Justiça Tributária

Fiscalização tributária comete abusos e incentiva litigiosidade dos contribuintes

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

30 de novembro de 2015, 7h00

Spacca
Em todos os níveis (federal, estadual ou municipal) agentes do Fisco estão a exercer suas atividades de forma cada vez mais abusiva, com o que acabam por estimular a litigiosidade. Em muitos casos isso faz com que empresas, em especial as de pequeno e médio porte, optem por reduzir ou mesmo encerrar suas atividades. Há quem prefira estabelecer-se em outros estados ou mesmo direcionar seus investimentos para países vizinhos.

Ao que parece a administração tributária brasileira resolveu tornar-se inimiga dos contribuintes. Primeiro, age como se todos eles fossem sonegadores até prova em contrário. Depois, criam todas as dificuldades para que eventuais falhas ou erros possam ser corrigidos sem que isso resulte em prejuízos enormes.

Toda a legislação brasileira que fixa as multas por infrações fiscais adota percentuais absolutamente desproporcionais, não razoáveis e insuportáveis, de tal forma que o suposto infrator não tem alternativa que não seja a de se defender.

Multas há que são claramente confiscatórias e representam valor maior do que o tributo que se aponta como sonegado. Esse exagero tem origem na época da inflação astronômica (em 1993 mais de 2.300% no ano!) e não se adequou ao patamar atual, com um índice inflação que pode atingir 10% neste ano.

Assim a legislação deveria com clareza limitar as multas a um percentual suportável para o contribuinte, de forma a exercer um caráter educativo a nível propedêutico e ao mesmo tempo permitir que ele possa pagar a pena, e não se ver estimulado a práticas ilícitas para evitá-la.

A Constituição Federal, no artigo 150, IV, faz referência apenas ao tributo quando proíbe sua cobrança com efeito confiscatório. Todavia, a jurisprudência e a doutrina entendem perfeitamente aplicável às multas a mesma limitação. Nesse sentido é a decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (DJU de 20/8/99, página 341):

“A multa, a pretexto de desestimular a reiteração de condutas infracionais, não pode atingir o direito de propriedade, cabendo ao Poder Legislativo, com base no princípio da proporcionalidade, a fixação dos limites à sua imposição. Havendo margem na sua dosagem, a jurisprudência, com base no mesmo princípio, tem , no entanto, admitido a intervenção da autoridade judicial.”

Também o Superior Tribunal de Justiça, no Processo 1998.010.00.50151-1, decidiu que:

“Não é confiscatória multa de 20% (vinte por cento), inferior a percentual maior (30%) considerado razoável pelo SFT (RE 81.550-MG, in RTJ 74/319)”.-

O Supremo Tribuna Federal em breve deverá decidir sobre a questão, havendo fortes indícios de que decida de forma similar a tais precedentes.

Questionar as autuações abusivas através de defesas administrativas não ajuda muito. Os órgãos julgadores dessa área quase sempre homologam os lançamentos e chegam ao ponto de justificar que não podem interpretar a aplicação das normas constitucionais.

Na esfera judicial o contribuinte já entra prejudicado, pois as custas estaduais são acima dos custos do processo, representando um outro ônus, havendo ainda que remunerar o advogado e eventuais peritos. Se obtiver êxito, o reembolso desses gastos é outra loucura, quase sempre não ocorrendo.

Já ocorreu, na área federal, uma autuação de cerca de 300 milhões, onde o contribuinte conseguiu êxito na esfera administrativa. Mas como o caso “vazou” na imprensa e teve grande impacto, a empresa acabou por ter sua credibilidade totalmente abalada, com o que encerrou suas atividades e deixou mais de 500 empregados na rua.

