Opinião

Princípio da cooperação no novo CPC construirá nova cultura processual

Autor

  • Thiago Soares Castelliano Lucena de Castro

    é juiz de Direito no Tribunal de Justiça do Estado de Goiás mestre em Direito do Agronegócio e Desenvolvimento pela Universidade de Rio Verde especialista em U.S. Legal System pela Fordham University (EUA) ex-diretor da Escola Superior da Magistratura do Estado de Goiás e autor do livro A Avaliação da Cadec e a Presunção Legal no Contrato de Integração pela editora Thoth.

15 de novembro de 2015, 9h30

A construção do arcabouço jurídico de uma sociedade ocorre, normalmente, de forma gradativa e contínua ao longo do tempo. Não é comum, em situação de normalidade econômica, social ou política, a ruptura da norma vigente de forma a alterar todo um sistema posto.

No Brasil, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, foram poucas as rupturas legais, manifestadas na edição do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), do Código Civil (Lei 10.406/02) e, agora, do novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/15).

Em sua exposição de motivos afirma que “não significa, todavia, uma ruptura com o passado, mas um passo à frente”; entretanto, numa análise bem detida de seus objetivos e das modificações operadas, não se desconhece que muita coisa foi mantida, mas uma ruptura ocorreu.

É o código da superação de muitos dogmas.

Uma das mudanças mais abruptas, que é objeto desta explanação, se refere ao redimensionamento da atuação do Estado-juiz na condução do processo, ao acolher o denominado princípio da cooperação – ou da comparticipação[1] – no art. 6º, que assim dispõe:

Art. 6o Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.

Na teoria processualística há dois modelos básicos de organização do processo, que disciplinam a atuação do Estado-Juiz ao definir seus poderes e, por consequência, seu protagonismo.

No sistema adversarial, de inspiração liberal, vigora o princípio dispositivo e a verdade formal, e o processo é tido por uma competição ou uma disputa entre autor e réu pelo mesmo bem da vida, onde ambos são os protagonistas deste duelo e o Estado-Juiz se limita, unicamente, a atuar como observador distante e passivo. Assiste a tudo para, ao final, proferir sua sentença, sem interação.

A surpresa parece ser sua tônica, pois faz “incidir, até mesmo de ofício, regras de ordem pública, sem qualquer debate prévio com os sujeitos interessados no processo”[2].

Já o sistema inquisitorial, inspirado no welfare state, é orientado pelo princípio inquisitivo e a verdade material, onde o protagonismo no processo não pertence mais às partes e sim ao Estado-Juiz, que age de forma presente e ativa em sua condução, como se assumisse para si próprio a tarefa de afastar eventuais deficiências nas defesas das partes, apesar de assistidos por advogados.

O Código de 1973 mescla institutos jurídicos de ambos os modelos. Ora é adversarial, por exemplo, ao imputar ao réu o ônus da impugnação especificada (art. 302, parágrafo único) e lhe impor uma grave sanção pelo descumprimento; ora é inquisitorial ao estampar, por exemplo, no art. 130, a possibilidade do juiz, de ofício, determinar as provas necessárias à instrução do feito, suprindo carência ou deficiência probatória de uma parte sob o argumento de que é o seu destinatário.

O novo Código se propõe a acolher uma terceira via, que não é fruto da soma, junção ou mescla das anteriores. É um caminho próprio. Denominado sistema de cooperação, para uma parte da doutrina o novo modelo redimensiona o princípio do contraditório, pois não considera mais o processo como duelo e o Estado-Juiz como mero espectador; muito menos confere ao Estado o protagonismo único. Para outros, é uma concretização do princípio da boa-fé em matéria processual.[3]

Independentemente da origem, pretende-se atribuir ao Estado-Juiz um papel que nunca exerceu, de gestor do processo. Além de prolatar os já conhecidos pronunciamentos judiciais, em sua condução deverá otimizá-lo, fomentar a participação das partes, contribuir para o desenvolvimento e a satisfação dos interessados, afastar os obstáculos e, finalmente, atingir o objetivo de resolução do conflito. Resumindo, o juiz planeja, organiza e lidera para pôr fim ao conflito.

Uma observação: não podemos sofrer com a síndrome de Poliana[4] e acreditar, utopicamente, que as partes – e seus advogados – buscam, por si só e a troco de nada, cooperação mútua, solidariedade e generosidade. É claro que não. Seus objetivos são bem claros: a vitória. Na prática forense a tônica processual não está calcada nas ideias de Justiça distributiva ou comutativa. Cada um não busca Justiça, mas apenas o seu interesse.

Mesmo nesse conflito de interesse qualificado por uma pretensão resistida[5], em que aparentemente não há clima para cooperação, o novo Código pretende amenizar e reduzir o ponto de tensão na relação triangular, incialmente entre autor e réu, e entre eles e o juiz, que muitas das vezes prejudica a marcha do processo e impede a prestação jurisdicional de mérito efetiva.[6]

Com o novo princípio se estabelece a premissa, embora pareça óbvia, que o jurisdicionado busca uma solução e não o envolvimento em questiúnculas ou armadilhas processuais, às vezes com a participação do Estado-Juiz.

Se no Código de 1973 a condução do feito e a decisão judicial eram atos de poder estatal, que expressavam soberania interna, portanto, não dialogáveis, no novo Código a condução será em cooperação, restringindo-se o ato de poder apenas às decisões, notadamente a sentença.

