Opinião

IRDR potencializa resultado de julgamentos de processos repetitivos

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2 de outubro de 2015, 6h25

Em 16 de março foi promulgada a Lei 13.105/2015, instituindo o novo Código de Processo Civil, cuja vigência está prevista para 17 de março de 2016. E um dos principais fundamentos para a edição de um novo estatuto processual civil, em substituição ao anterior, foi o intenso reclamo social por maior celeridade e efetividade dos processos judiciais.

A ampliação do acesso ao Poder Judiciário em função, sobretudo, das inovações constitucionais de 1988, e das reformas legislativas dela decorrentes, consolidaram no Brasil a chamada terceira onda renovatória de processo civil, vaticinada por Mauro Cappelletti[1]. É fenômeno inegável, por outro lado, o aumento vertiginoso do número de potenciais jurisdicionados, associado ao progressivo aumento da população brasileira: somos, atualmente, 202.768.562 brasileiros, de acordo com estimativa do IBGE de 2014[2]; éramos, em 1973, 105 milhões.  

Desse contexto social eclodiram, a partir dos anos 90 do século passado, as chamadas demandas de massa, ou seja, aquelas em que, apesar de serem propostas por partes diversas, versam sobre questões de fato e de direito semelhantes ou até mesmo idênticas. São, assim, chamadas demandas repetitivas, caracterizadas por serem propostas em série e multiplicarem-se perante o Poder Judiciário de todo o país. Como salienta o eminente ministro Luiz Fux[3] “uma sociedade de massa, no pensar de Mauro Cappelletti, gera litígios de massa, vale dizer, ações individuais homogêneas quanto à causa de pedir e o pedido. Assim, v.g., o Brasil experimenta esse contencioso de massa por meio de milhares de ações questionando a legalidade da assinatura básica, os índices de correção da poupança em confronto com as perdas geradas pelos planos econômicos, os índices de correção do FGTS, o pagamento de impostos por determinadas categorias, a base de cálculo de tributos estaduais, municipais, federais etc. Essas demandas, ao serem decididas, isoladamente, geram, para além de um volume quantitativo inassimilável por juízos e tribunais, abarrotando-os, o risco de decisões diferentes para causas iguais, com grave violação da cláusula pétrea da isonomia (…).”

Na prática dos tribunais, ao longo dos anos, constatou-se, na vigência do Código de Processo Civil de 1973, grande disparidade entre as decisões judiciais, inclusive no âmbito de uma mesma Corte, relativas à idênticas questões de direito. A tutela jurisdicional, nesse contexto, equiparou-se a um verdadeiro jogo de azar, no qual o resultado da lide dependeria da distribuição do feito, que seria determinante para o seu sucesso ou fracasso.

O Código de Processo Civil de 2015 inova o sistema processual civil brasileiro ao instituir o denominado Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), previsto em seu artigo 976 e seguintes. O objetivo do IRDR é a unificação de decisões sobre questões unicamente de direito, no âmbito do mesmo tribunal e, eventualmente, estendendo-se os efeitos dessa unificação a todo o território nacional.

Os requisitos legais, indicados, cumulativamente, para a instauração do IRDR são a efetiva repetição de processos, que contenham controvérsia sobre a mesma questão de direito e o risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica. A instauração do incidente, que atende, preponderantemente, ao interesse público de uniformidade jurisprudencial, não depende do recolhimento de custas.

Da análise de seus requisitos, depreende-se que o IRDR não poderá ser instaurado de forma preventiva, para sanar situações de potencial ou iminente multiplicação de processos, que versem sobre o mesmo tema de direito. É necessário, portanto, que se constate, efetivamente, a existência de repetição de processos em curso contendo a mesma controvérsia de direito para justificar a sua instauração. O legislador, ademais, não fixou numero mínimo de demandas repetidas para a instauração do IRDR. Justifica-se a ausência de balizas numéricas pelas diversidades continentais de um País vasto como o Brasil. O volume de demandas repetitivas, potencialmente capazes de ensejar insegurança jurídica e transgressão ao princípio da isonomia, se decididas sem uniformidade, deverá ser avaliado por cada tribunal, de acordo com a realidade judiciária do estado ou região em que se situar.

Ademais, é necessário que as demandas repetitivas tratem de questões idênticas de direito, e só de direito, material ou processual. O IRDR, por conseguinte, não será cabível para uniformizar a solução de demandas, que versem sobre semelhantes questões de fato. É requisito indissociável do incidente a inexistência de controvérsia, nos processos repetitivos, a respeito de temas relacionados a fatos. Os fatos, nas demandas em massa que justificaram a instauração do incidente, devem, portanto, ser incontroversos. Isso porque, se há controvérsias sobre fatos, a lide deverá ser julgada de forma individual, e de acordo com as suas peculiaridades. Nesse sentido, define Alexandre Câmara[4], que são “demandas repetitivas aquelas demandas idênticas, seriais, que, em grandes quantidades, são propostas perante o Judiciário. Diz-se que elas são idênticas por terem objeto e causa de pedir idênticas, ainda que mudem as partes.” E alerta que “se trata de fenômeno inconfundível com o da conexão. Nesta, duas ou mais demandas têm a mesma causa de pedir ou o mesmo objeto. (…) Não se pode, pois, confundir os conceitos de igual (que pressupõe a existência de dois ou mais entes que, comparados, se revelam idênticos) e de mesmo (que pressupõe a existência de um só ente, que se manifesta mais de uma vez)”.

