Opinião

Sentença em ação popular ambiental pode gerar mais malefícios do que benefícios

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5 de outubro de 2015, 9h10

A ação popular entrou para o constitucionalismo brasileiro através da Carta Política de 1934 e foi suprimida com o advento do Estado Novo em 1937, sendo restabelecida no ordenamento por disposição constitucional [artigo 141, parágrafo 38, da CF/46]. A ação popular foi mantida pelas Constituições ditatoriais de 1967 [artigo 150, parágrafo 31] e de 1969 [artigo 153, parágrafo 31]. A Constituição de 1988, em seu artigo 5°, inciso LXXIII, concedeu a ação popular o seu contorno atual nestes termos:

Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência.

O Constituinte de 1988 acrescentou a moralidade administrativa e o meio ambiente como bens a serem tutelados por via de ação popular. Como bem referido por Teori Zavascki:

Chamam a atenção dois significativos acréscimos aos bens tuteláveis: a moralidade administrativa e o meio ambiente. É reflexo natural da valorização desses bens jurídicos pelo novo regime constitucional, que erigiu a moralidade como princípio de administração pública [artigo 37] e que alçou o meio ambiente ecologicamente equilibrado à condição de “bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações [artigo 225].[1]

No âmbito infraconstitucional a ação popular teve o seu trâmite regulamentado pela Lei 4.717/1965. A legitimação ativa é reservada a qualquer cidadão [artigo 1°] que atua na condição de substituto processual. Ou seja, em nome próprio defende os interesses de toda a coletividade. Teori Zavascki defende esta posição amparado pela jurisprudência do STF[2] e é acompanhado também por Ruy Armando Gessinger[3], Moacir Amaral dos Santos[4] e Seabra Fagundes[5].

Existe discussão doutrinária sobre a necessidade da presença do binômio lesividade-ilegalidade do ato para que uma ação popular possa ser julgada procedente. Em sede de jurisprudência o entendimento histórico do STF era de que a lesividade e ilegalidade deveriam ser provadas uma e outra, de forma independente, para que a ação popular pudesse ser julgada procedente. Neste sentido leading case que teve o voto condutor do ministro Djaci Falcão[6]. Todavia, nos dias atuais, em sede de jurisprudência, o egrégio STF evoluiu e tem entendido que a lesividade do ato está implícita no próprio conceito de ilegalidade[7].

Existe hoje, além disso, uma tendência jurisprudencial em ampliar os casos de presunção de lesividade que, na maioria das vezes, decorre da própria ilegalidade do ato impugnado.[8] A fortiori a presunção de lesividade em tempos de aquecimento global e riscos de danos catastróficos[9] ao meio ambiente necessita ser reconhecida e levada a sério pelo Poder Judiciário na ação popular ambiental.

É de se entender que a lesão ao meio ambiente por si só é inconstitucional, pois fere o artigo 225 da Constituição Federal. Não há necessidade de comprovação deste binômio para a procedência da demanda, porque a lesividade ao meio ambiente, para além de ato ilegal em sentido lato, é ato inconstitucional que viola o núcleo essencial do direito fundamental ao meio ambiente equilibrado.

É aplicável a ação popular o instituto da antecipação dos efeitos da tutela tal qual previsto nos artigos 273, 461, parágrafo 3°, do CPC ainda em vigor (a partir de 16 de março de 2016 estará em vigor o novo CPC, constante na Lei 13.105/2015) por força do que dispõe o artigo 22 da Lei 4.717/65, segundo o qual aplicam-se à ação popular ambiental as regras do Código de Processo Civil, naquilo em que não contrariem os dispositivos desta Lei, nem a natureza específica da ação.

A LAP prevê em seu parágrafo 4° do artigo 5° que “na defesa do patrimônio público caberá a suspensão liminar do ato lesivo impugnado”. Esta medida, sem sombra de dúvida, trata-se de típico exemplo de antecipação dos efeitos da tutela. Observa-se que o instituto da antecipação dos efeitos da tutela está de acordo com a finalidade da Lei de Ação Popular.

