Senso Incomum

O juiz que fez a coisa certa! Mídia e moral não são fontes de Direito

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19 de novembro de 2015, 7h00

Spacca
Caricatura Lenio Luiz Streck (nova) [Spacca]Abstract: O que é fazer a coisa certa no direito? Como as correntes criticas percebem o direito? Tudo se resume à decisão ou a doutrina tem alguma “chance”?

No painel do qual participei no congresso do IBCCRIM em agosto, chamei a atenção para a necessidade da construção de uma teoria da decisão — tecla na qual bato de há muito. Sei que esse assunto desagrada parcela considerável de juristas. Alguns, por ignorância (no sentido de ignorare, portanto, sem ofensa), não se dão conta de que o problema do protagonismo judicial (vitaminada por discricionariedades, livre convencimento etc.) é um problema da própria democracia; outros atendem a uma espécie de razão cínica, sendo subdidividos em grupos. Assim:

Há (1) os que são contra porque acham que “isso é assim mesmo” e que não temos como fugir do solipsismo (e suas derivações ou vulgatas), contentando-se em lidar com isso a partir de uma falácia naturalista; há (2) também os que são assumidamente pragmati(cis)tas, achando que cada decisão é um grau zero de sentido e que o importa mesmo é “resolver problemas” (resolvem um problema e criam dezenas); existem (3) ainda aqueles que não concebem que o direito tenha um elevado grau de autonomia; para estes, tudo vira sociologia,[1] economia ou política, estando ali enquadrados adeptos de um certo tipo de marxismo[2] baseado, grosso modo, em Althusser[3], outras correntes críticas não-marxistas (alguns sistêmicos que não entenderam corretamente Luhmann também cometem esses equívocos) e aqueles que Lyra Filho chamava de positivistas psicologistas, que, segundo ele, desempenham o papel de inocentes úteis, porque neles o “espírito do povo” não fica pairando na sociedade: baixa na cuca de um ou mais sujeitos privilegiados e pretendem (a) haver descoberto o “direito livre” dentro de suas “belas almas”, revelando um “sentimento do direito” (pensemos nos pamprincipilogistas atuais); ou (b) que deferem aos juízes, como no judge-made law (o direito criado pela magistratura), de certas ideologias norte-americanas, o poder judicial de construir normas (escopos processuais, livre convencimento etc.), além e acima do que está nas leis: um direito mais rápido, “realista” (tudo está na decisão) e concreto do que o dos códigos.

Estes últimos três grupos dizem que a busca da construção de uma teoria da decisão é bobagem, porque-as-forças-sociais (e outros componentes, como os psicológicos etc.) derrubam qualquer possibilidade disso. Algo como “somos terceiro mundo e, de fato, pouco resta para o direito fazer…”. Ou “alguém tem de decidir e temos de apostar nesse sentimento de busca de justiça”. De minha parte, permito-me dizer, ironicamente, como contraponto crítico: Ora, nem sei porque ainda existem pesquisas no e sobre o direito. Poderiamos, na visão de parcela dos (próprios) juristas, transformar os cursos de direito em cursos de economia política, relações de poder,[4] gestão, estrategia, etc. O que (inter)liga esses três grupos? Simples e complexo. Mas, em uma frase, o fio condutor é o fato de que transferem o polo de tensão do direito para a decisão. Pronto. O problema é que, ao fazerem isso, correm o risco de se transformar em profetas do passado, como se o tempo fosse uma sucessão de agoras.

É certo que não podemos desconsiderar a práxis, como se o direito fosse bando de conceitos sem coisa. Também é certo que a falta de pesquisas empíricas tende a gerar uma doutrina vazia, puramente especulativa. Mas o outro extremo, a “empiricização”, pode levar a um direito cego, sem imaginação institucional, sem horizonte. Uma pessoa sem horizontes é aquela que não consegue ver nada além das coisas imediatas. Ela diz: “é assim mesmo”.

A Crítica Hermenêutica do Direito é uma das matrizes jurídicas que tenta acabar com esse abismo entre teoria (vazia) e prática (cega). A Teoria não nasce do céu dos conceitos, desenhada numa prancheta, pois é desde sempre mergulhada no mundo prático. Só que a prática também não existe “em si”, mas articulada num universo interpretativo. Sendo assim, a Teoria também importa! Precisamos dela para organizar os sentidos, para projetar um horizonte. Para resumir de um modo simples: a ambição descritiva não pode sufocar a prescritiva.

