Embargos Culturais

Ensino do evolucionismo e o julgamento de John Thomas Scopes

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP e advogado consultor e parecerista em Brasília ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

4 de outubro de 2015, 8h01

Spacca
Chamo a atenção para interessante e de algum modo atual debate ocorrido na década de 1920, nos Estados Unidos da América, que opôs valores tradicionalistas e progressistas, e que apontou para os desafios de uma intrigante interface entre Direito e religião. Essa relação pode ser explorada em vários matizes.

No centro da discussão à qual vou me referir, a influência e o peso do fundamentalismo na construção da unidade pedagógica e cultural norte-americana, no contexto das antinomias entre darwinismo e criacionismo, provavelmente ainda não superadas. Trato do famoso julgamento do professor John Thomas Scopes, que a literatura jurídica norte-americana registra como o “Monkey Trial”[1]; reminiscência da história do Direito que radica simultaneamente na expansão do evolucionismo e na crítica ao sistema darwinista.

Na década de 1920, o legislativo do estado do Tennesse havia promulgado o Butler Act, texto normativo que criminalizou o ensino do darwinismo nas escolas públicas norte-americanas. Havia forte apego a valores tradicionais, que alguns legisladores sentiram como ameaçados, por força da multiplicação de professores que insistiam em também ensinar as hipóteses exploradas por Charles Darwin, nesse inesgotável e superior tema, que é o mistério da vida.

A medida legislativa do estado do Tennesse foi então contestada pela American Civil Liberties Union (ACLU), que optou por plantar um caso teste, a partir da atuação de um professor, John Thomas Scopes. Este foi preso em maio de 1925 por ter ensinado o evolucionismo na Rhea County High School, escola pública que funcionava no estado que exigia que a única hipótese explicativa da origem da vida a ser ensinada nas escolas deveria ser o criacionismo. A lei fora usada para determinar conteúdos escolares, o que atesta a forte presença de valores dominantes na construção de currículos pedagógicos. Pouca coisa deve ter mudado.

Levado a julgamento, o réu foi defendido por Clarence Darrow, famoso advogado norte-americano, agnóstico militante[2]. Na acusação, Willliam Jennings Bryan, fundamentalista respeitado por suas posições firmes. Previa-se uma imaginária batalha entre luz e escuridão, entre religião e ciência; isto é, tomando-se essas categorias como antagônicas, como sugere um ideário comum, marcado por intenso maniqueísmo.

A discussão, em termos contemporâneos, alcançaria também o tema da liberdade acadêmica. Scopes invocou que ensinava o evolucionismo, mas que não negava, necessariamente, a versão criacionista. Provou também que o livro texto que utilizou era vendido com autorização do estado. Nesse sentido, argumentou que não haveria razões para que fosse penalizado pelos assuntos abordados em sala de aula. Invocava também direitos protegidos pela primeira emenda à constituição norte-americana, designadamente aqueles que albergavam as liberdades de crença e de expressão.

No tumultuado julgamento, Darrow chamou seu opositor, Bryan, como testemunha, questionando-o sobre várias passagens do livro de Gênesis. Pressionando Bryan, no sentido de vislumbrar alguma impossibilidade de interpretação integral e literal do texto bíblico, Darrow constrangeu seu opositor. A prova, no entanto, foi retirada posteriormente dos autos, julgada como irrelevante pelo juiz que conduzia esse julgamento. Bryan teria tido dificuldades em sustentar no debate a absoluta possibilidade de interpretação literal de todas as passagens do livro de Gênesis. O professor foi considerado culpado, mantendo-se a constitucionalidade da lei discutida, que vigorou nos Estados Unidos até 1967.

Esse julgamento (que não resolveu o problema conceitual em jogo, justamente porque o Direito não detém o poder de fixar dogmas de fé ou axiomas de ciência) lembra-nos, no entanto, uma irresistível tendência das sociedades, que transferem a um árbitro que julgam neutro e imparcial, o poder para a decisão de questões marcadas por dissensos ideológicos e existenciais. A ninguém é dado o direito de impor suas idiossincrasias: é esse o ponto de partida e de chegada para a compreensão dessa enigmática e embaraçosa figura que chamamos de “o outro”.


[1] Aspectos factuais e informações aqui indicadas foram colhidas em Knappman, Edward W., John Thomas Scopes Trial (1925), in Edward W. (editor), Great American Trials, from Salem Withcraft to Rodeney King, Detroit, Washington, D.C., London: Visible Ink, 1994, pp. 312-317. Em alguns pontos tem-se versão livre minha de alguns excertos do livro aqui citado.
[2] Para o conhecimento desse advogado brilhante, Darrow, Clarence, The story of my life, New York: Scribner´s, 1932.

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