Olhar Econômico

Os Estados controlam cada vez menos o comércio em suas fronteiras.

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

26 de novembro de 2015, 7h00

Spacca
João Grandino Rodas [Spacca]A principal marca do comércio na Antiguidade era sua internacionalidade, quer se realizasse por mar ou por terra. Por muitos séculos, tal característica se manteve, com pouco ou nenhum empecilho por parte das autoridades territoriais. As grandes praças europeias, que juntamente com as catedrais, representaram os melhores exemplos da arquitetura medieval, ainda testemunham a pujança do comércio desimpedido dessa época, simbolizados pelas periódicas e monumentais feiras.

O Estado moderno, com sua ideia de soberania dentro de fronteiras delineadas, com o direito nacional autônomo e muitas vezes codificado, com rígido controle fronteiriço, principalmente a partir dos anos 1800, conhecidos como século das nacionalidades e das codificações, causaria a bipartição entre comércio interno e comércio internacional.

O sábio grego abarcava todos os ramos do conhecimento: a sofia. Com o passar do tempo e com a crescente complexidade dos saberes, disciplinas foram surgindo e se individualizando. O direito, tido por muitos como formulação romana, não foi imune à especialização. É clássica a diferenciação entre jus civile e jus gentium.

Relativamente aos aspectos internacionais do direito, a partir do século XII, surge o conflictum legum (conflito de leis), que, mais tarde seria conhecido, entre os países de direito civil como direito internacional privado. Trata-se de um sistema que possibilitava a escolha da lei aplicável a atos ou negócios jurídicos entre pessoas físicas (e mais tarde também a pessoas jurídicas privadas), que se relacionassem com dois ou mais ordenamentos jurídicos diferentes [1].

Por volta do século XV, com o aparecimento da ideia da soberania e o aparecimento dos Estados, impôs-se a criação de um ramo jurídico que regulasse o relacionamento externo desses noveis entes soberanos: o direito internacional público, que, posteriormente, passaria a reger igualmente as organizações internacionais intergovernamentais e outros sujeitos de direito internacional [2].

Durante certo lapso de tempo, imaginou-se que essas duas disciplinas, tidas como estanques, fossem as únicas emanações internacionais do direito. Entretanto, essas disciplinas não eram tão vedadas como se pensava; nem as vertentes internacionais do direito se resumiriam somente a elas. Agregar-se-iam a elas o direito do comércio internacional e o direito da integração.

O comércio, desde suas origens, foi regulamentado internacionalmente por meio do costume [3] e também pelo ensinamento dos doutos, com pouca ou nenhuma influência das autoridades constituídas. As corporações dos mercadores, com base em suas inveteradas praxes, criaram cláusulas padrão e contratos-tipo, que acabaram por compor a lex mercatoria, cuja validade derivava de sua adoção pelas partes e não de chancela pública. Por isso o nome: contrats sans loi. Mesmo após, a implantação dos direitos estatais, mantiveram-se tanto a importância dos costumes comerciais, quanto a criação de “normas” pelos próprios interessados — nova lex mercatoria —, em parte devido à lentidão e a natureza episódica do direito comercial uniforme, engendrado pelos Estados, por meio de tratado internacional. Não há dúvida de que o direito do comércio internacional é uma das vertentes do direito internacional, apesar da natureza sui generis, em razão de serem suas fontes: o direito internacional privado (que é parte do direito interno), a nova lex mercatoria (direito de origem corporativa de cada segmento do comércio internacional) e direito comercial uniforme, originário de tratados internacionais multilaterais.

Já o direito da integração, de grande relevância para o comércio internacional, é o conjunto de normas criadas pelas organizações regionais de integração econômica, para reger atos e fatos jurídicos ocorridos, precipuamente, em seu território, mas que se espraiam por dois ou mais de seus Estados-Membros.

O protecionismo e a liberalização do comércio internacional são duas tendências atuais. A primeira é representada por inúmeros organismos regionais de integração, que objetivam graus diversos de integração econômica: zona de preferência tarifária, zona de livre comércio, união aduaneira, mercado comum ou união econômica e monetária. A segunda baseia-se em negociações multilaterais, que visam a liberalização comercial, cujo início de materialização deu-se pelo Acordo Geral de Tarifas e de Comércio, de 1947; aperfeiçoado, em 1995, com o estabelecimento da Organização Internacional do Comércio-OMC [4].

Nesse contexto, duas espécies de acordo de vontades merecem nossa atenção; o contrato internacional e o tratado internacional. É importante lembrar, inicialmente, que tanto um, quanto outro originaram- se no seio do jus civile e do direito canônico.

É clássica a acepção de que contrato é um acordo de vontades, que objetiva adquirir, resguardar, modificar ou extinguir direitos. Quer o nacional, quer o internacional pertencem ao gênero contrato. O contrato internacional distingue-se por estar ligado a mais de um sistema jurídico nacional (elemento jurídico); bem como por repercutir no comércio internacional (elemento econômico). Geralmente os ordenamentos jurídicos internos satisfazem-se com o pressuposto jurídico. Entretanto a jurisprudência francesa, preocupada com a simulação de contrato internacional, para fazer jus às suas “licenças” ou franquias próprias (como denominação em moeda estrangeira etc.), adicionou sabiamente o requisito econômico.

