Opinião

Incidência do IPI na revenda de importados deve continuar sendo questionada

Autores

  • Gustavo Bevilaqua Vasconcelos

    é advogado especialista em Direito Tributário. MBA em Direito Tributário pela FGV-RJ. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará.

  • Renan Cavalcante Araújo

    é advogado especialista em Direito Tributário. MBA em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas-RJ. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará – UFC.

23 de novembro de 2015, 7h47

Há muito tempo a cobrança do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) sobre a revenda dos produtos de procedência estrangeira é discutida nos tribunais, questão que havia sido pacificada pela 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do EREsp 1.411.749/PR em junho de 2014, ocasião em que venceu o entendimento contrário à incidência do IPI após o desembaraço aduaneiro.

Entretanto, recentemente, em 14 de outubro de 2015, no julgamento dos EREsp 1.403.532/SC, o tribunal reformou seu entendimento e passou a considerar legítima a cobrança do IPI, nos termos do voto vencedor proferido pelo ministro Mauro Campbell Marques:

EMENTA EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. DIREITO TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE PRODUTOS INDUSTRIALIZADOS – IPI. FATO GERADOR. INCIDÊNCIA SOBRE OS IMPORTADORES NA REVENDA DE PRODUTOS DE PROCEDÊNCIA ESTRANGEIRA. FATO GERADOR AUTORIZADO PELO ART. 46, II, C/C 51, PARÁGRAFO ÚNICO DO CTN. SUJEIÇÃO PASSIVA AUTORIZADA PELO ART. 51, II, DO CTN, C/C ART. 4º, I, DA LEI N. 4.502/64. PREVISÃO NOS ARTS. 9, I E 35, II, DO RIPI/2010 (DECRETO N. 7.212/2010). 1. Seja pela combinação dos artigos 46, II e 51, parágrafo único do CTN – que compõem o fato gerador, seja pela combinação do art. 51, II, do CTN, art. 4º, I, da Lei n. 4.502/64, art. 79, da Medida Provisória n. 2.158-35/2001 e art. 13, da Lei n. 11.281/2006 – que definem a sujeição passiva, nenhum deles até então afastados por inconstitucionalidade, os produtos importados estão sujeitos a uma nova incidência do IPI quando de sua saída do estabelecimento importador na operação de revenda. 2. Não há qualquer ilegalidade na incidência do IPI na saída dos produtos de procedência estrangeira do estabelecimento do importador, já que equiparado a industrial pelo art. 4º, I, da Lei n. 4.502/64, com a permissão dada pelo art. 51, II, do CTN. 3. Interpretação que não ocasiona a ocorrência de bis in idem, dupla tributação ou bitributação, porque a lei elenca dois fatos geradores distintos, o desembaraço aduaneiro proveniente da operação de compra de produto industrializado do exterior e a saída do produto industrializado do estabelecimento importador equiparado a estabelecimento produtor, isto é, a primeira tributação recai sobre o preço de compra onde embutida a margem de lucro da empresa estrangeira e a segunda tributação recai sobre o preço da venda, onde já embutida a margem de lucro da empresa brasileira importadora. Além disso, não onera a cadeia além do razoável, pois o importador na primeira operação apenas acumula a condição de contribuinte de fato e de direito em razão da territorialidade, já que o estabelecimento industrial produtor estrangeiro não pode ser eleito pela lei nacional brasileira como contribuinte de direito do IPI (os limites da soberania tributária o impedem), sendo que a empresa importadora nacional brasileira acumula o crédito do imposto pago no desembaraço aduaneiro para ser utilizado como abatimento do imposto a ser pago na saída do produto como contribuinte de direito (não-cumulatividade), mantendo-se a tributação apenas sobre o valor agregado. 4. Precedentes: REsp. n. 1.386.686 – SC, Segunda Turma, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 17.09.2013; e REsp. n. 1.385.952 – SC, Segunda Turma, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 03.09.2013. Superado o entendimento contrário veiculado no REsp. n. 841.269 – BA, Primeira Turma, Rel. Min. Francisco Falcão, julgado em 28.11.2006. 5. Embargos de divergência em Recurso especial não providos.

