Contas à Vista

Depósitos judiciais, litigância tributária e a "regra de ouro" financeira (parte 2)

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

6 de outubro de 2015, 8h00

Spacca
Entre a última coluna, no mês passado, e esta que hoje circula, ocorreu no dia 21 de setembro, como previsto, a audiência pública convocada pelo Supremo Tribunal Federal, coordenada pelo ministro Gilmar Mendes, na qual esteve presente também o ministro Edson Fachin, para tratar das diversas ADIs em que se discute a constitucionalidade do uso dos depósitos judiciais pelo Poder Executivo estadual.

A latere do debate já em curso no STF, foi promulgada a Lei Complementar 151/15, que, como lei nacional, permitiu o uso desses recursos pelo Poder Executivo de estados e municípios até o limite de 70% do que estiver depositado judicialmente, para uso nos seguintes tipos de gastos, considerados de forma sucessiva, isto é, que só se pode gastar no item seguinte se o anterior estiver satisfeito: 1) pagamento de precatórios, sejam os correntes, sejam aqueles em atraso; 2) pagamento de dívida fundada, caso haja dinheiro suficiente para o pagamento dos precatórios — o que é uma hipótese cerebrina, pois o item anterior prevê o pagamento dos valores de precatórios  em atraso e dos correntes, logo, dificilmente sobrará dinheiro para pagamento da dívida fundada além dos próprios precatórios em atraso, que também são dívida fundada (artigo 30, parágrafo 7º, LRF); 3) despesas de capital (investimento público) e; 4) recomposição dos fundos previdenciários.

Assim, o que já é perigoso e está em discussão no STF (diversas leis estaduais) pode piorar substancialmente em termos de desequilíbrio das contas públicas dos entes subnacionais com a Lei Complementar 151/15, pois potencializa seus efeitos deletérios incluindo os mais de 5.500 municípios nesse processo.

Declaro desde já que não estou advogando para nenhum dos lados envolvidos no debate. Nenhum Poder Executivo estadual ou municipal, nem o Poder Judiciário de algum estado nem as instituições bancárias. E nem estou advogando para alguma associação que congregue as partes acima mencionadas. E sou solidário com o enorme exército de credores de precatórios estaduais e municipais ao longo do Brasil. Escrevo na qualidade de docente de Direito Financeiro e de Direito Tributário, preocupado com o direito dos contribuintes da atual e das futuras gerações — quase um “ombudsman tributário autodeclarado”, sem cargo algum para o desenvolvimento desse mister. Como penso que a função da doutrina é doutrinar, e não dizer amém aos poderosos de plantão, escrevo sobre o tema, preocupado com o bolso dos contribuintes.

Feitas essas considerações preliminares, vamos aos pontos problemáticos dessa questão, aproveitando o que foi apresentado na audiência pública do dia 21 de setembro, cuja divulgação ocorreu por meio do boletim Notícias do STF do mesmo dia.

O primeiro deles é a palpável ameaça que os contribuintes estaduais e municipais terão com o enorme poder que estará disponível nas mãos do Poder Executivo, de criar tributos e poder levantar 70% dos valores que forem depositados. Mencionei na coluna anterior o que ocorreu em alguns estados com a criação de uma Taxa de Fiscalização de Recursos Minerais (contestada perante o STF nas ADIs 4785, 4786 e 4787), em que os contribuintes foram obrigados a depositar judicialmente os valores envolvidos, o que é uma pratica corrente em diversos entes subnacionais, como se pode constatar com a mais recente criação da Taxa de Fiscalização de Recursos Hídricos, já sob fogo no STF (ADI 5374). Ou seja, o Poder Judiciário perde força no debate, e também os contribuintes, pois o governador atual, e os prefeitos, poderão levantar o dinheiro depositado pelos contribuintes e deixar eventual devolução dos recursos para seus sucessores. Aliás, exatamente como vem sendo feito com os precatórios estaduais e municipais, que não haviam sido pagos pré-Constituição de 88 e foram sendo pedalados (artigo 33, ADCT), pedalados (artigo 78, ADCT, EC 30/2000) e pedalados novamente (artigo 86, ADCT, EC 37/2002), e, por fim, ainda pedalados (artigo 97, ADCT, EC 62/2009, combinado com as ADIs 4357 e 4425). Esse sistema cria a possibilidade de estados e municípios obterem empréstimos de todos os depositantes judiciais para pagamento de precatórios vencidos, e cria a possibilidade de serem necessários futuros precatórios para que esses depositantes levantem o dinheiro que têm direito. Realmente, o Brasil é uma “terra em transe” por pedaladas — Glauber Rocha redivivo.