Já escrevi muito sobre isso. Portanto, neste espaço, não posso explicitar no que deve consistir uma teorização acerca do que seja uma decisão adequada a Constituição (por que será que estou falando em Constituição? E de Direito? Isso é importante? Deixa prá lá; talvez porque eu seja…jurista e não sociólogo ou engenheiro ou economista ou psicanalista…). Contento-me, para os objetivos desta coluna, em dizer que uma decisão deve ser dada por princípio e não por políticas; nem por moral(ismos)…! (ver aqui).

Fundamentalmente, deve-se evitar que a decisão seja dada por ideologia, subjetividade ou por interesses pessoais (espaço em que entra o sujeito solipsista mais especificamente — sim, aquele “sujeito-viciado-em-si-mesmo e que continua infernizando o que resta da modernidade). Mas, tranquilizemo-nos: O juiz não é uma figura inerte, neutra. Não, não quero — e jamais pretendi — proibir os juízes de interpretar, como alguns, equivocadamente, vivem apregoando. Portanto, não há dúvida de que pulsa um coração no peito dos juízes. Não é disso que se trata. Tenha-se claro, mas muito claro mesmo, que discutir teoria da decisão não tem absolutamente nada a ver com o repristinamento do juiz boca da lei ou outras coisas rasas como essa. E não percamos mais tempo com essas aleivosias.

Sigo. Para exercitar minha LEER: se o direito tem um grau de autonomia e se temos uma Constituição normativa — portanto, ela é lei — estão temos que construir as condições epistêmicas para que uma decisão não seja fruto de opiniões pessoais ou por influencias políticas, econômicas ou da mídia. Trata-se de discutir a democracia. Mídia não é fonte de direito! Não creio que Habermas, Dworkin, Hart etc. tenham escrito inutilmente sobre o direito e mereçam o desprezo de um certo imaginário refém do senso comum teórico ou até mesmo caudatário de teorias criticas “espertas”, que trazem a novidade tipo “direito é poder; direito é superestrutura; direito é valor”. Parabéns pela descoberta política-econômica-sociológica-moral. Eu achava que o direito era neutro…

Digo tudo isso para mostrar que é possível fazer a coisa certa no direito, contra tudo e contra todos. Se quisermos brincar com a filosofia moral exercitada por autores como M.Sandel, que pergunta acerca de como se pode fazer a coisa certa, podemos afirmar que, sim, é possível colocar a moral pública acima da moral privada,. Aliás, Wittgenstein já dissera de há muito que não há linguagem privada. Ou seja: minha opinião privada não pode tiranizar ou pautar a esfera pública, mormente “se eu for um agente político, com responsabilidade política”.

Tudo isso para falar da decisão do juiz federal atuante no Maranhão, José Magno Linares Moraes, que determinou a soltura da “famosa” ex-prefeita (Bom jardim-MA) que fez sucesso no Youtube, Lidiane Leite da Silva (ler aqui). Contra toda a opinião pública e o decreto de custódia do tribunal, ele deu uma bela demonstração de que é possível decidir por princípio (embora a decisão cometa um equívoco na interpretação do que seja o juiz Hércules, mas isso não obscurece o brilho da sentença). Disse o juiz:

“A atividade judicial deve pautar-se pela estrita obediência aos programas do sistema jurídico, valorizando a sua autonomia funcional e a sua comunicação específica. O julgador não pode hipervalorizar os outros sistemas sociais (político, econômico ou de comunicação de massa) em detrimento da estrutura do sistema jurídico. É absolutamente inaceitável submeter a legitimidade das decisões judiciais à lógica do consenso popular, como se os juízes fossem representantes do povo. A chamada politização do direito, na sua prática mais extrema, enfraquece o controle da atividade judicial e promove a temível tirania judicial. Por isso, submeto o pedido de liberdade ora formulado a uma análise a partir das referencias do próprio sistema jurídico, de seus institutos e da doutrina acadêmica e da construção jurisprudencial de nossos tribunais”. (grifei)