Outrossim, está expressamente previsto no texto da ação popular uma medida cautelar no artigo 14, parágrafo 4°. Ou seja, “a parte condenada a restituir bens ou valores ficará sujeita a sequestro e penhora, desde a prolação da sentença condenatória”. A medida cautelar ambiental visa evitar os danos ambientais enquanto tramita a ação principal pelo rito ordinário e, em sede de antecipação de tutela, reparar os danos ambientais causados e evitar que se perpetuem ou ocorram.

Não há dúvida alguma que o poder geral de cautela do juiz está presente também quando se trata do processamento e julgamento de uma ação popular ambiental. A ação cautelar ambiental é inerente à sistemática de nosso ordenamento. Ademais, a própria lei de ação popular determina a aplicação subsidiária do CPC naquilo que não contrariá-la.

Ao se deferir uma liminar em questão ambiental, com base no princípio da precaução, é importante que o julgador avalie as críticas formuladas por Cass Sunstein ao princípio nas suas versões mais fortes, que permitem a sua aplicação em virtude de riscos de danos que não estão efetivamente comprovados e que podem gerar custos e novos riscos muito superiores aos benefícios pretendidos. A aplicação de uma versão forte do princípio da precaução pode causar um efeito paralisante sobre atividades econômicas e de pesquisa gerando prejuízo econômico e social. Para isso Sunstein sugere que se realize uma análise de custo-benefício da medida de precaução a ser adotada.[10]

Embora não possa ser desconsiderada, a posição de Cass Sunstein merece crítica, pois existem bens que não são quantificáveis, nas palavras de Michael Sandel,[11] como meros valores econômicos, o que inviabiliza uma análise de custo-benefício mais precisa. Segundo o jus filósofo de Harvard o homem, a natureza e os seres vivos possuem o direito ao respeito[12] e este muitas vezes dificilmente pode ser valorado de modo pecuniário para que se possa embasar uma decisão justa com base na pura e simples análise do custo-benefício da medida.[13]

Certos riscos comprovados cientificamente e causados pelo homem que geram o aquecimento global, o aumento do buraco da camada de ozônio e colocam em risco a biodiversidade precisam ser levados em consideração pelo Estado-Juiz na hora de aplicar o princípio da precaução sem que o custo de sua aplicação ou a invocação ad terrorem do princípio da reserva do possível sejam impeditivos para a proteção ambiental. Esta análise precisa ser realizada, para além da análise do custo-benefício, sob o crivo do princípio da proporcionalidade, observados os vetores da vedação do excesso e da insuficiência.[14]

Como bem referido por Klaus Bosselmann “não pode haver prosperidade sem justiça social e não pode haver justiça social sem prosperidade econômica e ambas devem estar dentro dos limites da sustentabilidade ecológica”.[15] Este balanceamento de valores e de direitos fundamentais precisa ser realizado pelo magistrado no momento da prestação jurisdicional nas tutelas de urgência, para além dos requisitos previstos nos artigos 273 e 461 do CPC [a ser substituído pelo novo CPC, a partir de 16 de março de 2016, de acordo com a lei 13.105/2015], em uma perspectiva pragmática e consequencialista.

O puro formalismo e o legalismo podem levar a graves equívocos e a danosas e irreversíveis consequências econômicas, sociais e ambientais.[16] Não se pode desconsiderar as advertências de Richard Poesner, sobre o ato de julgar, no sentido da necessária superação do puro realismo [tendência marcante no início do Século XX nos Estados Unidos] e do formalismo legalista [teoria comportamental judicial dominante] para que sejam também consideradas as consequências e os efeitos das decisões judiciais.[17]

A sentença de procedência na ação popular é marcada por sua eficácia desconstitutiva e condenatória. O juiz ao sentenciar decreta a invalidade do ato impugnado e condena os responsáveis pela ação ou omissão lesiva ao ambiente, ou beneficiários diretos, ao pagamento por perdas e danos [artigo 11] e reparação/recomposição do bem ambiental agredido. É bem verdade que a sentença também possui eficácia declaratória, todavia, valendo-se aqui da classificação quinária das ações de Pontes de Miranda[18], frisa-se, que a eficácia preponderante da sentença efetivamente é desconstitutiva e condenatória.

