Limite Penal

Nem o Habeas Corpus está a salvo
do pacote anticorrupção do MPF

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

27 de novembro de 2015, 7h01

Spacca
O Ministério Público Federal apresentou um pacote de medidas anticorrupção, incluindo vários anteprojetos de lei que pretendem a alteração do Código Penal e de Processo Penal. Vários problemas emergem da proposta, mas antes é preciso fazer uma clara e categórica advertência: não estamos fazendo qualquer apologia à corrupção, um crime grave e uma conduta extremamente danosa para a sociedade. Punir é necessário e civilizatório e a corrupção deve ser combatida, em todas as esferas. A questão a saber é: como? A qualquer preço? Rasgando a Constituição?

Não se pode em nome do “Cavalo de Tróia” da corrupção desfazer-se os limites do devido processo legal substancial. Logo, é preciso ser sublinhado: as propostas afetarão a todos os crimes e a todos os processos penais, não só os de corrupção. Isso não está sendo dito. E, para a imensa dos crimes afetados, tal endurecimento é desnecessário e desproporcional.

Sem falar que, depois do festival de 'delações premiadas a la carte', nas quais o Direito Penal foi lavado a jato, como já explicamos anteriormente, ficou muito claro que tais medidas nem tocarão os pés dos grandes corruptos, que poderão gozar do regime de 'prisão domiciliar' criado pela referida operação (mas desconhecido pela lei penal).

Entre as propostas de mudança legislativa pretendidas pelo MPF, que verdadeiramente está legislando em seu próprio interesse e benefício, como parte (obviamente parcial) que ocupa no processo penal, vamos comentar hoje a pretendida castração do Habeas corpus. Iniciemos pelo texto proposto:

“Art. 647. Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal que prejudique diretamente sua liberdade atual de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar.
§ 1º A ordem de habeas corpus não será concedida:
I – de ofício, salvo quando for impetrado para evitar prisão manifestamente ilegal e implicar a soltura imediata do paciente;
II – em caráter liminar, salvo quando for impetrado para evitar prisão manifestamente ilegal e implicar a soltura imediata do paciente e ainda houver sido trasladado o inteiro teor dos autos ou este houver subido por empréstimo;
III – com supressão de instância;
IV – sem prévia requisição de informações ao promotor natural da instância de origem da ação penal, salvo quando for impetrado para evitar prisão manifestamente ilegal e implicar a soltura imediata do paciente;
V – para discutir nulidade, trancar investigação ou processo criminal em curso, salvo se o paciente estiver preso ou na iminência de o ser e o reconhecimento da nulidade ou da ilegalidade da decisão que deu causa à instauração de investigação ou de processo criminal tenha efeito direto e imediato no direito de ir e vir.
§ 2º O habeas corpus não poderá ser utilizado como sucedâneo de recurso, previsto ou não na lei processual penal.” (NR)

“Art. 652. Se o habeas corpus for concedido em virtude da decretação da nulidade de ato processual, renovar-se-ão apenas o ato anulado e os que diretamente dele dependam, aproveitando-se os demais.
Parágrafo único. No caso previsto no caput:
I – facultar-se-á às partes ratificar ou aditar suas manifestações posteriores ao ato cuja nulidade tenha sido decretada;
II – o juiz ou tribunal que pronunciar a nulidade declarará os atos a que ela se estende, demonstrando expressa e individualizadamente a relação de dependência ou consequência e ordenando as providências necessárias para sua retificação ou renovação.” (NR)

“Art. 664. Recebidas as informações, ou dispensadas, o habeas corpus será julgado na primeira sessão, podendo, entretanto, adiar-se o julgamento para a sessão seguinte.
§ 1º O Ministério Público e o impetrante serão previamente intimados, por meio idôneo, sobre a data de julgamento do habeas corpus.
§ 2º A decisão será tomada por maioria de votos. Havendo empate, se o presidente não tiver tomado parte na votação, proferirá voto de desempate; caso contrário, prevalecerá a decisão mais favorável ao paciente.” (NR)
Art. 667-A. Da decisão concessiva de habeas corpus em Tribunal caberá agravo para a Seção, o Órgão Especial ou o Tribunal Pleno, conforme disposição prevista em regimento interno.”

Como se não bastassem as limitações já impostas pelos tribunais brasileiros (o famoso ‘não conheço’, mas “dou de ofício quando quiser”), o anteprojeto estabelece seis casos em que ‘a ordem de Habeas Corpus não será concedida’! Inicia vedando a concessão de ofício (salvo quando for caso de prisão manifestamente ilegal, ou seja, ilegal é legal, só não é quando manifestamente?); segue proibindo – genericamente – a concessão de liminar (repetindo o ‘salvo’ anterior…); quando houver supressão de instância (precisaria disso?); condicionando à ‘prévia requisição de informações ao promotor natural da instância de origem’ (mas o que é isso! e essa figura híbrida e malformada de ‘promotor natural’[1] existe desde quando?); finalizando com a proibição de HC para discutir nulidade, trancar investigação ou processo e como sucedâneo de recurso. A inconstitucionalidade e os absurdos de tais limitações ao HC saltam aos olhos.

Por melhor que fossem as intenções (e quem nos protege da bondade dos bons?(Agostinho Ramalho Marques Neto), passaram do limite. Ora, convenhamos, teriam sido mais coerentes com se propusessem logo a extinção do HC ou somente o permitissem quando o MP desse parecer favorável à concessão da ordem… Afinal de contas, no caso de Habeas Corpus, a autoridade coatora também será o Ministério Público? E o Juiz fica onde? Tudo depende do Ministério Público?

Por fim, o Habeas Corpus como ação constitucional (CR, artigo 5º, LXVIII), não obstante o estreitamento dado pelo STF e STJ, continua ser a garantia contra ameaça ou violação de liberdades. A proposta, na via infraconstitucional, promove emenda constitucional disfarçada, restringindo, por seu conteúdo, a amplitude historicamente construída para defesa das liberdades. Daí que nos colocamos manifestamente contrários. Mas quando a onda começa a crescer fica difícil remar contra o Estado não mais policial, mas Ministerial. Antes de gritar, saiba que somos favoráveis à criminalização de condutas, não somos abolicionistas, nem entendemos que devido processo penal substancial é ornamento. Melhorar nosso sistema recursal, o regime de nulidade, enfim, parece uma tarefa necessária no contexto brasileiro. Só não podemos fingir que a Constituição não existe, nem usar o Cavalo de Tróia da corrupção como dispositivo para justificar a extinção de garantias mínimas, dentre elas, a da utilização de Habeas Corpus.  

 


[1] Uma corruptela da figura do ‘juiz natural’, sem qualquer base constitucional ou convencional e tampouco sentido processual.

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    é doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.

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    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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