Observe-se que, ao criar uma fonte de recursos para o pagamento de precatórios em atraso, receitas serão liberadas para outros gastos, livres, o que dará fôlego financeiro aos governantes atuais em tempos escassos, porém isso comprometerá o cofre futuro.

Deixar os depósitos judiciais nas mãos do Poder Judiciário é o “menos pior” dos mundos, pois esse Poder recebe uma taxa de spread bancário em razão da gestão desses valores. Na verdade, esse montante deveria ser pago aos contribuintes-depositários, como remuneração por seus depósitos, e não ao Judiciário. Mas esse é um “mal menor” em face do que se avizinha.

Pode parecer que essa operação de finanças públicas está estruturada como uma operação com o sistema financeiro privado, mas não é a mesma fórmula — explico o motivo. No sistema financeiro privado, os bancos emprestam a terceiros o dinheiro que deixamos em nossa conta corrente, mantendo uma parte dele como “depósito compulsório” em caixa (isto é, trata-se de um montante que o Banco Central impede os bancos privados de usar para efetuar empréstimos a terceiros). A fórmula financeira pública usada pela Lei Complementar 151/15 é semelhante, mas tem um aspecto que muda tudo. Enquanto os bancos privados contam com recursos depositados pelos correntistas todos os dias, o sistema de depósitos judiciais vai minguar dia a dia, em razão da possibilidade de uso do seguro garantia e das fianças bancárias contra estados e municípios, que passou a ser permitido pela Lei 13.043, promulgada em 13 de novembro de 2014, ou seja, há menos de um ano. Essa lei alterou o artigo 9º, II, da Lei de Execuções Fiscais (Lei 6.380/80), permitindo que o contribuinte utilize fiança bancária ou seguro garantia para garantir o débito nas ações de execução fiscal estaduais e municipais, o que afasta a obrigatoriedade de depósitos judiciais. Portanto, trata-se de um fundo com tendência financeira decrescente.

Certamente existirá quem prefira efetuar depósito judicial em vez de prestar garantias (fiança ou seguro), até em razão do custo dessas garantias, que muitas vezes inviabilizam a discussão judicial. Mas com o capital de giro minguante e o risco de não devolução, os depósitos judiciais deverão ser reduzidos, e não acrescidos. Logo, o fundo previsto será, em pouco tempo, insuficiente para manter o equilíbrio entre seu uso pelo Poder Executivo e a garantia de sua devolução aos litigantes. Isso compromete a sustentabilidade desse fundo. O que vier a ser raspado pelos atuais governadores e prefeitos não terá reposição no mesmo ritmo financeiro da acumulação despendida.

Não há sombra de dúvidas de que a operação em curso se caracteriza como dívida pública, embora tenha havido manifestações em sentido contrário na referida audiência pública e em alguns textos posteriores.