Em outro caso, agora na área do fisco estadual, o proprietário da empresa, logo após sofrer auto de infração, foi “intimado” a comparecer na Secretaria da Fazenda, onde um tal grupo de inteligência fazendária pretendia interrogá-lo, como se ali fosse uma repartição policial. Acompanhado de seu advogado, o empresário simplesmente recusou-se a declarar qualquer coisa, eis que não existe essa obrigação de prestar “depoimento” a qualquer fiscal. Ao que parece os fiscais desejavam constranger ou humilhar o comerciante, que, ainda quando acusado de sonegação, tem assegurados seus direitos ao respeito.

Veja-se o que determina a Lei Complementar (Estado de São Paulo) nº 939/2003 em seu artigo 8º:

“Artigo 8º – A Administração Tributária atuará em obediência aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, interesse público, eficiência e motivação dos atos administrativos.”

No âmbito federal vigora o decreto 1.171 de 27 de julho de 1994, que estabeleceu o Código de Ética do Servidor Público Civil da União. Dentre suas diversas normas, duas merecem especial destaque pela sua relação direta com a matéria ora examinada:

IX – A cortesia, a boa vontade, o cuidado e o tempo dedicados ao serviço público caracterizam o esforço pela disciplina. Tratar mal uma pessoa que paga seus tributos direta ou indiretamente significa causar-lhe dano moral. Da mesma forma, causar dano a qualquer bem pertencente ao patrimônio público, deteriorando-o, por descuido ou má vontade, não constitui apenas uma ofensa ao equipamento e às instalações ou ao Estado, mas a todos os homens de boa vontade que dedicaram sua inteligência, seu tempo, suas esperanças e seus esforços para construí-los.

X – Deixar o servidor público qualquer pessoa à espera de solução que compete ao setor em que exerça suas funções, permitindo a formação de longas filas, ou qualquer outra espécie de atraso na prestação do serviço, não caracteriza apenas atitude contra a ética ou ato de desumanidade, mas principalmente grave dano moral aos usuários dos serviços públicos.

O que vemos, portanto, não é a necessidade de novas leis. Precisamos, apenas, que as vigentes sejam observadas e que todas as normas da Constituição Federal sejam rigorosamente cumpridas.

Os abusos ocorrem também no serviço público municipal. Um muito comum, aqui na maior cidade do país, é o agente fiscal visitar um contribuinte, lavrar termo de início de verificação e no mesmo ato entregar intimação para que o contribuinte encaminhe os livros e documentos à repartição.

O artigo 197 do Código Tributário Nacional obriga o contribuinte a prestar todas as informações à autoridade. Mas não cria a obrigação para o contribuinte, transformado em estafeta da repartição, levar livros e documentos até a repartição. Isso é obrigação do agente fiscal que não só pode mas sobretudo deve arrecadar os livros e documentos que entenda necessários ao seu trabalho.

O mesmo Código, no artigo 196, determina que, ao dar inicio ao trabalho de fiscalização, deve a autoridade fixar prazo para seu término. Temos visto, contudo, que documentos apreendidos pelo fisco ou levados pelo contribuinte à repartição, muitas vezes permanecem vários anos sem que tenham sequer seus pacotes abertos, o que só ocorre às vésperas da ocorrência do prazo decadencial, de forma a prejudicar a defesa do contribuinte e aumentar seus prejuízos ante possível autuação. Quando o fisco retém documentos além de prazo razoável, deve o contribuinte ingressar em juízo para obtê-los de volta.

O Fisco tem a obrigação de observar os prazos legais inclusive para decidir os processos administrativos. Já noticiamos em 5 de março de 2014 que a Justiça Federal ordenou que processo administrativo fosse julgado em 10 dias, vez que ultrapassado o prazo legal de um ano.

As autoridades tributárias algumas vezes queixam-se da excessiva litigiosidade dos contribuintes brasileiros. Isso existe, mas é resultado de um fato muito simples: aos poucos os contribuintes deixaram de ter as boas margens de lucro em suas atividades e já não podem suportar a carga tributária cada vez maior, que, dentre outras coisas, traz uma enorme onda de desemprego no país. São litigantes, sim. Mas isso hoje é questão de sobrevivência. 

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    é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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