Aliás, em relação à eficácia condenatória do comando sentencial, esta fica evidenciada na ordem expedida contra os réus para o pagamento do valor da condenação, das custas e das demais despesas judiciais e extrajudiciais diretamente relacionadas com a ação e devidamente comprovadas, bem como dos honorários advocatícios [artigo 12].

Se a sentença for julgada improcedente por ausência de provas de danos ao meio ambiente não transitará em julgado materialmente e poderá ser ajuizada novamente por qualquer cidadão com idêntico fundamento de lesão ou ameaça de dano ao ambiente, valendo-se de nova prova [artigo 18]. É preciso impedir que a ação popular seja utilizada de forma ardilosa por pessoas que pretendem valer-se de eventual efeito erga omnes da sentença para legitimar atos lesivos ao meio ambiente. Neste regime de coisa julgada [secundum eventum litis], coloca-se o bem juridicamente tutelado [meio ambiente] a salvo de atuação deficiente do substituto processual. O autor por desídia, má-fé e colusão pode colaborar para a improcedência da demanda.

A sentença na ação popular ambiental terá eficácia de coisa julgada oponível erga omnes se for julgada procedente ou improcedente com apreciação de provas. A coisa julgada é peculiar à natureza do direito tutelado [direito transindividual] e ao fato deste ter sido defendido em juízo por substituto processual.

Em relação ao sistema recursal a ação popular ambiental segue a sistemática da legitimidade ampliada da apelação [qualquer cidadão pode apelar de uma ação popular ambiental julgada improcedente]. São cabíveis das decisões, dependendo do caso e do gravame causado, recursos de embargos de declaração, embargos infringentes, recurso especial e recurso extraordinário, tal qual previstos no CPC ainda em vigor.

O prazo para ajuizar ação popular é de cinco anos a contar do ato lesivo conforme consta no artigo 21 da LAP e é de cunho decadencial como afirmado por J.M. Othon Sidou[19] e Ernane Fidélis dos Santos.[20] Em sentido contrário é o escólio de Heraldo Garcia Vitta no sentido de que o prazo é prescricional[21]. Todavia, se a ação popular for ajuizada para tutelar o meio ambiente esta é imprescritível, no entendimento do mesmo autor, tendo em vista que “trata-se de instrumento de proteção da sadia qualidade de vida das pessoas”.[22]

O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, seguindo entendimento do STJ, já decidiu pela imprescritibilidade dos danos ambientais. Tal como consta em culto voto do desembargador Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, relator para o acórdão, nos Embargos Infringentes 2008.71.99.003999-0/RS, ao afastar a prescrição em matéria de dano ambiental.

O melhor entendimento, de fato, é que a ação popular por danos causados ao meio ambiente é imprescritível. A melhor forma de tutelar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações, com respeito à biodiversidade e, em especial, para evitar o aquecimento global[23], as emissões de carbono[24] irresponsáveis e a ampliação do buraco na camada de ozônio[25] é a existência de institutos jurídicos sólidos que sejam eficazes para a reparação, restauração e estancamento de atividades prejudiciais ao meio ambiente e que permitam um desenvolvimento atento ao princípio da sustentabilidade[26].

Em suma, a ação popular ambiental é um importante instrumento processual de tutela do meio ambiente no interesse das presentes e futuras gerações. Todavia, a referida ação democrática precisa ser ajuizada e apreciada com a ponderada e acautelada observância dos vetores da vedação do excesso e de insuficiência que compõe a estrutura do princípio constitucional da proporcionalidade, vigente em nosso sistema jurídico, para que não gere mais malefícios do que benefícios sociais, econômicos e ambientais.


