Opinião

Emendas aglutinativas sucessivas favorecem o autoritarismo

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2 de outubro de 2015, 9h12

O processo legislativo brasileiro — nas duas mais polêmicas propostas de Emendas à Constituição da atual legislatura (a PEC 182/2007, sobre a Reforma Política, e a PEC 171/1993, sobre a redução da menoridade penal) — virou motivo de piada depois que o presidente da Câmara dos Deputados conseguiu reverter, em menos de 24 horas, o resultado de votações em que ele saíra derrotado pelo Plenário da Câmara dos Deputados. [1] [2]

O mais alarmante, no entanto, é que essa manobra é expressamente autorizada por um precedente do Pleno do Supremo Tribunal Federal, julgado pelo tribunal em 8 de maio de 1996.[3] O Mandado de Segurança em questão tratava de uma aprovação de Proposta de Emenda à Constituição em que um substitutivo havia sido rejeitado pelo Plenário, mas no dia seguinte uma emenda aglutinativa (com conteúdo bastante semelhante, e a mesma inspiração ideológica) fora apresentada para permitir uma nova votação em que se conseguiu o quórum necessário para aprovação.

Diante da alegada violação ao artigo 60, parágrafo 5º, da Constituição, todos os ministros do STF, à exceção do ministro Marco Aurélio, seguiram o voto do ministro Maurício Corrêa, que se limitou a aduzir que a rejeição do substitutivo (que é acessório) não implica a rejeição do projeto original, cuja tramitação deve prosseguir normalmente. Em suas palavras, "afastada a rejeição do substitutivo, nada impede que se prossiga na votação do projeto originário".[4]

Entendeu a maioria, com fundamento no próprio Regimento Interno da Casa Legislativa, que não faria sentido imaginar que as proposições originárias devessem ter necessariamente o mesmo destino das emendas aglutinativas e projetos substitutivos, pois a rejeição do assessório não implica, necessariamente, a rejeição automática da proposição principal.

Essas considerações do ministro Maurício Corrêa estão rigorosamente corretas e encontram amparo no próprio Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Com efeito, é exatamente isso que estabelece o artigo 191, que disciplina de forma detalhada a ordem de votação das proposições principais e assessórias, estabelecendo ordens de "preferência  e prejudicialidade". A própria norma regimental estabelece literalmente que a rejeição das emendas e de todas as proposições assessórias não prejudica as proposições originárias, cuja votação deve proceder na ordem inversa de sua proposição.

Sem embargo, as razões aduzidas pelos ministros que compuseram a maioria do STF são inadequadas para decidir a questão que se colocava sob a apreciação do tribunal, na medida em que o objeto da ação não era apenas discutir a possibilidade de prosseguimento da tramitação do projeto original, caso o substitutivo seja rejeitado. A questão verdadeiramente importante naquele processo — como também agora, no caso das PECs 182/2007 e 171/1993 — é se é possível apresentar uma emenda aglutinativa depois que o substitutivo já tenha sido rejeitado, ou se é possível apresentar uma nova emenda aglutinativa depois que a emenda aglutinativa anterior já tenha sido rejeitada. Não está em jogo aqui, portanto, saber se as novas emendas podem ser apreciadas, mas se elas podem ser propostas depois do resultado da votação. Nesse ponto, o tribunal se equivocou ao não reconhecer a violação ao artigo 60, parágrafo 5º, da Constituição.

Falhou também o tribunal ao não reconhecer que a apresentação de uma nova emenda aglutinativa, propondo novamente o mesmo princípio político que havia sido rejeitado na noite anterior, implica  uma quebra no princípio proteção da confiança e da boa-fé objetiva. Essa violação à proteção da confiança de que a matéria em apreciação já se encontrava decidida representa uma "manipulação" no sentido definido pelo filósofo do direito Joseph Raz, que a entende como uma violação ao princípio da autonomia moral, por constituir uma atuação que "interfere na liberdade de opção das pessoas", manipulando o seu processo de pensamento.[5]

É difícil imaginar, portanto, uma lesão mais grave ao princípio da autonomia parlamentar, que se soma à clara violação à norma constitucional segundo a qual as matérias rejeitadas pela Casa Legislativa não podem ser reapresentadas na mesma sessão legislativa (artigo 60, parágrafo 5º).

