Opinião

Teorias da argumentação jurídica e hermenêutica não são incompatíveis

Autor

  • Manuel Atienza

    é professor Catedrático do Departamento de Filosofia do Direito da Faculdade de Direito da Universidad de Alicante Espanha.

8 de outubro de 2015, 15h19

Rafael Oliveira e Lenio Luiz Streck me fizeram a honra de comentar a entrevista que nesta revista Consultor Jurídico me fizera André Rufino do Vale, no último dia 5 de setembro, e aproveito a ocasião (e a amabilidade da revista) para acrescentar um comentário (ao comentário dos professores) e esclarecer algumas coisas que talvez possam ser de interesse para os leitores da ConJur.

O comentário de Oliveira e Streck, que foi publicado no último 19 de setembro, em realidade se refere, basicamente, a duas de minhas afirmações. Uma de caráter geral: “a filosofia do Direito brasileira necessita de menos hermenêutica e mais filosofia analítica”. E outra bastante concreta: ao ressaltar que me parecia que a filosofia do Direito brasileira mostrava uma tendência a assumir posições excessivamente abstratas e inadequadas para dar resposta aos problemas que realmente importam, o entrevistador me pede um exemplo e eu lhe respondo deste modo: “Parece muito estranho que se possa pensar que Heidegger nos dará a chave para a compreensão ou a crítica das súmulas vinculantes”. Comecemos então pela afirmação mais concreta.

Os professores Oliveira e Streck dizem se sentir perplexos ante minhas palavras: “nunca encontramos nenhum trabalho digno de nota que tenha afirmado algo parecido com essa assertiva do professor espanhol… Não se recorre a Heidegger para encontrar uma ‘chave’ de compreensão ou crítica das súmulas vinculantes”. Veja-se bem, ainda que eu não tenha deixado expresso na entrevista, o exemplo dado foi na realidade retirado de um trabalho do professor Streck que eu havia lido há uns meses. Voltei agora a este mesmo trabalho para verificar se minha lembrança era ou não exata e me parece que sim, de fato, ela era correta. Mas deixo, de toda forma, que o leitor possa avaliar por conta própria, a partir do texto de Streck que eu tinha em mente. Trata-se do seguinte: comentando uma obra de Merold Westphal, Streck afirmava (em “Reflexión sobre ‘neoconstitucionalismo-positivismo jurídico’”, que forma parte do volume coletivo editado por Susana Pozzolo “Neoconstitucionalismo, Derecho y derechos”, Editora Palestra, Lima, 2011, p. 192):

“En efecto, es muy interesante que la crítica del “mito de lo dado” hecha por Heidegger es uno de los puntos centrales para que se pueda elaborar, por ejemplo, una crítica consistente a las Súmulas Vinculantes…y al modus interpretativo dominante en el plano de la doctrina y de la jurisprudencia”.

E em nota de rodapé Streck desenvolve essa crítica afirmando que as súmulas vinculantes são “respuestas a priori, ‘ofrecidas’ antes que las preguntas (que solamente ocurren en los casos concretos)”, “una especie de ‘anticipación de sentido’, una ‘tutela anticipatoria de las palabras’”, “el producto de un neopandectismo, reactivando la pretensión de construcción de ‘realidades supra-buenas’, en que los conceptos adquieren ‘vida autónoma’”, etc.

Vamos agora à afirmação mais geral. Oliveira e Streck consideram que minha afirmação de que a filosofia do Direito no Brasil necessitaria de “menos hermenêutica e mais filosofia analítica” é algo mais que equivocada. E como argumentos para isso oferecem, entre outros, os três seguintes: 1) “é ontologicamente impossível pretender mais analítica e menos hermenêutica”; 2) “a analítica, sem hermenêutica, não consegue contribuir com muita coisa”; 3) “pretender mais analítica e menos hermenêutica é recair num positivismo ingênuo e carente de historicidade, que acredita que as palavras sejam mais importantes que os conceitos”. Argumentos aos quais, desde logo, me resulta fácil responder: 1) é um enunciado ininteligível, talvez um desses casos nos quais, como diria Wittgenstein, “a linguagem sai de férias” e se utiliza de maneira simplesmente descontrolada; 2) é um exemplo de falsidade textual, pois minha afirmação não tratava de suprimir a hermenêutica, mas sim de lhe conceder um papel menos relevante que o que, me parece, tem na jusfilosofia brasileira; 3) é um non sequitur: simplesmente, pois da pretensão de mais analítica e menos hermenêutica não decorre que, por isso, se incorra em um “positivismo ingênuo”, etc.

Bom, todo o anterior não tem em realidade muita importância, pois é possível que toda essa discussão (como ocorre em tantas disputas doutrinárias) seja basicamente sobre mal-entendidos. Quero, por isso, voltar a colocar a questão que poderíamos considerar como de fundo: tem sentido propor algo assim como uma reorientação na filosofia brasileira que possa ser sintetizada com o lema de “mais filosofia analítica e menos hermenêutica”? Eu creio que sim, ainda que reconheça que não sou a pessoa mais adequada para fazê-lo. Apesar de que me atrevo a efetuar as seguintes observações que, na realidade, não pretendem outra coisa que servir de esclarecimento das afirmações que parecem não terem sido bem apreciadas pelos professores Oliveira e Streck.