As dívidas públicas podem ser bancárias (financeiras) ou não bancárias (não financeiras). Um bom exemplo de dívida não financeira são os precatórios em atraso. Se caracterizam como despesa pública se “pagos durante a execução do orçamento em que houverem sido incluídos”, caso contrário, “integram a dívida consolidada”, conforme dispõe o artigo 30, para 7º, da Lei de Responsabilidade Fiscal. Logo, o uso de ingressos públicos (que não se constituem em receitas públicas, pois devem ser devolvidos) para a realização de despesas se caracteriza como um empréstimo público, e que deve seguir a regra jurídica estabelecida para os mesmos, dentre elas: 1) só pode ocorrer para gastos de capital, isto é, investimento (artigo 167, III, CF); 2) deve estar dentro do limite global fixado pelo Senado para a dívida consolidada de estados e municípios (artigo 52, VI, CF) e; 3) deve obedecer as condições previstas pelo Senado para esse tipo de empréstimo interno (artigo 52, VII, CF), dentre outros aspectos. Essas normas constitucionais não fazem diferença entre dívidas públicas bancárias ou não bancárias, portanto se aplicam ao gênero dívida pública.

Aqui se casam as duas vertentes em debate: o julgamento referente a diversas ADIs, lideradas pela ADI 5072-RJ, da qual resultou a audiência pública mencionada, e o julgamento da ADI 5.361, proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), em que se discute a Lei Complementar 151/15. Os assuntos são correlatos e devem ser tratados de forma conjunta, no mérito, para afastar dúvidas acerca da matéria. Não tendo sido obedecidas as normas constitucionais acima apontadas, a consequência será a declaração de inconstitucionalidade da norma — sejam as estaduais, objeto da audiência pública, sejam as da LC 151/15.

Declarar inconstitucional o uso desses recursos depositados seguramente protegerá as futuras gerações, porque elas serão obrigadas a pagar tributos para quitar os empréstimos hoje obtidos, e também sofrerão o anunciado calote na devolução desses depósitos judiciais — pedalada anunciada e legalizada, se o STF não cumprir o papel de guardião da Constituição e evitá-la. É preciso acabar com a mentalidade “curtoprazista” na administração pública.

Como referido na coluna anterior, depósitos judiciais não são receitas públicas, mas ingressos.  Ingressos não são receitas; eles apenas transitam pelos cofres públicos. Receitas correspondem a valores que acrescem o patrimônio público. Conceitos que Regis de Oliveira expôs com maestria[1]. Logo, não se pode fazer dívida para realizar despesas correntes. Aí está a inconstitucionalidade dessas leis estaduais e da Lei Complementar 151/15. Não se trata da espécie tributária empréstimo compulsório na forma do artigo 148, CF, mas de um empréstimo público, tomado por estados e municípios de todos os depositantes judiciais, que deve ser devolvido e que será utilizado para gastos correntes, o que viola a regra de ouro financeira, prevista no artigo 167, III, CF, o qual determina que o endividamento só pode ocorrer para a realização de despesas de capital. Ademais, é necessário ver a questão da responsabilidade fiscal, pois muitos entes subnacionais já estão completamente endividados, não podendo acrescer mais essas dívidas a seu passivo — que pode até mesmo já estar sendo subdimensionado (vide, por exemplo, que a devolução dos créditos de ICMS não vem sendo contabilizada no passivo dos estados).

Pela divulgação realizada por meio do boletim Notícias do STF do dia 21 de setembro, não me parece que esses aspectos tenham sido amplamente abordados, mas é de fundamental importância o STF voltar seus olhos para eles, pois são fulcrais no entendimento da questão, em que os contribuintes — atuais e futuros — estão sem ninguém que exponha os argumentos necessários para sua defesa. As partes que defendem os diversos interesses em jogo não deram atenção para quem paga ou pagará essa conta, pois na audiência pública só foram discutidos os aspectos do uso e da partilha dos recursos. Parodiando João Cabral de Mello Neto, o debate foi para discutir a parte que cabe a cada um nesse latifúndio fiscal, mas não para ouvir quem pagará essa conta.

É sempre necessário ouvir o grito contido no interior do silêncio dos autos.

Autores

  • é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; professor da USP e livre docente em Direito pela mesma universidade.

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