Estado da Economia

A promessa de eficiências sociais não pode ser chamada de "bem-estar social"

Autor

  • José Maria Arruda de Andrade

    é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da Universidade de São Paulo (USP) livre-docente e doutor pela mesma instituição professor do programa master de pós-graduação em Finanças e Economia da Escola de Economia de São Paulo Fundação Getulio Vargas (FGV EESP) foi secretário-adjunto da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).

22 de novembro de 2015, 9h46

Spacca
A relação entre a ciência econômica e o Direito pode ser pesquisada a partir da influência daquela na criação de novas normas jurídicas (fundamentação primária) ou na sua aplicação cotidiana (fundamentação secundária).

Quando refletimos sobre o uso de técnicas ou da própria metodologia econômica para o funcionamento da aplicação do direito certamente o tema fica mais polêmico. Não desconhecendo que problemas econômicos e políticos participam ativamente no processo de formação do direito e até mesmo das convicções dos aplicadores do direito, adotar o método econômico como forma de aplicar o direito é um passo além, repleto de dificuldades e armadilhas.

Para nos posicionar logo de início, estamos entre aqueles autores que ainda defendem o positivismo jurídico. Nesse sentido, é importante evitar a falsa impressão de que defender modelos positivistas acarreta defender uma metodologia estilizada do século XIX, que prega a separação total dos saberes, a interpretação e aplicação mecanicista das normas jurídicas, enfim, a assepsia generalizada e a ausência de valores das normas do Direito. Usamos a expressão “contemporâneo” para reforçar essa ideia.

O positivismo contemporâneo contesta os construtos que pregam o retorno ao moralismo, a proeminência do Poder Judiciário na construção do Estado de Direito, a ênfase aos aspectos programáticos da constituição, à ponderação dos princípios e o uso argumentativo exagerado da proporcionalidade e da razoabilidade.

As decisões jurídicas, por deverem ser fundamentadas (com base no Estado de Direito, na constituição federal e na legislação vigente), o devem ser por argumentos e fundamentos jurídicos (teste do pedigree)[1].

De forma geral, não nos alinhamos às teorias consequencialistas, que elegem algum valor externo ao ordenamento jurídico como principal elemento teleológico a ser concretizado, seja a eficiência econômica conforme estilizada em um determinado tipo de teoria econômica (neoclássica, estática, de uma determinada escola), seja o moralismo jurídico de acordo com um rol de pressupostos elaborados a partir da estilização daquilo que, hoje, se denomina neoconstitucionalismo ou assemelhados[2].

Pois bem, a análise econômica do Direito, em sua vertente mais conhecida, identificada com a base econômica neoclássica estática e de curto prazo, típico da Escola de Chicago, propõe a análise das consequências das decisões jurídicas na perseguição de eficiência econômica, geralmente traduzida como bem estar social. Além da questão da importação de um determinado método de uma determinada escola econômica, temos aqui a problemática da adoção de metavalores que parecem ser científicos e objetivos (eficiência econômica) em detrimento (em oposição) ao ordenamento jurídico positivado democraticamente em nosso país.

A eficiência econômica, identificada retoricamente como bem estar social, acaba por revelar uma prestidigitação teórica, que fundiu eficiência econômica (produtiva) e bem-estar do consumidor.

Robert Bork, um dos representantes mais importantes do pensamento de Chicago, defendeu que a ênfase na aplicação do Direito (concorrencial, no caso do livro) deveria recair sobre a eficiência econômica e não sobre o esforço antitruste[3].

Em uma abordagem teórica de concorrência perfeita, a referência à eficiência está relacionada ao equilíbrio entre oferta e procura a partir da aceitação do preço, ou seja, os consumidores e as firmas têm seus ganhos maximizados e isso acarreta uma alocação eficiente dos recursos (escassos) da sociedade[4].

Desperdícios (ineficiências, pesos mortos) alocativos significam perda de riqueza, em virtude da escassez e da utilidade dos bens econômicos. A relação entre bem estar social e individual e alocação de bens, portanto, está enraizada na construção da teoria econômica moderna e é intuitiva.