Esse grave equívoco da maioria formada no Supremo Tribunal Federal foi percebido na época pelo ministro Marco Aurélio, que teve o cuidado de identificar que o problema estava na admissão de emendas aglutinativas depois que a votação do primeiro substitutivo já estava concluída.

A interpretação do ministro Marco Aurélio é aqui defendida, porquanto o Plenário não pode começar a decidir antes de todas as alternativas já estarem sobre a mesa, sob pena de se frustrar o artigo 60, parágrafo 5º, da Constituição Federal. Uma vez instaurada a fase decisória do processo legislativo, não se pode dar marcha-ré para a fase anterior e começar a discutir novas emendas sacadas da cartola. Essa interpretação é a única capaz de evitar duas consequências extremamente graves para a ordem jurídica constitucional.

De um lado, não se pode, de fato, propor um entendimento que vede por completo a proposição de emendas aglutinativas, ou que autorize o Supremo Tribunal Federal a realizar um juízo de mérito sobre a identidade (ou não) entre os projetos de lei apresentados (sejam originais ou os seus substitutivos) e as emendas aglutinativas submetidas ao Plenário por ocasião de sua votação. A interpretação do ministro Marco Aurélio evita essa interferência no processo legislativo. Ela permite que se proponha qualquer emenda aglutinativa em qualquer projeto de lei, de modo a permitir tanto a deliberação, com a mais ampla discussão sobre as diferentes possibilidades legislativas, como a negociação e os compromissos políticos, através de emendas que sejam capazes de reconciliar interesses e interpretações divergentes, conquistando com isso a adesão de amplas maiorias parlamentares. Ao admitir as emendas aglutinativas, ela evita, portanto, o engessamento do processo legislativo.

De outro lado, esta interpretação estabelece uma condição que é estritamente necessária para a observância do artigo 60, parágrafo 5º, da Constituição: a exigência de que todas as emendas, aglutinativas ou não, sejam propostas antes do início da votação, de modo que o Plenário esteja ciente de cada uma das alternativas que estão na mesa, e cada parlamentar possa refletir sobre elas sem o risco de surpresas após o resultado da votação e sem a possibilidade, ainda mais grave, de sofrer pressão política para mudar o seu voto, depois da divulgação do resultado das votações nominais.

Sem essa interpretação, a Presidência da Casa pode viabilizar a votação de emendas aglutinativas sucessivas, até que uma delas seja atinja o quorum necessário de aprovação e a sua proposta seja vencedora.

Se aliarmos a isso um processo de votação nominal, como ocorre em quase todas as matérias polêmicas, abre-se a via para um mecanismo autoritário e eficaz de controle sobre o resultado das votações, na medida em que é possível saber exatamente quais parlamentares votaram contra e a favor do projeto original.

Cria-se, portanto, um contexto político e institucional que alimenta e favorece o autoritarismo no interior das Casas legislativas.

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do MS 33.630 e do MS 33.697, terá uma oportunidade única para corrigir a sua interpretação equivocada e restaurar a dignidade do processo legislativo no Brasil.


[1] O presente ensaio reitera alguns argumentos de um ensaio ainda inédito escrito pelo autor em parceria com Evanilda Nascimento de Godoi Bustamante, que pode ser baixado no link: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2633948.

[2] Ver, nesse sentido, a seguinte manchete do "Sensacionalista": "Flamengo perde e Eduardo Cunha manda jogar de novo até ganhar". Ver: http://sensacionalista.uol.com.br/2015/09/18/flamengo-perde-e-eduardo-cunha-manda-jogar-de-novo-ate-ganhar/.         

[3] STF, MS 22.503, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ acórdão Min. Maurício Corrêa , DJ de 06.06.1997.

[4] STF, MS 22.503, voto do Min. Maurício Corrêa (no mérito), f. 529.

[5] Raz, Joseph. The Morality of Freedom. Oxford: OUP, 1986, p. 377-378.

Autores

  • Brave

    é professor adjunto da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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