Opinião

Adoção de salas de uso seguro de drogas ilícitas é juridicamente viável

Autor

  • Luciana Temer

    é doutora em Direito Constitucional pela PUC-SP professora da Graduação e Especialização da PUC-SP e secretária de Assistência e Desenvolvimento Social do Município de São Paulo.

2 de outubro de 2015, 8h39

O presente artigo pretende discutir as estratégias de enfrentamento, do ponto de vista legal, ao problema das drogas ilícitas. Esta afirmação, para a maioria das pessoas, remete imediatamente ao direito penal, porque historicamente se enfoca o tema do ponto de vista do combate ao tráfico. Mas pretendo aqui demonstrar que boa parte da questão não está centrada no enfrentamento ao tráfico, mas no cuidado com o dependente químico. É urgente uma mudança de mentalidade em relação ao foco do problema, e a interpretação constitucional pode ajudar muito neste processo.

Abordarei um aspecto que entendo da maior relevância, e que é a possibilidade jurídica da adoção, pelo poder público, das salas de uso seguro como estratégia de redução de danos. A fala corrente é que a adoção de uma política desta natureza, assim como o fornecimento de droga nestes espaços, estaria completamente vedada por força de lei.

Esta é uma leitura interpretativa que me parece equivocada, pois se apoia na lei infraconstitucional para interpretar a constituição, desprezando o fato de que é a constituição que deve iluminar a interpretação de toda e qualquer lei. 

Desde a teoria positivista de Kelsen que se reconhece a supremacia da constituição no ordenamento jurídico. Em sala de aula, todos reproduzem o clássico desenho da pirâmide normativa, com a base mais larga e, no topo, uma única norma que é a constituição. Por esse conceito, é ela que dá fundamento jurídico para as demais normas. Infelizmente, no Brasil, isso não vinha sendo observado com o devido rigor, o que é facilmente explicável, uma vez que temos, na nossa história constitucional, mais anos de regimes autoritários do que democráticos.

Como gostava de dizer o saudoso professor Geraldo Ataliba em suas aulas de direito tributário na PUC-SP, em épocas de ditadura, quando se fala que algo está escrito na constituição, ninguém nem se mexe, quando está na lei, começam a prestar atenção, mas quando está no decreto do presidente, todos correm para cumprir. É a pirâmide de ponta cabeça.

A Constituição de 1988 nasce com grande legitimidade popular e com a missão de consolidar a democracia brasileira. Só que democracia é processo que se consolida com o exercício de cidadania, que envolve várias discussões e práticas. A sociedade brasileira, com 27 anos de promulgação da constituição, está claramente neste processo de amadurecimento.

E é nesse processo que a constituição começou, de alguns anos para cá, assumir o que Konrad Hesse chama de força normativa, ou seja, o que está escrito no texto se aplica diretamente e interfere na realidade social.

Isto fica muito claro quando fazemos uma análise histórica das decisões do Supremo Tribunal Federal, e constatamos como os temas discutidos se ampliaram, na medida em que quase todas as questões foram constitucionalizadas e como, ao longo destes anos, a Corte passou a ser  mais corajosa, no sentido de fundamentar suas decisões diretamente nos princípios constitucionais, mesmo que contrárias ao texto expresso da lei. Enfim, o Supremo foi abandonando o condicionamento da referência às regras, para basear suas decisões nos princípios.

Podemos citar aqui a decisão que reconheceu o direito ao casamento homoafetivo, ainda que a lei infraconstitucional não o reconheça e que a própria Constituição Federal apenas refira-se expressamente a união entre homens e mulheres. Segundo sábia decisão da Corte, isso não impede que o direito seja estendido às uniões homoafetivas, em razão do princípio da dignidade da pessoa humana, que deve sempre iluminar a interpretação constitucional.

Isto posto, entendo que a afirmação da proibição legal da criação de salas de uso seguro pelo poder público, não se sustenta frente à postura do Supremo Tribunal Federal observada em diversos casos recentes envolvendo a dignidade da pessoa humana.

A partir desta premissa, proponho um exercício de reflexão sobre o tema, no qual procuro demonstrar, de forma bem objetiva, a razão pela qual esta interpretação restritiva não pode mais prevalecer. Me utilizo para tanto, de uma analogia com o caso do aborto de feto anencéfalo, julgado pelo STF em 2012.  

Caso do feto anencéfalo — ADPF 54:

  • Objeto da ação: autorização para aborto de feto anencéfalo por médico da rede de saúde pública ou particular
  • Questão jurídica: no artigo 5º a CF garante o direito à vida e a lei infraconstitucional só autoriza o aborto em dois casos: aborto sentimental, no qual a gravidez é fruto de estupro; e quando há risco de morte para a gestante. (artigos 124 e 128 do CP)
  • Argumento do requerente: o feto anencéfalo não tem desenvolvimento cerebral, portanto, o bebê está fadado à morte logo ou pouco tempo depois o nascimento.
  • Decisão: a hipótese da gestação de feto anencéfalo  não está previsto na legislação, mas o STF entendeu que a situação era autorizativa da prática abortiva. 
  • Fundamento da decisão: não há vida a ser preservada, portanto, a interrupção da gravidez nestes casos, não fere o direito à vida biológica. Ao contrário, protege a vida da mãe no sentido de vida moral. A proibição de interrupção configura uma violência à vida materna.

Se imaginarmos, hipoteticamente, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra eventual criação de salas de uso seguro de substâncias ilícitas, teríamos, a meu ver, o seguinte quadro:

  • Objeto: criação pelo poder público de espaços de uso seguro de substâncias ilícitas por dependentes químicos.
  • Questão jurídica: a CF protege a vida é a saúde das pessoas, por isso a lei infraconstitucional proíbe o uso, fornecimento e venda de drogas ilícitas. (Lei 11.343/06)
  • Argumento: o dependente químico seriamente comprometido, não tem mais saúde a ser preservada, e as chances de se pôr em risco e morrer em razão do uso desassistido da droga são significativas. Uma vez que a saúde já está gravemente comprometida, o Estado deve atuar com prevalência total do direito à vida e a saúde, devendo utilizar todos os recursos disponíveis para minimizar o dano causado. Criar um espaço de uso seguro, acompanhado por equipes de saúde e de assistência social, é uma forma de se aproximar das pessoas, e ampará-las. A política pública tem que estar voltada para o resgate destes indivíduos, buscando trazê-los para perto de si, e não afastá-los.  As salas de uso seguro, administradas pelo sistema público de saúde, visam a proteção da saúde e vida, portanto, tem amparo constitucional, independente da legislação infraconstitucional.

A mim parece, de forma bem singela, que não há outra interpretação possível, tomando como base as últimas decisões do STF, que primaram sempre pela garantia do respeito à dignidade humana, fundamento do Estado Brasileiro.

Autores

  • é doutora em Direito Constitucional pela PUC-SP, professora da Graduação e Especialização da PUC-SP e secretária de Assistência e Desenvolvimento Social do Município de São Paulo.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!