todo o investimento, resultando naquilo que é gasto em cada período. A tributação universal da renda aumentaria a progressividade do sistema, que hoje não abarca, por exemplo, os dividendos, além de que permitiria tributar pesadamente aqueles que gastam muito na sua vida de consumismo.

Esse imposto incentivaria, portanto, os investimentos, mas poderia provocar uma redução do consumo. Há também um sério risco de redução da arrecadação, ou ao menos de seu diferimento, por conta da não tributação da renda toda no período em que é auferida. Tendo em vista a possibilidade de deduzir a renda investida, apenas no momento em que houvesse o desinvestimento é que se poderia tributar até mesmo os retornos decorrentes dos investimentos, momento que poderia levar muito mais tempo para chegar.

Por essa e outras razões é que alguns autores, assim como eu, preferem defender uma boa faixa de isenção para os retornos dos investimentos, e não que eles sejam totalmente deduzidos para efeitos de tributação. No caso prático brasileiro, poderia haver uma isenção para o retorno num percentual correspondente à SELIC, a taxa básica de juros. Atualmente, o Brasil tributa, em regra, a diferença entre o valor investido inicialmente e o valor aplicado (ou resgatado) em determinado momento, o que significa apreender na base de cálculo até mesmo o percentual correspondente à inflação, levando a uma erosão do poder de consumo do cidadão e a um desincentivo para investir.

De qualquer forma, a proposta de Mangabeira traz um assunto praticamente desconhecido no Brasil e que merece ser analisado com cuidado. Caso não se conclua que a ideia de Kaldor deveria ser adotada integralmente, pode-se talvez chegar a um desenho intermediário, que seja bem mais progressivo do que é o Imposto sobre a Renda da Pessoa Física – IRPF hoje no Brasil, incidente mais sobre a classe média do que sobre os muito ricos. Outro ponto importante é a elevação dos investimentos, que são extremamente baixos em nosso país, sobretudo se comparados com os países desenvolvidos.

A terceira proposta de Mangabeira Unger tem o objetivo de elevar o nível de agregação dos produtos exportados, incentivando uma maior industrialização. O Brasil se concentrou demasiadamente nos últimos anos na exportação de commodities, bens primários nada ou quase nada desenvolvidos no país. Esse tipo de exportação, dentre outros aspectos negativos, gera bem menos empregos do que a exportação de produtos fortemente industrializados dentro do país.

O problema da proposta de tributar as exportações é dificultar a competitividade do produto brasileiro no exterior. Atualmente, o Brasil, assim como os países mais desenvolvidos em geral, desonera bastante as exportações, dando, inclusive, incentivos fiscais para os exportadores, como é o caso do crédito presumido de PIS/COFINS do REINTEGRA. A proposta de Mangabeira Unger poderia ser talvez um pouco modificada para, em vez de tributar mais os produtos primários, dar um incentivo fiscal maior, como o próprio REINTEGRA, na medida em que o grau de industrialização no país aumentasse.

Por fim, a quarta proposta do genial professor de Harvard segue a linha mundial de tributar bem progressivamente as transferências de riqueza, de modo a contribuir para uma melhor distribuição dos ônus tributários dentro da sociedade. Esse tipo de imposto age sobre aquele que recebe uma riqueza “de bandeja”, devendo ser cobrado no destino, exatamente daquele que tem um aumento de riqueza por recebimento de outrem. Diferenciações podem ser realizadas com relação ao grau de proximidade entre aquele que transfere e aquele que recebe a riqueza, como já tive a oportunidade de sugerir anteriormente[2].

Ainda que a redistribuição de riqueza e renda seja mais efetiva no momento do gasto, quando se garante os meios para que os indivíduos possam produzir e consumir, o lado da tributação deve pensar, também, fundamentalmente na redistribuição, evitando que se retire demais daqueles que já têm muito pouco, prejudicando, de qualquer forma, sua capacidade de produzir e consumir.

Deste modo, as duas pontas são essenciais para que haja mais eficiência e equidade na economia. Mais equidade é uma consequência óbvia, porque a redistribuição retira mais daqueles para os quais cada R$ 1 tem menos utilidade pelo fato de já terem riqueza e renda consideráveis. No caso de pessoas muito pobres ou pobres, maior parte da população brasileira, R$ 1 tem uma importância enorme.

Muitas vezes não se percebe que a redistribuição aumenta também a eficiência, tendo em vista que o muito rico não pode consumir 30 pares de sapatos, nem 20 refeições por dia. Deixar cada um com, ao menos, um mínimo de renda necessário para uma sobrevivência digna, retirando bem mais daqueles que têm muito mais, significa distribuir adequadamente a capacidade de consumo, mantendo um nível alto na economia, assim como significa dar as mínimas condições de autofinanciamento para que cada um possa se desenvolver, produzir e contribuir para a mesma economia, reduzindo, assim, a marginalização e a violência.

A única conclusão indiscutível em termos de política tributária é que não há proposta indiscutível. As sugestões de Mangabeira Unger levam o debate nacional para um nível mais elevado, sugerem novos estudos e novas experimentações por parte dos agentes tomadores de decisão. O sucesso socioeconômico brasileiro depende visceralmente de políticas tributárias muito mais avançadas do que aquelas até então adotadas. Torçamos para que elas cheguem o quanto antes!

 


[1] UNGER, Roberto Mangabeira. Regime tributário. Disponível aqui. Acesso em: 29. set. 2015.

[2] Disponível aqui. Acesso em: 7. out. 2015. 

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