Como se vê, o STJ analisou a questão basicamente sob dois aspectos: a) se o fato gerador com as mercadorias importadas seria exclusivamente no desembaraço aduaneiro frente ao que determina o artigo 46 do CTN; b) se haveria bitributação na cobrança do IPI tanto na entrada quanto na saída dos produtos importados.

No EREsp 1.403.532/SC, o argumento acerca da alternatividade dos fatos geradores do artigo 46 do CTN foi ultrapassado ao argumento de que o artigo 51 do CTN[1] permitiu a equiparação de qualquer estabelecimento a industrial, a qual, no caso dos importadores, foi realizada pelo artigo 4º da Lei 4.502/1964.

Também se entendeu pela inocorrência de bitributação diante do entendimento de que haveriam dois fatos geradores distintos, concluindo-se, ao final, pela legalidade da cobrança atualmente realizada.

Entretanto, o precedente do STJ, até mesmo por uma questão de competência jurisdicional, não analisou alguns pontos importantes, tais como a violação dos Princípios da Isonomia, da Neutralidade Tributária, da Livre Concorrência e da Não Discriminação, este último contido no GATT.

O presente trabalho visa enfocar esses aspectos para demonstrar a inconstitucionalidade/ilegalidade da cobrança de IPI na revenda de produtos importados, ainda que seja superada a questão relacionada à interpretação do artigo 46 do CTN.

Da violação ao Princípio da Isonomia pelo tratamento diferenciado entre o estabelecimento atacadista de produtos nacionais e o estabelecimento atacadista de produtos importados
O legislador previu no artigo 46 do CTN a incidência do IPI no desembaraço aduaneiro, o que foi realizado com a intenção de equiparar o produto de procedência estrangeira ao produto nacional.

Importante ressaltar que a industrialização do produto importado ocorre fora do Brasil; destarte, para equipará-lo ao produto industrializado no Brasil foi necessária disposição legal determinando a cobrança do IPI no desembaraço aduaneiro.

Entretanto, a intenção de equiparar o tratamento dos produtos nacionais e importados é convenientemente deixada de lado na revenda desses mesmos produtos importados.

Ora, como se sabe, nos termos do artigo 4º da Lei 4.502/1964, apenas o atacadista de matérias-primas, produtos intermediários e embalagens nacionais será equiparado a industrial, por outro lado, o importador é sempre equiparado a industrial:

Lei 4.502/1964

Art. 4º. Equiparam-se a estabelecimento produtor, para todos os efeitos desta Lei:

I – os importadores e os arrematantes de produtos de procedência estrangeira;

II – as filiais e demais estabelecimentos que exercerem o comércio de produtos importados, industrializados ou mandados industrializar por outro estabelecimento do mesmo contribuinte; (Redação dada pela Lei 9.532, de 1997)

III – os que enviarem a estabelecimento de terceiro, matéria-prima, produto intermediário, moldes, matrizes ou modelos destinados à industrialização de produtos de seu comércio.

IV – os que efetuem vendas por atacado de matérias-primas, produtos intermediários, embalagens, equipamentos e outros bens de produção. (Incluído pelo Decreto-Lei 34, de 1966)

V –  (Revogado pela Lei 9.532, de 1997)

Ou seja, o estabelecimento atacadista que revende produto importado que não se enquadre na hipótese aventada pelo inciso IV do artigo 4º da Lei 4.502/1964 (matéria-prima, embalagem ou produto intermediário) e aquele que revende o mesmo produto de origem nacional estarão sujeitos à tributação diferente, ainda que estejam em situação equiparada (revendedores de produtos industrializados por terceiros).

Observa-se que a dupla cobrança do IPI sem que o importador desenvolva qualquer processo de industrialização, acaba anulando a equiparação pretendida pela Lei Complementar, onerando muito mais o estabelecimento comercial-importador do que estabelecimento comercial de produtos nacionais, os quais deviam, a priori, ter tratamento tributário equivalente.

Portanto, conclui-se que a cobrança de IPI na saída dos produtos importados malfere o Princípio da Isonomia Tributária.

Da violação dos princípios da neutralidade tributária e da livre concorrência
Não fosse só o malferimento ao Princípio da Isonomia, fato é que, nos termos do artigo 173, § 4º da Constituição Federal, cabe ao Estado criar as condições necessárias para a implementação efetiva do princípio da livre concorrência:

Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

[…]

§ 4º – A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.

