Opinião

Prisão antecipada do réu após condenação em 2ª instância é inconstitucional

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6 de outubro de 2015, 12h05

A Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) apresentou recentemente ao Senado o Projeto de Lei (PLS 402/2015) para reformar o atual Código de Processo Penal para permitir a prisão de réus condenados em segunda instância pela prática de crimes graves.

Conforme se depreende do bojo do próprio Projeto, o principal objetivo desta proposta de modificação na legislação processual penal pátria consiste em tornar a prisão a regra nos casos em que houver condenação em segundo grau de jurisdição.

Alega-se para tanto que, com o advento de decisão condenatória de 2ª instância, passa-se a ter uma certeza, ainda que provisória, da responsabilidade/culpabilidade do réu, situação esta que, por si só, já autorizaria a execução antecipada da pena fixada ao acusado.

O argumento é o de que a Justiça Criminal não vem sendo eficaz no combate a estes crimes graves (crimes de tráfico de drogas, tortura, terrorismo, corrupção ativa ou passiva, peculato e lavagem de dinheiro.), visto que, além da possibilidade de interposição de uma infinidade de recursos defensivos ou, até mesmo, protelatórios, a própria morosidade do Judiciário impediria a aplicação da lei penal, o que culmina com a grande sensação de impunidade na sociedade brasileira.

Desta forma, de acordo com a referida proposta apresentada ao Senado, em junho, a decretação da prisão após o julgamento em 2ª instância poderá levar em consideração, dentre outros fatores, a culpabilidade e os antecedentes do condenado, as consequências ou até mesmo a gravidade do crime. Isto é, a prisão, medida coercitiva, atualmente, de caráter excepcional, tornar-se-á a regra no processo penal, o que, conforme se demonstrará ao longo desta exposição, configura grave afronta aos princípios penais e constitucionais que norteiam o ordenamento jurídico pátrio.

É preciso ressaltar que o Brasil, atualmente, é um Estado Democrático de Direito, o qual, através da Constituição Federal de 1988, assegura aos seus cidadãos, diversos direitos e garantias fundamentais.

Neste sentido, por consentâneo lógico, tem-se que o processo penal deve pautar-se em nosso texto constitucional, razão pela qual, não obstante em um processo almeje-se sempre alcançar a maior efetividade ao longo da prestação jurisdicional, deve-se ter bastante cautela para se evitar qualquer tipo de arbitrariedade estatal, principalmente, quando implicar a relativização dos direitos e garantias fundamentais do acusado.

É preciso enaltecer desde já o princípio constitucional da ampla defesa, o qual se encontra previsto no artigo 5º, inciso LV, da CF/88. Diz o dispositivo:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)

LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

Desta forma, considerando que em uma relação processual frente ao Estado o réu sempre será a parte hipossuficiente na ação penal, nada mais justo e lógico que lhe garantir um tratamento mais adequado e condizente com a sua condição, razão pela qual a Constituição Federal assegura o direito de se valer de amplos e extensos métodos para se defender da imputação penal formulada pelo órgão acusatório.

Neste contexto, afasta-se, desde já, a constitucionalidade do PLS 402/2015 por ferir o princípio da ampla defesa. A proposta pretende permitir a decretação de prisão do réu quando do julgamento de 2ª instância, mesmo que sem esgotar a possibilidade de defesa do acusado, o qual ainda é detentor da legitimidade para interpor diversos recursos, defendendo-se material e processualmente das imputações contra si imputadas.

Não se pode olvidar que é justamente nas cortes superiores de Justiça, onde se conta com uma maior experiência dos julgadores, que será realizado um exame mais técnico e aprofundado da lide, razão pela qual, por consentâneo lógico, maior a probabilidade da prolação de uma decisão mais acertada no cumprimento de sua função jurisdicional.

Portanto, considerando a real possibilidade de reforma da decisão condenatória no âmbito das cortes superiores de Justiça, resta temerário, para não dizer inconstitucional, permitir a prisão do condenado antes do trânsito em julgado de sua demanda quando ausentes os requisitos autorizadores previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal.

É preciso lembrar, ainda, que o ordenamento jurídico prevê o princípio da presunção de inocência. Este importante postulado constitucional, também conhecido por princípio da não-culpabilidade, assegura que todo e qualquer réu será presumido inocente até que sobrevenha sentença condenatória transitada em julgado, senão vejamos o disposto na Carta Magna. Diz o dispositivo:

Art. 5º
(…)
LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

Tal princípio somente reforça que o ônus da prova é imputado à acusação, e jamais à defesa. O estado de inocência é a regra, cabendo ao órgão acusatório demonstrar, de forma inconteste, a responsabilidade do acusado pela prática de determinada infração penal.

Neste sentido, cumpre evidenciar que a presunção de inocência possui, ainda, o condão de ratificar que o Direito Penal, por tratar da liberdade individual do cidadão, representa a ultima ratio, isto é, o último meio a ser utilizado pelo Estado para combater determinado ilícito, razão pela qual a prisão, como medida excepcional que é, jamais poderá decretada quando ausentes os pressupostos autorizadores de tal privação.