Na sequência, o magistrado cita um acórdão do STJ, prestigiando a estrutura do direito, que é formado por regras, princípios, doutrina, jurisprudência…. (é um conceito interpretativo, como explico em vários textos e livros). Resumindo: pode a prisão ser decretada, mas os fundamentos — que devem ser sólidos — necessitam ter sólidos fundamentos. Nesse caso concreto, o juiz enfrentou os argumentos do pedido de prisão e da decretação anterior de forma principiológica. A polícia e o MP diziam que o réu poderia alterar provas etc.. Pois como contraponto, José Magno invoca, com maestria, uma coisa prosaica, que de há muito foi esquecida: a “legalidade”. Sim, bingo de novo! Ela existe. O direito também serve para garantir liberdades. Direito não é só “poder”, “política”, “sociologia”. Até mesmo o velho CPP pode emancipar. Como procurador de Justiça, invocava tal legalidade (sou apaixonado por Elias Dias, que fala da legalidade constitucional),[5] por exemplo, para anular laudos periciais feitos por pessoas sem curso superior ou sem expertise. Ou lançava mão da ampla defesa (constante da CF!) para buscar a anulação de ações penais que, muito antes da lei de 2003, não continham advogado no interrogatório do acusado. Simples assim. Ou fazia uma reconstrução da história institucional do fenômeno (método hermenêutico), mostrando, como demonstro na introdução do livro Lições de Critica Hermeneutica do Direito, o que é, de fato, uma qualificadora de escalada, fazendo uma dura crítica ao senso comum coagulado da dogmática penal.

Só para demonstrar o nível do imaginário: diante da decisão do juiz federal do Maranhão, um jurista mais ou menos conhecido, disse: que absurda essa decisão… Se a moda pega… Pois um jornalista do Piauí, lendo a decisão, disse a mesma coisa: que terrível essa decisão… se a moda pega…

E eu digo: tomara que a moda pegue! Simples assim! Mídia e moralismos e outros quetais não são Direito. E nem constituem fontes de Direito. O Direito precisa resistir aos seus predadores!


1 Um hegelo-marxista como Roberto Lyra Filho criticava esse tipo de sociologismo que despreza o direito, chamando-o de positivismo sociologista, parente do positivismo historicista. Nesse tipo de positivismo, diz Lyra Filho, “o Direito aparece tão-só como forma de controle social, ligado à organização do poder classístico, que tanto pode exprimir-se através das leis, como desprezá-las, rasgar constituições, derrubar titulares e órgãos do Estado legal, tomando diretamente as rédeas do poder”. Na mosca. Algumas análises sobre o direito que se tem visto por aí se encaixam bem nesse perfil.

2 Como diz meu Amigo Marcelo Cattoni, temos de fazer uma leitura diferente daquela que os funcionalistas fazem de Marx. Sartre também pode ajudar, com seu Questão de Método, que está na Coleção Os pensadores e que foi publicado como ensaio introdutório à Crítica da Razão Dialética. Cattoni também sugere o belo texto do marxista frankfurtiano Franz Neumann – que, aliás, ele está trabalhando no doutorado da UFMG com seus alunos. Neumann critica o nazismo em face, justamente, da ideologia das cláusulas gerais e da livre apreciação judicial! Bingo! E relê Weber com os olhos postos em Marx, vendo uma dimensão emancipatória, garantista e compromissória na tradição do Direito racional burguês positivado, perpassado por uma tensão permanente entre soberania e liberdade.

3 É “genial” ver alguém na área jurídica dizer, com base em Althusser: o legislador pertence ao aparelho do Estado…

4 Claro que direito envolve poder. Até as pedras sabem disso. Mas se ele não tem um grau de autonomia, não há nem mesmo direito. Logo, se só há poder, porque falar em Constituição, direitos, etc? Veja-se que nem mesmo marxistas como Lukács desprezavam a importância do direito, lembrando que os teóricos das revoluções burguesas estavam preocupados com as noções de igualdade e cidadania e isso era absolutamente relevante.

5 Qualquer um sabe que Lyra Filho tinha razão quando dizia que a positividade do Direito não conduz fatalmente ao positivismo.

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