Limite Penal

Deus me livre de ser julgado
pelo seu bom senso

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20 de novembro de 2015, 9h14

Spacca
O processo penal é o dispositivo democrático pelo qual a interação da normatividade opera a partir de sujeitos que ocupam lugares e funções próprias, regulamentada por lei, capazes de promover a resposta estatal diante de uma possível violação de conduta proibida. Articula-se, portanto, a partir da normatividade genérica, abstrata e única, características típicas dos ordenamentos jurídicos, com o suporte dos jogadores, entendidos lato sensu, como magistrados, membros do Ministério Público, defensores e acusado, com a prévia apuração dos órgãos policiais e ainda a possível participação da vítima com a figura do assistente.

Daí que o processo, em suas formas e tempo, delimita a dinâmica das atividades particulares e regula a produção probatória tendente a promover a resposta estatal. E os personagens que participam do jogo, de sua quadra, são sujeitos com formações diversas, não só como trajetória de vida, mas também teóricas. A divergência de encadeamento teórico no tocante à teoria do delito, desde o causalismo, passando pelo finalismo ou mesmo imputação objetiva, pode alterar a leitura subjetiva da mesma situação da vida, especialmente nas condutas de trânsito.

Acrescente-se, ainda, as recompensas que cada um dos agentes processuais busca no jogo, bem assim as táticas e estratégias, consoante defendi no livro A Teoria dos Jogos aplicada ao Processo Penal, publicado em Portugal e Brasil. Daí que o resultado do jogo processual depende de uma série de fatores (variáveis dinâmicas), não sendo dado, pois depende do intrincado mecanismo de interação processual.

Os modelos de tomada de decisão prevalecentes no Direito ainda operam com a lógica da subsunção, ou seja, da premissa maior, deduzida da lei e a premissa menor, decorrente dos fatos apurados, os quais, pela razão, poderiam redundar em uma conclusão lógica. Manuel Atienza, em já clássico livro As razões do Direito, no plano da argumentação, descreve e depois critica a distinção entre contexto da descoberta e da justificação, também acolhida, dentre outros, por Habermas, tida como arbitrária e legitimadora do resultado da decisão e não de seu percurso. Mas sublinha a importância dos auditórios em que o discurso é articulado.

De qualquer forma, este modelo que cinde a decisão e a fundamentação abre espaço para o que John Kay denomina de “Gambito de Franklin” em homenagem ao famoso Benjamin Franklin, segundo o qual “é tão conveniente ser uma criatura racional, uma vez que permite que encontremos ou elaboremos um motivo para tudo que queremos fazer.[1] A postura que trata a teoria como realidade e a realidade como um erro, não da teoria, mas dela própria, persegue o jurista que se encontra no paraíso dos conceitos. Ligando um conceito noutro, a despeito da facticidade, muitos juristas dão de ombros para os fatos, atrelados ao mundo dos paraísos dos conceitos que o Círculo de Viena inspirou.

A complexidade do mundo e da (im)possível reconstrução nos limites de um processo judicial são tomadas por referenciais desprovidos de facticidade. As previsões deontológicas, pelas quais se pode proibir, autorizar ou obrigar condutas, embora sirvam como balizas, jamais antecipam o futuro. Seria maravilhoso que assim pudéssemos prever. Mas justamente porque o mundo é mais complexo do que os enunciados legislativos, a pretensão é imaginária. O problema é de fato acreditar ou fingir, mais cínico, de que é possível responder exclusivamente com base nas normas.

Esta postura não é adotada de maneira dolosa pela maioria dos juristas. Faz parte do seu modo de ser. Afinal, fomos ensinados assim. E quando alguém começa a colocar em xeque o modo com que pensamos, muitas vezes, ou entramos em desespero ou nos fechamos naquilo que acreditamos. Este texto pretende dialogar justamente sobre a maneira como somos ensinados a encontrar uma razão jurídica para tudo que quisermos, principalmente no universo panprincipialista atual (tão bem criticado por Lenio Streck, no Brasil), em que um princípio (sem o ser, na maioria das vezes), acaba destruindo uma possível expectativa de comportamento do intérprete.

O trajeto é um pouco diferenciado porque não nos interessa o que os juristas dizem que fazem, mas sim a volatilidade com que se produzem decisões, propondo um conceito mais ampliado de racionalidade, no qual a aparente irracionalidade (emoções, raiva, rancor, amor, ciúmes etc.) possam ser compreendidos e possam compor o quadro da decisão (aqui). Dito diretamente: a noção de razão moderna não consegue dar conta da complexidade.

Por certo o texto, do ponto de vista filosófico, sociológico, psicológico, econômico e jurídico, precisaria de maiores digressões. Mas seria enfadonho. Seria um saber exibido, próprio da academia, da qual faço parte e muitas vezes participo do jogo elaborando textos recheados de citações e que pouco trazem de novidade. Aliás, no Direito, salvo poucos (mesmo) textos, livros e revistas são uma cantilena (discurso repetitivo). Mas há quem goste e viva disto, não raro apontando para a Justiça da decisão. Daí surgirem diversos mantras entoados pela prática jurídica, dentre eles o de Justiça da decisão. Dito na forma jurídica: Entre a Justiça e a Lei, fique com a Justiça.