Cumpre ressaltar que o reconhecimento da autoria e materialidade de qualquer infração penal pressupõe a prolação de uma decisão condenatória transitada em julgada. Desta forma, considerando que o réu é presumivelmente inocente até o referido marco, não há como se conceber o encarceramento do acusado durante a persecução penal sem que estejam presentes os requisitos tipificados no Código de Processo Penal, sob pena de se estar efetivando a antecipação de um juízo condenatório ou de culpabilidade, o que é terminantemente vedado em nosso ordenamento jurídico.

Como é cediço, o Código de Processo Penal brasileiro prevê taxativamente as hipóteses que a prisão poderá ser decretada antes do trânsito em julgado da ação penal. Consoante se verifica no bojo do artigo 312 do referido dispositivo legal, somente será admitida a decretação da prisão do acusado ao longo do processo quando estritamente necessária à garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal.

Desta forma, por se tratar de medida excepcionalíssima constritiva do direito de liberdade do réu, caberá ao julgador descrever, de forma concreta e específica, as eventuais razões que justificariam, casuisticamente, o encarceramento do acusado, não podendo se utilizar de argumentos genéricos para tal desiderato.

Nesta senda, ratificando o supracitado caráter de excepcionalidade, é que o próprio Código Adjetivo Penal (através da reforma processual introduzida pela Lei 12.403/2011) prevê expressamente a possibilidade da decretação de outras medidas cautelares diversas da prisão.

Tais medidas, que serão explicitadas logo a seguir, buscam evitar os malefícios da segregação provisória, por meio do encarceramento de acusados, que, ao final da instrução, podem ser absolvidos ou condenados a penas ínfimas.

Desta forma, a nosso ver, não merece prosperar o Projeto de Lei 402/2015 da Associação dos Juízes Federais do Brasil, vez que intenta tornar regra a prisão do acusado quando de sua condenação em segunda instância mesmo havendo diversas outras possibilidades mais adequadas, privilegiando e valorizando sempre a dignidade da pessoa humana, afetando o menos possível o cidadão sobre o qual não paira o peso da condenação criminal transitada em julgado.

Assim sendo, apontam-se como exemplo de medidas cautelares diversas da prisão: a) comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades; b) proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações; c) proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante; d) proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução; e) recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos; f) suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais; g) internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração; h) fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial; i) monitoração eletrônica.

Cumpre ressaltar, ainda, que, não obstante sejam medidas cautelares diversas do encarceramento, todas elas representam uma restrição antecipada à liberdade individual do acusado, razão pela qual se deve ter, também, bastante cautela quando de sua decretação. Não se pode perder de vista que o estado de inocência somente finda quando do trânsito em julgado da ação penal.

Prosseguindo, ainda, na defesa da inconstitucionalidade e ilegalidade do referido Projeto de Lei, destaca-se o princípio constitucional-penal do In Dubio pro Reo ou do Favor Rei, o qual assegura que, entre o jus puniendi (direito de punir) do Estado e o status libertatis (estado de liberdade), sempre prevalecerá a inocência do acusado.

Neste sentido, muito embora seja de farto conhecimento que o princípio do In Dubio pro Reo tenha sua aplicabilidade mais direcionada ao momento do julgamento da ação,quando existir eventual dúvida no concernente à existência do fato e/ou à autoria, não se pode deixar de aplicar este importante postulado em qualquer fase processual.

Desta forma, sempre que houver qualquer dúvida entre o estado de inocência do réu, consubstanciado pela sua liberdade, e o poder-dever do Estado de punir, a dúvida sempre militará em favor do acusado. É preferível aguardar o trânsito em julgado da ação penal para se aplicar a pena ao réu a decretar sua prisão, ainda que seja por um único dia de custódia, havendo a possibilidade de sua absolvição nas cortes superiores de Justiça, o que causaria irreversível dano à dignidade da pessoa do investigado.

Assim, a decretação da prisão do réu antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória somente será legal e legítima se esta tiver natureza cautelar. Jamais será admitida como meio antecipação de condenação penal baseada em uma “certeza provisória” da culpabilidade do acusado.

Não se pode permitir jamais, ainda que após pronunciamento judicial de 2ª instância, a inversão do ônus da prova em favor do Estado para imputar ao réu a obrigação de provar sua inocência. Esta é constitucionalmente presumida, cabendo ao Estado demonstrar, de forma inconteste, a culpabilidade do acusado e, ao fim da ação penal, após seu trânsito em julgado, aplicar a sanção devida na legislação substantiva penal.

É preciso salientar que o posicionamento ora defendido é o atual e consolidado entendimento emanado pelo Supremo Tribunal Federal, onde já restou sedimentado, desde 2009, que o réu tem direito a recorrer em liberdade em caso de decretação de prisão, até que estejam esgotadas todas as possibilidades de recurso, ainda que já tenha condenação em segunda instância.

Em se tratando da esfera criminal, o STF (HC 84.078) assevera que a presunção de inocência tem o condão de impedir a prisão do condenado até o último recurso possível (incluindo o extraordinário e especial para os tribunais superiores).

Apesar de louvável a iniciativa legislativa capitaneada pelo respeitável juiz federal Sérgio Moro na propositura do Projeto de Lei 402/2015, deve-se ter bastante cautela para que tal finalidade não venha desrespeitar diversos direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição Federal.

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