A primeira referência sobre o tema da eficiência é o Ótimo de Pareto[5], quando, na realização de trocas econômicas, a posição de nenhum agente pode ser melhorada sem a diminuição do bem-estar do outro, ou seja, a oferta dos produtores correspondeu à necessidade dos consumidores e qualquer tentativa de realizar uma mudança (diminuindo ou aumentando a oferta, diminuindo ou aumentando a procura em relação ao ponto de equilíbrio) seria prejudicial para alguém e, portanto, geraria desperdício de bens escassos e, por conseguinte, perda de riqueza[6]. A eficiência de Pareto pressupõe o atendimento às condições de eficiência das trocas, da produção e da composição do produto, a partir dos “ingredientes básicos do modelo”: famílias racionais e informadas, firmas racionais e maximizadoras de lucro atuando em mercados competitivos[7].

Eficiência produtiva, em forma sintética, é produzir e distribuir bens econômicos incorrendo no menor volume possível de custos, ou seja, a referência aqui é da perspectiva da empresa (curva de custos)[8]. Também significa produzir na curva das possibilidades de produção[9]. Assim, será eficiente a produção quando não for “possível gerar a mesma quantidade de produção usando uma combinação de insumo de custo menor” ou quando não for possível “gerar mais produção usando a mesma combinação de insumos”[10].

Eficiência alocativa está relacionada à melhor forma de alocar recursos em virtude das necessidades dos consumidores. Não diz respeito a questões redistributivas; significa analisar se os recursos estão empregados onde os consumidores deles mais necessitam, ou seja, trata-se de uma abordagem a partir da perspectiva do mercado, da curva da demanda por bens[11].

Os modelos de preços neoclássicos operam em uma abordagem estática e de curto prazo, isto é, que leva em conta uma dada economia com uma dada tecnologia[12].

Como a figura do Ótimo de Pareto seria muito limitada, por envolver situações em que ao menos uma pessoa fique em situação melhor que a anterior e nenhuma em situação pior[13], logo se desenvolveu a figura do Ótimo Potencial de Pareto (ou de Kaldor-Hicks), na qual as perdas de alguns possam ser compensadas pelos ganhos dos demais, ou seja, o bem-estar dos vencedores deve ser de tal monta que compensa a perda dos perdedores.

A partir desse ajuste, as chances de se discutir e justificar possíveis situações eficientes aumentou consideravelmente, pois são permitidas “mudanças em que haja tanto ganhadores quanto perdedores, mas se exige que os ganhadores ganhem mais do que os perdedores perdem. Se essa condição for cumprida, os ganhadores podem, em princípio, indenizar os perdedores e ainda ter um excedente”. Além disso, a referida compensação não precisa ser efetiva, bastando ser possível[14].

Há, ainda, a discussão sobre se o bem-estar é do excedente total ou se é relativo exclusivamente ao consumidor. Na primeira situação (agregada), trata-se de analisar se uma operação resultará em excedente favorável para produtores e consumidores ou se a eficiência dos produtores compensará o prejuízo eventual dos consumidores (abordagem proposta por Williamson, que compensaria prejuízo dos consumidores em favor do bem-estar da sociedade). Na segunda situação, somente será levada em conta se houve vantagem para os consumidores (sem as compensações).

Como bem ressaltado por Kirkwood e Lande, a expressão “bem-estar do consumidor” pode referir-se tanto à análise do bem-estar dos consumidores em um mercado relevante quanto à eficiência econômica. Essa confusão – diríamos uso retórico estratégico – veio justamente da obra de Bork, que equiparou (ou colocou como mera consequência do primeiro) a noção de eficiência com bem-estar do consumidor.