Esta máxima entoada a plenos pulmões por qualquer estudante dos primeiros anos do Curso de Direito e proferida por alguns jurássicos do discurso ideológico, não se sustenta no nível da análise de conteúdo. Qual o critério de Justiça que o agente (uso agente para evitar operador) irá manejar. A teoria não se acerta sobre quais são os critérios e muito menos se podem ser universais ou particulares (Kelsen, Ralws, Sen, etc.). De maneira direta nos perdemos nas opiniões qualificadas do “senso de Justiça” de cada um e Deus me livre depender do senso de justiça de alguém, especialmente do meu. Não é Justo constitui um sentimento individual (Alan Badiou) que pode ser materializado pelo jurídico. Contudo, depender da compreensão individual do critério de Justiça sempre desagua em decisionismo. Há uma autonomia do Direito que deve(ria) impedir que cada um encontrasse a Justiça que mais deseja, seja eterna, de Deus, do Diabo, de um Jurista qualquer.

O jogo processual como aventura. As interações entre os jogadores e julgadores são complexas e incertas. Especialmente porque o ambiente do processo se modifica com o tempo do jogo e seus fatores imponderáveis. Teremos sempre informações imperfeitas e fragmentadas. Seria maravilhoso que pudéssemos controlar as ações dos demais agentes processuais e antes do jogo processual sabermos o resultado. Isso somente acontece em jogos viciados. Nos jogos com fair play devemos nos adaptar e sempre estarmos atentos às mudanças. As consequências das táticas adotadas dependem das interações processuais, dos efeitos (positivos e negativos) que podem ocasionar nos demais agentes processuais. A antecipação de comportamento processual nunca pode ser compreendida na totalidade. Há um resto que precisa ser adaptado no decorrer do processo em face dos contextos[2].

Bons agentes processuais ao invés de terem uma visão única da teoria do delito ou mesmo da teoria de processo, dentre outros institutos jurídicos, devem dominar diversas teorias. Não se trata de um foro acadêmico, mas sim de um processo em que não se é protagonista. Muitas vezes a nossa compreensão teórica entra em choque com os demais agentes e manter a posição, a despeito da inversão do resultado, pode ser uma virtude pessoal e um grande erro tático processual. De alguma forma precisamos nos adaptar às contingências, no limite ético. Buscar convencer um julgador que pensa no quadro do finalismo da aplicabilidade da imputação objetiva pode é uma teimosia e uma cegueira processual. A gramática em que ele opera é desprovida dos sentidos que tentamos inserir no contexto processual.

Assim é que por mais que tenhamos posições pessoais e acadêmicas, ao decidirmos jogar no processo (mesmo quem não quer joga, alienadamente), entramos em ambiente contingente em que a manutenção aferrada aos pressupostos teóricos pode gerar, no paroxismo, a perda de uma chance processual. E não há volta. Não se trata de diletantismo, mas da vida e liberdade do acusado é que se decide no jogo, muitas vezes, mortal. Esta modalidade de jogo é inautêntica, ou seja, na maioria dos jogos inexistem as Condições Normais de Temperatura e Pressão Hermenêuticas. Lidamos com gente que pensa que decisão vem de sentir e o que importa é o seu senso de Justiça, seu “bom senso”. Não iremos converter o sujeito em um longo arrazoado, nem com argumentações complexas, embora não deixemos de fazer em outros contextos. A palavra precisa entrar justa no seu círculo hermenêutico inautêntico. Precisamos entender qual o mapa mental dos agentes processuais para, então, podermos atuar de maneira eficaz.

A performance do jogador depende de talento e da capacidade de adaptação in the long run que não se pode antecipar na totalidade. Há o momento certo para que as ações e reações aconteçam. A preclusão opera de maneira avassaladora durante a audiência de instrução, por exemplo.

A preparação para um jogo processual não pode ser feita, todavia, como se fosse um planejamento estratégico, dos quais tenho minhas fortes dúvidas de eficácia. É bonito, aparenta organização e confere sensação de que estamos no caminho certo. Mas é tão genérico e amplo que muitas vezes me pergunto se as pessoas acreditam, de fato, na prometida “Missão”. De qualquer forma, a tomada de decisão, no seu aspecto micro, não decorre dele. Reconhecer a incapacidade de prever o futuro (Hume) e se aventurar no processo é algo não tolerado pelas mentes que sabem onde querem chegar antecipando todo o caminho. E quando algo dá errado, perdem-se em reprogramações. Organização é fundamental. Só não é tudo, nem garante nada. Talvez seja o caso de se ter objetivos mais maleáveis e flexíveis, sujeitos à complexidade e cientes que a decisão opera na lógica do acontecimento[3]. Embora não acredite em Deus, que nos salve das decisões pautadas pelo Bom Senso.


[1] KAY, John. A beleza da ação indireta. Trad. Adriana Ceschin RIeche. Rio de Janeiro: Beste Seller, 2011, p. 11.
[2] DIJK, Teun A. van. Discurso e Contexto: uma abordagem sociocognitiva. Trad. Rodolfo Ilari. São Paulo: Contexto, 2012.
[3] ZIZEK, Slavoj. Acontecimiento. Trad. Raquel Vicedo. Madrid: Sexto Piso, 2014, p. 53: “Acontecimiento definitivo es la Caída misma, la pérdida de una unidad y armonía primordiales que nunca existieron, que no son más que una ilusion retroactiva.”.

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  • Brave

    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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