Filosofia analítica e hermenêutica não são conceitos fáceis de definir. Não obstante, me parece que um traço que caracteriza aos jusfilósofos analíticos (o que eu tinha fundamentalmente em mente naquela entrevista) é um afã pela clareza e pela precisão conceitual. E isso é algo que, receio, nem sempre se pode dizer daqueles que se consideram hermeneutas. Esse amistoso debate com os professores Oliveira e Streck é, em minha opinião, um exemplo disso. Espero que não levem a mal, mas tenho dificuldade em ver o que Streck diz sobre as súmulas vinculantes — como quer que se interprete — como uma contribuição para uma discussão produtiva acerca desse importante tema. E a maneira como entenderam minhas afirmações na entrevista me leva a pensar que se pode ser teoricamente muito partidário da hermenêutica, da pré-compreensão etc., mas na prática não estar nada disposto a efetuar o menor esforço (hermenêutico) para entender o outro sem muitas tergiversações. Bom, é certo que este não é um pecado exclusivo dos filósofos hermeneutas. Mas talvez eles sejam os que com maior razão podem ser cobrados a dar o exemplo.

Não creio (ao contrário do que supõem meus interlocutores) que a hermenêutica e a filosofia analítica sejam concepções necessariamente incompatíveis entre si. Faz tempo escrevi um artigo (foi publicado como parte de um livro: Cuestiones judiciales, Fontamara, México, 2002) defendendo a tese de que os juízes e, em geral, os juristas fariam muito bem em tomar elementos dessas concepções para resolver os problemas interpretativos que devem enfrentar em sua prática. Especificamente, eu revisava os aportes que sobre a interpretação jurídica fizeram os autores representativos de cada uma dessas duas tradições (Guastini, por parte dos jusfilósofos analíticos, e Dworkin, como exemplo de pensador com uma forte influência da filosofia hermenêutica) e chegava à conclusão de que na interpretação há um aspecto “técnico” ao qual Dworkin não presta muita atenção (e que Guastini contribuiu notavelmente a esclarecer), mas também um aspecto teórico (de filosofia moral e política), que exige a adoção de alguma concepção semelhante à defendida por Dworkin. E, a propósito disso, eu gostaria de esclarecer duas coisas. A primeira é que o objetivismo moral que eu defendia na entrevista (e pelo qual Oliveira e Streck não parecem ter precisamente simpatia) é de um tipo muito parecido ao que se pode encontrar na obra de Dworkin: não um objetivismo que pressuponha o realismo moral, mas um objetivismo das razões, a ideia de que sobre as questões morais, valorativas, é possível construir um discurso racional dotado de critérios de correção. E a segunda é que a concepção argumentativa do Direito, que eu tratei de construir, parte dessa concepção, digamos, complexa da interpretação: uma concepção que não descuida dos elementos “hermenêuticos”, mas que trata de integrá-los com os de caráter técnico-jurídico (esquemas lógicos dos argumentos, natureza e peso dos critérios — cânones — interpretativos, etc.).

E com isso chego ao que, parece-me, constitui a base dessa polêmica e que talvez não seja exatamente a contraposição entre analítica e hermenêutica, mas sim entre um enfoque hermenêutico e um enfoque argumentativo do Direito. Nos últimos tempos me encontrei com certa frequência com jusfilósofos ou juristas brasileiros que, muito influenciados por Lenio Streck, afirmavam ser partidários da filosofia hermenêutica e, por isso, críticos em relação às teorias da argumentação jurídica. Porém, tem sentido essa contraposição? Eu creio que não. Em vários de seus escritos (entre outros, o que antes citava), o professor Streck fez uma crítica às concepções argumentativas do Direito, as quais acusou de desconhecerem os elementos hermenêuticos do discurso jurídico, de defender o positivismo jurídico etc. Porém, em minha opinião, são críticas claramente infundadas. As que podem ser consideradas como teses fundamentais da hermenêutica (a de que no mundo do humano o sujeito forma parte do próprio processo de conhecimento; a inevitabilidade da pré-compreensão; o círculo hermenêutico, em suas diversas modalidades; a necessidade de assumir um ponto de vista interno quando se trata de compreender; etc.) podem ser perfeitamente assumidas por uma teoria da argumentação jurídica e, de fato, não tenho nenhuma dúvida de que formam parte dela. De minha parte, defendo um conceito amplo de argumentação que inclui tanto uma dimensão formal (lógica), como também uma dimensão material e pragmática (retórica e dialética); e considero que uma das maiores contribuições a esse componente material da argumentação encontra-se precisamente na obra de Dworkin. E, claro, não tem nenhum sentido qualificar os argumentativistas de juspositivistas, simplesmente porque não o são: não o foi Viehweg, nem tampouco Perelman; não o é, claramente, Alexy; e, no caso de MacCormick, o positivismo hartiano de suas primeiras obras foi substituído, em suas obras de maturidade, por uma concepção explicitamente não-positivista do Direito. De modo que, como digo, o que existe não é exatamente uma contraposição entre a concepção hermenêutica e a concepção argumentativa do Direito. O que hoje temos é, por um lado, o que poderíamos denominar uma “proto-teoria do Direito” de inspiração hermenêutica (não incluo aqui o caso de Dworkin) e, por outro lado, uma (ou melhor, várias) teorias argumentativas do Direito que abarcam a proto-teoria anterior, e que, sem ser desde logo satisfatórias, vão muito além, isto é, desenvolvem as “intuições” dos hermeneutas até convertê-las em ferramentas úteis para compreender a prática jurídica e nela atuar com sentido. Esse enfoque argumentativo do Direito é, em grande medida, tributário da jusfilosofia analítica, e daí a afirmação que eu fazia naquela entrevista e que efetivamente, ainda que sem nomeá-lo, tinha bastante a ver com a obra de Lenio Streck.

* Texto traduzido por André Rufino do Vale

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