Por outro lado, o artigo 976, parágrafo 4º, do novo diploma processual veda a instauração do IRDR se o Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça já tiverem afetado recurso para definição, de modo geral e vinculante, da orientação adequada sobre a matéria controvertida, seja o tema de direito material ou de direito processual. Isso porque, nessas hipóteses, já estará estabelecido o meio processual adequado à uniformidade da questão de direito, em âmbito nacional. Não se justifica, pois, que tribunal local se pronuncie, através do IRDR, sobre tema já uniformizado na jurisprudência dos tribunais Superiores, aos quais a Constituição da República atribui essa função.

O processamento e o julgamento do IRDR é atribuição exclusiva dos tribunais estaduais e federais de segundo grau, de acordo com o disposto no artigo 977 do Código de Processo Civil de 2015, através do órgão que o regimento interno indicar como responsável pela uniformização da jurisprudência. É possível questionar, então, se a questão de direito controvertida já deve estar submetida ao segundo grau de jurisdição para que seja possível a instauração do incidente. A resposta mais adequada parece ser a negativa. Não se justifica limitar o âmbito de incidente, se já há, em determinado contexto, a multiplicação de demandas sobre o mesmo tema de direito, em prejuízo do próprio sistema judiciário, com todos os inconvenientes dela decorrentes. O artigo 977, inciso I, do Código de Processo Civil de 2015, ademais, estabelece que o incidente poderá ser instaurado por provocação do juiz, o que indica que a causa possa estar, ainda, em curso em primeiro grau de jurisdição por ocasião da instauração do IRDR perante o Tribunal. Desse modo, a repetição da controvérsia sobre idêntica matéria de direito deve ter ocorrido perante o Poder Judiciário, mas, não, necessariamente, no âmbito dos tribunais de segundo grau.

Marinoni[5] esclarece que “enquanto o código tramitava como projeto, o substitutivo apresentado pela Câmara dos Deputados (Substitutivo nº 8.046, de 2010) acrescentou um parágrafo ao primeiro artigo que tratava do IRDR, exigindo que, para a instauração do incidente, seria necessária a pendência de qualquer causa de competência do Tribunal. Esse preceito, porém, foi suprimido na versão final do código, o que sugere a intenção do legislador em não manter essa posição. Por isso, não parece lógico pretender extrair do art. 978, parágrafo único, interpretação que exija a pendência de causa perante o tribunal para que se viabilize o incidente.” Em sentido contrário, Alexandre Câmara [6]afirma que o que “não está expresso na lei, mas resulta necessariamente do sistema é que haja pelo menos um processo pendente perante o tribunal (seja recurso, remessa necessária ou processo de competência originária do próprio tribunal: FPPC, enunciado 344).”

O IRDR poderá ser instaurado pelo juiz, como já se asseverou, ou pelo relator, de ofício, ou, ainda, por qualquer das partes, pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública. Sua instauração, ademais, deverá ser objeto de ampla divulgação, com a criação de um banco eletrônico de dados referente às questões de direito submetidas à uniformização e com a realização de registro eletrônico perante o Conselho Nacional de Justiça.

De acordo com o artigo 978, parágrafo único, o órgão colegiado que julgar o IRDR e fixar a tese jurídica julgará, também, o recurso ou o processo que originou o incidente. O requerimento de instauração do incidente será dirigido ao presidente do Tribunal, instruído com os documentos necessários à demonstração dos requisitos legais para sua instauração, conforme dispõe o artigo 977, do Código de Processo Civil de 2015.

Instaurado o IRDR, passa à sua primeira fase, de admissibilidade, e sua eventual rejeição não impede que seja repetido, no futuro, caso preenchidos os requisitos legais. Por outro lado, se o IRDR for admitido, ele terá prosseguimento e julgamento, ainda que o processo originário seja extinto, por qualquer causa. Nesse caso, deverá o Ministério público assumir a titularidade do incidente, dando prosseguimento ao feito até a decisão final.

Como já se antecipou, o IRDR contribui para a celeridade da prestação jurisdicional. Isso porque, admitido o incidente, por determinação do relator, ficarão suspensos todos os processos individuais ou coletivos que tenham por objeto idêntica questão de direito, no âmbito do mesmo tribunal. Os processos ficarão suspensos por um ano, aguardando o julgamento do IRDR, salvo decisão do relator em sentido diverso.