1 ZAVASCKI, Teori. Processo Coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos.págs.84-85. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.

2 STF. Relator Ministro Sepúlveda Pertence. Rcl 424/RJ.DJU.04.09.96.

3 Obra cit.,págs. 29-30.

4 Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, vol. I, página 390, ed. 1978.

5 Apud, Paulo Barbosa de Campos Filho, Da Ação Popular Constitucional, página 167, Edição Saraiva, 1968.

6 STF/RE 77.679. DJU.13.09.74.

7 STF.Relator Ministro Marco Aurélio.RE 160381/SP.DJ.12.08.94.

8 STF/ RE 120.768 – Relator: Ministro Ilmar Galvão – DJ de 13/08/99.

9 Ver SUNSTEIN. Cass. Worst-Case Scenarios. Cambridge: Harvard University Press, 2007.

10 Ver SUNSTEIN, Cass. Laws of Fear. Beyond the Precautionary Principle. New York: Cambridge University Press, 2005 e SUNSTEIN, Cass. Worst- Case Scenarios. Cambridge: Harvard University Press, 2007.

11 SANDEL. Michael. What Money Can’t Buy. The Moral Limits of Markets. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2012.

12 SANDEL, Michael. The case against perfection. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2013. págs. 132-133.

13 Ver SANDEL, Michael J. Justice: What’s the Right Thing to do? New York: Farrar, Straus and Giroux, 2010.

14 Ver WEDY, Gabriel. O princípio constitucional da precaução como instrumento de tutela do meio ambiente e da saúde pública. Belo Horizonte: Editora Interesse Público, 2009.

15 BOSSELMANN, Klaus. The Principle of Sustainability: Transforming Law and Governance. p. 53.

16 Ver POESNER, Richard. How judges think. Cambridge: Harvard University Press, 2010.

17 Ver o recentíssimo POESNER, Richard A. Reflections on Judging. Cambridge: Harvard University Press, 2013.

18 PONTES DE MIRANDA. Tratado das Ações. Vol. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970. págs. 130-134.

19 SIDOU, J. M. Othon. Habeas Corpus, Mandado de Segurança, Mandado de Injunção, Hábeas Data, Ação Popular. As garantias ativas dos direitos coletivos.p. 378. Rio de Janeiro, Forense: 2000.

20SANTOS, Ernani Fidéllis dos. Manual de direito processual civil. p. 208.3ª.ed. Ed. Saraiva. São Paulo: 1998.

21 VITTA, Eraldo Garcia. O meio ambiente e a ação popular.p. 45. São Paulo: Saraiva, 2000.

22 Obra cit.,p. 82.

23 Sobre o aquecimento global ver GIDDENS, Anthony. The Politics of Climate Change. Cambridge: Polity Press, 2009; POESNER, Eric A, WEISBACH, David. Climate Change Justice. Princeton: Princeton University Press, 2010;

24 Ver AL GORE. The Assault on Reason. New York: The Penguin Press, 2007.

25 Ver FARMAN, Joe. Halocarbons, the ozone layer and the precautionary principle in HARREMOES, Poul et all. The Precautionary Principle in the 20th Century. Late Lessons from Early Warnings. London: Earthscan, 2002. págs. 79-89.

26 Ver necessariamente BOSSELMANN. Klaus. The Principle of Sustainability. Transforming Law and Governance. Farnham: Ashgate, 2009 e FREITAS, Juarez. Sustentabilidade. Direito ao Futuro. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2011.

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    é juiz federal, é ex-presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) [2010-2012]. ex-presidente da Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul (Ajufergs) [2008-2010]. Doutorando e Mestre em Direito. Visiting Scholar pela Columbia Law School.

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