Por largo tempo, somente pessoas físicas e pessoas jurídicas privadas (a partir da criação destas, há cerca de duzentos anos) podiam concluir contratos internacionais.

Os entes estatais soberanos, ao surgirem, necessitavam de um modo compatível com sua própria soberania, de se obrigar entre si. Lançando mão de uma forma de tratativa, já utilizada imemorialmente — o tratado ou convenção internacional —; repaginaram-no com subsídios do direito civil e do canônico, possibilitando que Estados submetessem suas avenças ao direito internacional público, direito de coordenação e não de subordinação, feito sob medida para sujeitos dotados de soberania. Utilizada inicialmente para jungir um Estado com outro Estado (pelo tratado bilateral), evoluiu para possibilitar uma forma substitutiva de “legislação” internacional (por meio do tratado multilateral).

O Estado, pessoa jurídica de direito internacional público, somente podia concluir contrato internacional, se tal contrato fosse submetido a seu próprio direito, pois em virtude de sua soberania era insuscetível de se submeter a direito estrangeiro.

Os Estados para qualquer acordo entre si celebravam sempre tratados internacionais, pois, sendo eles regulados pelo direito internacional público, entendia-se mais consentâneo, por serem eles sujeitos de direito internacional.

Durante séculos, esse estado de coisas manter-se-ia. O Estado guardião na época da teoria do laissez faire, laissez passer, apenas vigilava, deixando a realização da economia para os particulares. Contudo, pouco a pouco, o Estado foi-se imiscuindo, passando ademais de suas incumbências derivadas da soberania, a ser produtor, negociante e empresário, com o intuito de promover o bem estar social — welfare State. Apesar disso, continuou a usufruir de suas imunidades — par in parem non habet imperium nec judicium (o igual não possui mando, nem jurisdição sobre o seu igual). A generalização do État Commerçant faria com que juízes internos de alguns Estados passassem a não reconhecer a imunidade de jurisdição e a regência pelo direito internacional público ao Estado, quando ele estivesse exercendo atos de comércio, de gestão e não ações derivadas da soberania estatal. A generalização desse procedimento tornaria possível a aceitação de teoria, segundo a qual os Estados, enquanto agissem por força de sua soberania, manteriam suas imunidades, incluindo as de jurisdição e de execução, e continuariam concluindo tratados internacionais, com outros detentores do jus tractuum ou treaty making power (direito de concluir tratados). Contudo enquanto gestor de negócios, não gozariam de suas imunidades, podendo inclusive concluir contratos internacionais, com outros Estados (contrato internacional entre Estados) e com particulares (contrato internacional entre Estado e particular), submetendo-os ao direito interno de outro país e sem usufruir de imunidades.

Após as evoluções que acabam de ser referidas, as diferenças entre contrato internacional e tratado limitaram-se às seguintes.

Pessoas físicas; pessoas jurídicas de direito interno; e pessoas jurídicas de direito internacional (Estado e assemelhados), quando são gestores de negócio podem concluir contratos internacionais, contrato esse submetido a um ou mais ordenamentos internos de países. Qualquer conteúdo, desde que lícito, pode ser objeto de um contrato internacional.

Para concluir tratados é necessário possuir o direito de negociar tratados, que somente o têm, os Estados, os beligerantes, os insurgentes e as organizações internacionais intergovernamentais. O respectivo conteúdo deve ser lícito, podendo ele veicular qualquer ramo do direito, daí a possibilidade de, por meio de tratado, uniformizar direito ou estabelecer “legislação” internacional.

Inobstante o comércio possua suas regras e seus instrumento jurídicos e econômicos, em nível internacional e nacional, em um mundo globalizado e com fronteiras cada vez mais porosas, em virtude dos modernos meios de comunicação, de pagamento e de transporte, seu efetivo controle é cada vez mais difícil. A soberania estatal sobre seus limites fronteiriços é cada vez menor!


1 Ver “Direito internacional privado fornece solução para o estudo de caso“, Revista eletrônica Conjur, 3 de setembro de 2015.

2 Ver “Atraso endêmico no trato do direito Internacional aumenta custo Brasil“, Revista eletrônica Conjur, 2 de julho de 2015. Ver também ‘caminho do direito internacional público’ em “Estudo de caso é útil também em países de direito continental”, idem, 6 de agosto de 2015.

3 Ver ”Fonte do direito internacional, o costume pode fazer a diferença”, Revista eletrônica Conjur, 16 de julho de 2015

4 Ver “Integração econômica deve servir ao bem da humanidade”, Revista eletrônica Conjur, 29 de outubro de 2015.

Autores

  • é professor titular da Faculdade de Direito da USP, juiz do Tribunal Administrativo do Sistema Econômico Latino-Americano e do Caribe (SELA) e sócio do escritório Grandino Rodas Advogados.

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