Aliás, nesse ponto, sobretudo sobre a importação de ideias fora de seu contexto, temos de concordar plenamente com Robert Bork, quando ele mencionou que os juristas desconhecem a definição de eficiência produtiva, até mesmo porque ela se oculta na fórmula do bem-estar do consumidor. Isso explicaria, como mencionamos na nossa coluna anterior, porque se lê tanto por aqui sobre os benefícios teóricos da análise jurídica a partir da eficiência econômica, tanto sobre as benesses de um Direito orientado ao bem-estar do consumidor e tão pouco sobre uma teoria baseada nos ganhos de escala das grandes empresas[15].

Mas a análise, em detalhe, da estrutura da argumentação em torno da defesa do bem-estar do consumidor acaba por apresentar duas soluções para fórmula da eficiência econômica como bem-estar do consumidor: (i) ou a crença na promessa de repartição de ganhos de escala (eficiência produtiva) entre produtor e consumidor final, ou seja, sem aumento de preços; (ii) ou o consumidor da fórmula é qualquer agente da cadeia econômica, incluindo o produtor que adquire insumos (eficiência produtiva)[16].

Nesse segundo caso, repita-se, o real beneficiário da fobia antiestatal dos conservadores da Escola de Chicago seria qualquer consumidor da cadeia de produção, isto é, o produtor que obteve a redução de custos de insumos. A defesa do bem-estar seria a das relações indiretas.

A grande questão do law and economics tradicional é de que as relações e as comparações devem envolver certos cuidados terminológicos. Assim como “mercadoria” tem um sentido muito mais amplo na economia (distinto de bem no contexto de mercancia no Direito, por exemplo), não dá para chamar de “bem-estar social” a mera promessa das eficiências sociais indiretas e coletivas. Isso não é ciência econômica, é puro discurso partidário e ideológico travestido de triângulos de peso morto.

 


[1] Ver Dimitri DIMOULIS, Positivismo Jurídico: Introdução a uma Teoria do Direito e Defesa do Pragmatismo Jurídico-Político, São Paulo: Método, 2006; Dimitri DIMOULIS e Soraya Gasparetto LUNARDI, “O Positivismo Jurídico diante da Principiologia”, in Teoria do Direito Neoconstitucional: Superação ou Reconstrução do Positivismo Jurídico?, org. Dimitri Dimoulis e Écio Oto Duarte, São Paulo: Método, 2008, p. 179-197; André Ramos TAVARES, “Interpretação Jurídica em Hart e Kelsen: uma Postura (Anti)realista?”, in Teoria do Direito Neoconstitucional: Superação ou Reconstrução do Positivismo Jurídico?, org. Dimitri Dimoulis e Écio Oto Duarte, São Paulo: Método, 2008, p. 129-157; Lenio Luiz STRECK, “A Crise Paradigmática do Direito no Contexto da Resistência Positivista ao (Neo)Constitucionalismo”, in Vinte Anos da Constituição Federal de 1988, org. Cláudio Pereira de Souza Neto, Daniel Sarmento e Gustavo Binenbojm, Lumen Juris, 2009, p. 203-228; Humberto Bergmann ÁVILA, “Neoconstitucionalismo: entre a ‘Ciência do Direito’ e o "Direito da Ciência”, in Vinte Anos da Constituição Federal de 1988, org. Cláudio Pereira de Souza Neto, Daniel Sarmento e Gustavo Binenbojm, Lumen Juris, 2009, p. 187-202.

[2] Eros Grau fez uma crítica certeira a esse tipo de argumentação bem intencionada, mas enfraquecedora do Estado de Direito. Ver Eros GRAU, O direito posto e o direito pressuposto, 7a. ed. rev. e ampliada, São Paulo SP: Malheiros Editores, 2008, p. 148-161.

[3] “The argument of this book, of course, is that Competition must be understood as the maximization of consumer welfare or, if you prefer, economic efficiency. That requires economic reasoning because in the allocation of resources with possible gains in the productive efficiency to make us as wealthy as possible. The distribution of that subjects of other laws and not within the competence of judges deciding antitrust cases”.

[4] JOSEPH E. STIGLITZ e CARL E. WALSH, Introdução à Microeconomia, 3o ed., Rio de Janeiro: Campus, 2003, p. 171.