A doutrina aponta que esse novo modelo trará à tona quatro vertentes[7].

Primeira, a prevenção se refere à oportunização de correção do ato praticado, a fim de se evitar nulidades, irregularidades ou quaisquer outros obstáculos à entrega da prestação jurisdicional definitiva. O CPC consagrou a exigência de se convidar a parte a aperfeiçoar seu articulado.

A título exemplificativo, o art. 321 dispõe que se a petição inicial contiver alguma irregularidade, o juiz determinará que o autor a emende ou complete, e deverá indicar “com precisão o que deve ser corrigido”, ou seja, será especificado o que merece reparo, até porque as partes não têm juízo de adivinhação.

No caso de incorreção da indicação do legitimado passivo ad causam, o CPC atual prevê a figura da nomeação à autoria. No novo regime processual, a nomeação ocorrerá dentro da contestação (art. 338), devendo o juiz facultar ao autor, em 15 dias, a alteração da inicial para substituição do réu.

Por força do novo art. 340, se o réu for citado em seu domicílio – que não coincide com o foro onde a ação que lhe foi proposta tramita –, havendo alegação de incompetência relativa ou absoluta a contestação poderá ser protocolada no seu foro, o que será comunicado ao juiz da causa. Sua peça defensiva será livremente distribuída e, caso reconhecida a competência do foro indicado pelo réu, o juízo para qual foi distribuída a contestação será prevento.

Segunda vertente, a assistência exige que o Estado-Juiz auxilie as partes para que haja paridade de arma entre elas (aspecto protetivo) e possam negociar sobre o andamento do feito (aspecto negocial).

No aspecto protetivo, o art. 53, III, ‘e’, fixa a competência no domicílio do idoso para causa que verse sobre direito previsto no estatuto; enquanto o art. 63 reconhece a possibilidade de afastamento da cláusula de eleição de foro abusiva, de ofício ou mediante provocação.

No aspecto negocial, em razão do interesse das partes na solução do litígio, permite que busquem uma solução mais rápida ao acolher a teoria do negócio jurídico processual, conferindo, no art. 190, uma autonomia relativa de vontade para que as partes estipulem mudanças no procedimento, para “ajustá-lo às especificidades da causa”, convencionando sobre ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, em qualquer fase do processo. No art. 191 permite a fixação de um calendário entre as partes e o juiz para a prática de atos processuais, que vincula a todos e dispensa as futuras intimações.

As vertentes esclarecimento e consulta são os lados de uma mesma moeda, que criam um dever legal de vedação à surpresa, embora cada uma com sua incidência específica.

No esclarecimento, havendo manifestação da parte que cause, por exemplo, dúvida, o Estado-Juiz deverá, antes de proferir a decisão, oportunizar que explique melhor ou justifique. Assim, pelo art. 99, § 2°, o juiz apenas poderá indeferir o pedido de gratuidade de justiça após, previamente, assegurar à parte a “comprovação do preenchimento dos referidos pressupostos”.

Na consulta, por sua vez, não há prévia manifestação da parte, mas o Estado-Juiz, antes de proferir pronunciamento de cunho decisório, deverá ou poderá, a depender da norma, escutar as partes envolvidas sobre uma situação processual que se apresenta no processo.

Deverá escutá-los previamente quando se deparar, segundo o art. 10, com matérias que podem ser decididas de ofício. Ainda que não dependa de provocação, como ocorre com os pressupostos processuais e as condições da ação, não podendo julgar imediatamente, sem ouvi-las.

Poderá escutá-las, de acordo com o art. 357, § 3o, se a causa apresentar complexidade em matéria de fato ou de direito, quando então designará audiência para que o saneamento seja feito em cooperação, tanto que as partes serão convidadas, e não intimadas.

O que se percebe, com as quatro vertentes do princípio da cooperação, que haverá a mitigação da denominada jurisprudência defensiva e uma limitação maior na extinção do feito por irregularidades processuais. Finalmente, ao que se vê, a norma processual conferirá concretude aos princípios da inafastabilidade da jurisdição e da efetividade.

 


[1] O nome iuris do instituto varia de acordo com a doutrina. Humberto Theodoro se refere à comparticipação na obra “Novo CPC – Fundamentos e Sistematização”. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

[2]  THEODORO JR., Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC – Fundamentos e Sistematização. Rio de Janeiro: Forense, 2015, pg. 73

[3] Fredie Didier Jr. entende que se trata de redimensionamento do contraditório (Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. Bahia: Ed. Jus Podium, 2015, pg. 125). Já para Nelson Nery Jr. (Comentários ao Código de Processo Civil, 2015) e Teresa Arruda Alvim Wambier (Primeiros Comentários ao Novo Código de Processo Civil, 2015) a cooperação no processo tem por origem a boa-fé processual, sendo um dos seus desdobramentos.

[4] Poliana é uma personagem da literatura infantojuvenil, criada por Eleanor Porter, que enfrenta todas as questões da vida numa perspectiva sempre positiva.

[5] Esse é o conceito de 'lide' formulado por Francesco Carnelutti.

[6] O professor Humberto Theodoro Jr., por exemplo, afirma que se busca com a nova norma é mitigar o comportamento não cooperativo (THEODORO JR., Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC – Fundamentos e Sistematização. Rio de Janeiro: Forense, 2015, pg. 69).

[7] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. Bahia: Ed. Jus Podium, 2015, pg. 120/145.

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