[…]

Considerando a necessidade de possibilitar aos agentes econômicos igualdade de condições de competição, em observância ao que dispõe o Princípio da Livre Concorrência, é necessário também que o Estado mantenha a neutralidade em relação a atos ou políticas que possam vir a interferir no equilíbrio concorrencial.

Assim, a neutralidade tributária deve ser observada pelos entes federativos para que o tributo não se se traduza em um fator de desequilíbrio no sistema econômico, interferindo na livre concorrência.

Entretanto, a diferenciação na cobrança do IPI entre o estabelecimento atacadista que revende produtos importados e aquele que revende produtos nacionais beneficia o segundo estabelecimento em detrimento do primeiro, mesmo estando os dois em posição equivalente, motivo pelo qual se entende pelo malferimento do Princípio da Livre Concorrência e da Neutralidade Tributária.

Da violação do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) pela cobrança de IPI sobre a revenda de produtos importados, quando não há cobrança equivalente na revenda de produtos nacionais
Além dos argumentos constitucionais, não se pode olvidar que o Brasil é signatário do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) (Decreto 1.355/94), que traz o Princípio da Não Discriminação.

Segundo esse princípio, não será dispensado ao produto importado um tratamento diferenciado daquele outorgado ao produto nacional em relação aos impostos e tributos internos, como é o caso do IPI:

GATT

ARTIGO III

TRATAMENTO NACIONAL NO TOCANTE A TRIBUTAÇÃO E REGULAMENTAÇÃO

INTERNAS.

1. As Partes Contratantes reconhecem que os impostos e outros tributos internos, assim como leis, regulamentos e exigências relacionadas com a venda, oferta para venda, compra, transporte, distribuição ou utilização de produtos no mercado interno e as regulamentações sobre medidas quantitativas internas que exijam a mistura, a transformação ou utilização de produtos, em quantidade e proporções especificadas, não devem ser aplicados a produtos importados ou nacionais, de modo a proteger a produção nacional.

2. Os produtos do território de qualquer Parte Contratante, importados por outra Parte Contratante, não estão sujeitos, direta ou indiretamente, a impostos ou outros tributos internos de qualquer espécie superiores aos que incidem, direta ou indiretamente, sobre produtos nacionais. Além disso nenhuma Parte Contratante aplicará de outro modo, impostos ou outros encargos internos a produtos nacionais ou importados, contrariamente aos princípios estabelecidos no parágrafo 1.

[…]

Portanto, a incidência do IPI sobre a revenda do produto importado por força do Artigo 4º, I da Lei 4.502/1964 e artigo 9º, I do Decreto 7.212/2010, quando não há previsão da cobrança na revenda do produto nacional nas mesmas condições, malfere diretamente o GATT, que possui prevalência sobre a legislação interna nos termos do Artigo 98 do CTN[2].

Logo, também por esse motivo, não pode ser admitido o entendimento de que o IPI poderia ser legitimamente cobrado de maneira diferenciada em razão da procedência do produto.

Conclusão
Em que pese a jurisprudência mais recente do STJ no sentido de ratificar a cobrança do IPI sobre a revenda de produtos importados, analisando-se o Princípio da Isonomia, da Neutralidade e da Livre Concorrência, bem como da Não Diferenciação (GATT), verifica-se que essa cobrança é ilegal/inconstitucional, de modo que os contribuintes devem continuar questionando essa incidência, mormente diante do não enfrentamento dos argumentos expostos no presente artigo pela jurisprudência do STJ ou do STF.


1 CTN. Art. 51. Contribuinte do imposto é:

I – o importador ou quem a lei a ele equiparar;

II – o industrial ou quem a lei a ele equiparar;

III – o comerciante de produtos sujeitos ao imposto, que os forneça aos contribuintes definidos no inciso anterior;

IV – o arrematante de produtos apreendidos ou abandonados, levados a leilão.

Parágrafo único. Para os efeitos deste imposto, considera-se contribuinte autônomo qualquer estabelecimento de importador, industrial, comerciante ou arrematante

2 CTN. Art. 98. Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha.

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