Resenha

Filme Orestes mostra que policiais ainda aplicam métodos da ditadura

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8 de outubro de 2015, 16h26

“Não sou a favor de assassinatos, mas, no conflito entre polícia e bandido, quem tem que morrer é o bandido”, afirma a assistente social Sandra, com lágrimas no rosto e trajando uma blusa branca com a frase “Justiça é o que se busca” — nome da organização por ela comandada que reúne parentes de vítimas de crimes.

Logo após a fala de Sandra, um policial a interrompe e diz que “ninguém tem que morrer”. Ele explica que os agentes são forçados a acreditar que estão em guerra contra os criminosos. Sendo assim, eles pensam que “é matar ou morrer” e abusam da violência, especialmente contra pobres, negros e jovens. E a situação não muda, porque as escolas de formação não discutem erros policiais nem formas menos lesivas de abordar suspeitos, aponta o agente.

Essa permanência das agressões, torturas e execuções policiais dos governos Castello Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo nas práticas atuais da polícia, mesmo após 30 anos do fim da ditadura militar (1964-1985), é explorada pelo documentário Orestes, do diretor Rodrigo Siqueira (Terra Deu, Terra Come). Como o ótimo Verdade 12.528, da jornalista Paula Sacchetta e do fotógrafo Peu Robles, o filme mostra que a situação não irá mudar enquanto o Brasil não passar a limpo a história do período e punir os agentes do Estado que cometeram crimes contra cidadãos.

Logo no início da película, Ñasaindy, filha dos militantes de esquerda assassinados pelo regime militar José Maria e Soledad, mostra fotos de sua infância e diz ser “arqueóloga de sua própria história”. Isso porque ela tem mais dúvidas do que certezas sobre sua infância. A principal delas é “por que o namorado da minha mãe a entregou ao Dops?”.

O delator era o cabo Anselmo, agente dos militares infiltrado em movimentos de resistência. Ele contou ao delegado paulista Sérgio Paranhos Fleury que um grupo de militantes estava reunido em uma chácara em Recife. Todos foram torturados e mortos. Depois se descobriu que Soledad estava grávida do traidor. No filme, aparecem trechos da entrevista que ele deu em 2011 ao Roda Viva, da TV Cultura, na qual diz não se arrepender de nada e que entregou os ativistas para acabar com os conflitos no país.

Em seguida, uma outra mulher, Eliana, conta que seu filho foi assassinado pela polícia e enterrado como indigente no cemitério de Perus, na Grande São Paulo. É uma história semelhante à do pai que relata a morte de seu filho pela PM por supostamente estar portando um revólver. “É sempre o mesmo roteiro”, garante uma defensora pública. De acordo com ela, a fórmula é a seguinte: a polícia executa alguém que considera suspeito, planta uma arma junto ao corpo dele e diz que foi recebida a tiros e que a única opção era revidar. Dessa forma, em vez de ser aberta uma investigação por homicídio, a ocorrência é registrada como legítima defesa, no chamado auto de resistência.

Ao contrapor a história da filha de uma morta pela ditadura com a de pais que tiveram filhos assassinados pela PM, Orestes explicita que a chegada da democracia não alterou o modus operandi das corporações de segurança pública — vide o fato de a polícia brasileira ter sido apontada pela Anistia Internacional como a que mais mata no mundo, sendo responsável por 15,6% dos homicídios no país.

E isso fica ainda mais evidente quando são mostradas as sessões de psicodrama, espécie de terapia em grupo que usa a representação para explorar a psique humana. Nelas, as vítimas do passado e do presente percebem a semelhança de suas histórias.

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Filme simula júri sobre homem que viu pai torturar e matar sua mãe.
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Julgamento de Orestes
O nome do filme vem da trilogia Oréstia, do dramaturgo grego Ésquilo. Na tragédia, Orestes mata a própria mãe para vingar a morte do pai. Porém, contrariando as previsões, o júri de atenienses o absolve, acabando com a política do olho por olho, dente por dente. Com isso, as Erínias, deusas da vingança, viram as Eumênides, defensoras da democracia.

O hipotético Orestes moderno apresentado no documentário assistiu, quando tinha seis anos, ao seu pai, Gilson, torturar e assassinar sua mãe, Socorro, que era militante. Depois de 37 anos, um repórter promove um encontro entre pai e filho, mas deixa a sala quando eles se encontram. Quando volta ao recinto, presencia Orestes enforcando Gilson e batendo repetidamente sua cabeça no chão, até matá-lo.

Orestes então vai a júri por homicídio. No julgamento ficcional, encenado no Tribunal de Justiça de São Paulo, o procurador de Justiça paulista Maurício Ribeiro Lopes interpreta o acusador. Para ele, a Lei da Anistia (Lei 6.683/1979) deveria ter sido revogada pelo Supremo Tribunal Federal em 2010, permitindo a responsabilização de agentes estatais, como Gilson, pelos crimes cometidos durante a ditadura. Porém, isso não ocorreu, e a conduta do filho deve ser punida, alega.

Na defesa de Orestes está o advogado José Carlos Dias, ministro da Justiça no segundo governo de Fernando Henrique Cardoso. O seu argumento é que o ato do filho se deu em legítima defesa da mãe e, por tal razão, ele deveria ser absolvido. Segundo Dias, trata-se de um homicídio passional e político, que não foi premeditado.

Apesar das divergências, acusação e defesa — em boas atuações de Lopes e Dias, ambos donos de retórica afiada — concordam que a Lei da Anistia promoveu uma conciliação forçada e desproporcional entre militares e militantes. Vale lembrar que a norma livrou os autores de crimes políticos, mas não os que praticaram “crimes de sangue”, como sequestro, terrorismo e atentado. O problema é que as torturas e assassinatos de agentes estatais foram considerados delitos políticos e, consequentemente, perdoados, algo que não foi feito com práticas semelhantes daqueles que combatiam a ditadura.

Com isso, as Forças Armadas jamais assumiram a culpa pela sua violência contra cidadãos, e seus membros nunca foram julgados por seus crimes — ao contrário do que ocorreu em países como Argentina e Chile. E, quando finalmente resolvemos botar o passado a limpo, com a instauração da Comissão da Verdade, em 2011, o fizemos de forma meia-boca, sem atribuir-lhe poderes de alterar leis. Assim, a falta de punição faz com que ainda vejamos tantas pessoas defendendo os crimes dos militares.  

E não só os da época, mas os atuais de policiais contra supostos “bandidos”, conforme demonstra Sandra no filme. E por mais que seja colocada cara a cara com Eliana e Ñasaindy, ela não cede, e continua a tentar justificar os assassinatos de seus parentes e diferenciar as mortes cometidas por policiais das levadas a cabo por “marginais”. Sem constrangimento, a assistente social se declara a favor da pena de morte e afirma que, “se a polícia em todos os assaltos abordasse e matasse, para mim já resolvia o problema”.

Orestes mostra que esse tipo de discurso não seria tão popular se militares da ditadura e policiais atuais tivessem sido e fossem devidamente punidos por suas torturas e execuções. Embora o psicodrama fique cansativo e forçado no final da película, o documentário é essencial para compreender a cultura da violência no Brasil. Afinal, a frase de Sandra citada no início deste texto é ouvida desde 1964. A única diferença é que os termos “terrorista” ou “subversivo” estavam no lugar de “bandido”.  

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