Haverá o risco de ocorrer a suspensão indevida de algum processo, por força da instauração do IRDR, quando não se discuta tese jurídica idêntica ao processo paradigma. “Em casos assim, para viabilizar o regular processamento da demanda indevidamente sobrestada, cabe às partes demonstrar a singularidade ou a distinção entre a quaestio iuris colocada em seu caso particular e aquela discutida no IRDR.”[7] Nessa circunstância, a parte interessada suscitará as particularidades de sua demanda perante o juiz natural do processo, e não perante o órgão que fixará a tese no incidente.

De igual modo, há o receio da banalização do IRDR, e sua utilização para julgamento de matérias semelhantes, mas, na verdade, heterogêneas, a pretexto de promover a redução numérica de processos em curso. Caberá aos aplicadores do novo diploma processual o cuidado de selecionar os casos a serem submetidos ao IRDR, para que não se fixe tese homogênea a situações dispares, porque nesse caso o incidente se transfiguraria em perverso instrumento de supressão de direitos e veículo de injustiças. Como alerta Bruno Dantas “o tratamento processual massificado dos litígios individuais exige a satisfação de requisitos rígidos, sob pena de se promover uma artificial homogeneização das peculiaridades de cada caso. A consequência disso seria a frustração ou a tutela inadequada de direitos substanciais.”[8]

Em homenagem ao contraditório, o relator do IRDR poderá ouvir as partes, eventuais interessados e, até mesmo, especialistas sobre a matéria controvertida — estes, em audiência pública —, além do Ministério Público. Após, haverá a sessão de julgamento, na qual serão franqueadas sustentações orais, seguidas da decisão colegiada. Proferida a decisão no IRDR, sua conclusão será aplicável a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre a mesma questão controvertida, no âmbito daquele tribunal, inclusive nos juizados especiais. O acórdão proferido em decorrência do julgamento do IRDR deverá conter a análise de todos os fundamentos suscitados, inclusive aqueles que não foram acolhidos, de modo a delimitar, integralmente, o objeto da controvérsia. E contra a decisão que decidiu o IRDR será cabível, em tese, recurso especial ou extraordinário, conforme haja alegação de ofensa à norma federal ou constitucional. Nesses casos, os recursos excepcionais serão dotados de efeito suspensivo, sendo, ainda, presumida a sua repercussão geral, no caso do recurso extraordinário. Ademais, interpostos os recursos excepcionais, qualquer das partes poderá solicitar ao Tribunal superior a suspensão de todos os processos em que se discuta a questão de direito objeto da controvérsia, em âmbito nacional. Essa suspensão também se dará pelo prazo máximo de um ano, salvo decisão do relator em sentido diverso.

A inobservância de tese fixada pelo IRDR desafiará reclamação. É possível, entretanto, que seja requerida a revisão futura da tese fixada pelo Tribunal a requerimento do Ministério Público ou da Defensoria Púbica ou, ainda, por iniciativa de ofício do próprio Tribunal que fixou a tese. O novo diploma processual, no entanto, não legitima as partes interessadas a ingressarem com requerimento de revisão de tema objeto de IRDR. Não se justifica, de fato, assegurar essa prerrogativa à Defensoria Pública, que representa direitos individuais de hipossuficiente, e negar essa possibilidade às demais partes interessadas, apenas pelo fato de não serem representadas por órgão do Poder Público, mas, sim, por advogados. É, a nosso ver, inconstitucional essa limitação de iniciativa, porque afronta a cláusula pétrea da isonomia e do devido processo legal, em sua amplitude. Afinal, não se pode, à luz da Carta Política, atribuir a uma parte prerrogativa processual negada a outra, ainda que sob o pretexto de beneficiar o menos favorecido. Caberia indagar: seria constitucional dispositivo que só autorize uma das partes a interpor recurso contra decisão desfavorável? Evidente que não. Do mesmo modo, não se pode suprimir da parte que não seja representada pela Defensoria Pública a prerrogativa de postular a revisão de tese fixada em IRDR.

Essas são, em breves linhas, observações iniciais, que nos pareceram pertinentes, sobre o instituto do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, de grande relevância social e repleta de efeitos práticos positivos. A aplicação do IRDR, ao lado dos demais instrumentos aplicáveis à litigiosidade de massa, vai, sem dúvida, potencializar o resultado dos julgamentos dos processos repetitivos, iniciativa salutar e de grande proveito para toda a sociedade.


[1] CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Fabris Editor, 2000.

[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Demografia_do_Brasil

[3] FUX, Luiz. Novo Código de Processo Civil Temático. São Paulo: ed. Mackenzie, 2015.

[4] CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. São Paulo: Ed. Atlas. 2015.

[5] MARONINI, Luiz Guilherme. Novo Curso de Processo Civil. Vol.2. São Paulo: Ed. RT, 2015.

[6] CÂMARA, Alexandre Freitas. Op. Cit.

[7] DANTAS, Bruno. “Do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas”, Breves Comentários ao Novo Código de Processo Civil. Wambier, Teresa Arruda Alvim et ali (coord.). São Paulo: Ed. RT, 2015.

[8] DANTAS, Bruno. Op. Cit.

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