[5] Em homenagem ao sociólogo e economista italiano Vilfredo Pareto (1848-1923).

[6] Hal R. VARIAN, Microeconomia: Princípios Básicos, Rio de Janeiro: Elsevier, 2006, p. 329-331.

[7] JOSEPH E. STIGLITZ e CARL E. WALSH, Introdução à Microeconomia, p. 172.

[8] Eleanor FOX, “The Efficiency Paradox”, In: PITOFSKY, ROBERT (Org.). How the Chicago School Overshot the Mark: The Effect of Conservative Economic Analysis on U.S. Antitrust. New York: Oxford University Press, USA, 2008, p. 78. Ainda sobre eficiência econômica (estática), ver Wolfgang KERBER, “Should Competition Law Promote Efficiency? Some Reflections of an Economist on the Normative Foundations of Competition Law”, in Economic Theory and Competition Law, org. Josef Drexl, Laurence Idot e Joel Moneger, Cheltenham, Northampton: Edward Elgar Pub, 2007, p. 95-98.

[9] Ver JOSEPH E. STIGLITZ e CARL E. WALSH, Introdução à Microeconomia, p. 181.

[10] Robert COOTER e Thomas ULEN, Direito e Economia, 5. ed. Porto Alegre: Bookman, 2010, p. 38.

[11] Calixto SALOMÃO FILHO, Direito Concorrencial: As Estruturas, 3. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 198-199; Eleanor FOX, “The Efficiency Paradox”, p. 78. Muitas vezes, a Eficiência de Pareto é mencionada apenas com relação à Eficiência Alocativa.

[12] Quando a menção é à eficiência dinâmica, tem-se a perspectiva dos benefícios obtidos por meio de pesquisa, desenvolvimento e inovação, incluindo difusão de tecnologia para produzir novos produtos e serviços, além de produção de conhecimento e cross fertilization entre empresas. Ver Eleanor FOX, “The Efficiency Paradox”, p. 78; JOSEPH E. STIGLITZ e CARL E. WALSH, Introdução à Microeconomia, p. 368. Sobre a eficiência dinâmica, a partir de Schumpeter, ver Jorge FAGUNDES, Fundamentos Econômicos das Políticas de Defesa da Concorrência: Eficiência Econômica e Distribuição de Renda em Análises Antitruste, p. 83-98; Wolfgang KERBER, “Should Competition Law Promote Efficiency? Some Reflections of an Economist on the Normative Foundations of Competition Law”, p. 98-101; Mario Luiz POSSAS, Jorge FAGUNDES e João Luiz PONDÉ, “Política Antitruste: Um Enfoque Schumpeteriano”, in Ensaios Sobre Economia e Direito da Concorrência, org. Mario Luiz Possas, São Paulo: Singular, 2002, p. 11-31.

[13] Robert COOTER e Thomas ULEN, Direito e Economia, p. 64.

[14] Robert COOTER e Thomas ULEN, Direito e Economia, p. 64.

[15] “Productive efficiency is a simple, indispensable, and thoroughly misunderstood concept. Not one antitrust lawyer in ten has a remotely satisfactory idea of the subject, and the proportion of economists who do, though surely higher, is perhaps nor dramatically so.” Robert H. BORK, The Antitrust Paradox: A Policy at War with Itself, p. 104.

[16] Deixando clara a sua crítica ao uso político da referência ao bem-estar do consumidor como fórmula genérica e política, ver Calixto SALOMÃO FILHO, Direito Concorrencial: As Estruturas, p. 204. Criticando a eficiência econômica da forma como é tratada pela Escola de Chicago, ver Jorge FAGUNDES, Fundamentos Econômicos das Políticas de Defesa da Concorrência: Eficiência Econômica e Distribuição de Renda em Análises Antitruste, p. 196-203.

Autores

  • é Professor Associado de Direito Econômico e Economia Política da USP, livre-docente em Direito Econômico e doutor em Direito Econômico e Tributário pela USP. Foi pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique, Alemanha.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!