Processo Familiar

Culpa cabe na religião e na mente, mas não no Direito de Família

Autor

  • Giselle Câmara Groeninga

    é psicanalista doutora em Direito Civil pela USP diretora da Comissão de Relações Interdisciplinares do IBDFAM vice-presidente da Sociedade Internacional de Direito de Família professora da Escola Paulista de Direito.

15 de novembro de 2015, 12h29

Spacca
Algumas notícias recentes tais como a votação do Estatuto da Família[1], que exclui a realidade da diversidade das organizações familiares, as discussões quanto ao aborto e pílula do dia seguinte, inclusive nos casos de estupro, em muitos aspectos representam um retrocesso quanto à laicidade do Estado e do Direito.

A dinâmica pendular, de avanços e de retrocessos, e de tensão entre os poderes, e mesmo ideologias, é um movimento inerente às mudanças legislativas que devem acompanhar a sociedade. No entanto, às ideologias devemos atentar.

Após um Outubro Rosa, que iluminou questões ligadas às mulheres, em muito transcendendo o nosso contexto a cena mundial foi invadida pelas mais do que alarmantes notícias dos ataques terroristas em Paris, na última sexta feira 13 de novembro.

Polarizados dois lados. De um, o amálgama de religião e Direito; de outro, direitos fundamentais e conquistas quanto à liberdade, inclusive de credo e de pluralidade quanto às várias formas de constituição das famílias, aí incluída a diversidade quanto às manifestações da sexualidade, e conquistas quanto à laicização do Estado e do Direito. 

Aponto que algumas diferenças marcam também os contrastantes avanços havidos pelo nosso Direito de Família, avanços dos quais devemos cuidar. O choque dos ataques alerta para a importância, e mesmo urgência, da discussão dos temas que, em nossas terras, têm sido defendidos muitas vezes de forma passional.

A exclusividade de valores religiosos do matrimônio indissolúvel e sacralizado, e entre homens e mulheres, com fins de procriação, passou, há já algum tempo, a contemplar diferenças e diversidades. A família, atualmente, se define como eudemonista, em que cada um busca sua realização e bem estar, pautadas as relações pela igualdade e pelo respeito às diferenças, e pelos valores da ética do cuidado e da solidariedade.

A mudança que vejo como definidora das diferenças é a da laicização do Direito e, do ponto de vista que aqui enfatizo, é a mudança de paradigma daquele baseado na culpa para aquele baseado na responsabilidade.[2]

Há muito a culpa tem sido usada e abusada pelo Estado e pelo Direito de Família, e ideologias religiosas para o controle das relações.

Não abordo aqui, absolutamente, a culpa estritamente do ponto de vista religioso, mas aponto que não mais cabe a utilização acrítica de tal instrumento pelo nosso Direito de Família. E, neste sentido é que alerto para o cuidado quanto aos retrocessos.

A culpa é uma poderosa forma de dominação utilizada para o quê, hoje, por vezes detectamos como indevido exercício do poder afetivo por parte de instituições. Poder amalgamado com aspectos da ideologia religiosa, patriarcal, e outras. Inclusive servindo-se, por vezes, também de racionalizações subtraídas da psicologia. Uma forma de dominação da mente e dos comportamentos.

A culpa é um sentimento que, por ter a peculiaridade de ser também inconsciente, diversamente de todos os outros sentimentos, se priorizado e se não evoluir para a responsabilidade, traz várias consequências. Pode nos vitimizar quando ao outro a atribuímos indiscriminadamente; pode nos martirizar quando a nós a atribuímos de forma inconsciente. Mas, sobretudo, nos infatiliza, pelo caráter impessoal que ela tem, e leva a radicalizações.

A culpa pode, também, servir de álibi quanto à enfrentar e assumir pessoalmente as responsabilidades. Uma equação que se traduz como: culpado por tudo responsável por muito pouco.

O Direito de Família era pautado pela atribuição de culpas, prenhe de interpretações não só com alta dose de subjetividade e ideologias, como, em consequência, parciais. Atualmente, temos mais consciência de impensáveis violações ao direito à intimidade e dos ataques à dignidade, cometidos sob o manto da investigação da culpa, dividindo as relações em culpado, algozes, e vítimas, inocentes.

Preciso dizer que a culpa, no mais das vezes, recaía (e ainda recai) sobretudo sobre mulheres, na tentativa de exercer controle sobre a sexualidade e, também, sobre a maternidade e mesmo o patrimônio, transformando-as em vítimas do sistema. Necessário, ainda, dizer o quanto a homossexualidade é alvo da tentativa da imputação da culpa. 

Não perquirir culpas denota um amadurecimento bem vindo da laicização do Direito, e mais livre do controle de ideologias e propósitos outros que fogem à sua finalidade. Mas, certo é que outros capítulos, no sentido não mais das culpas e sim das responsabilidades, deverão ser escritos nas evoluções da legislação.

Em tempos de uma bem vinda consideração e integração dos afetos no Direito de Família, em que evoluímos de modelos que pretendiam ignorá-los, cabe relembrar que somos seres particularmente vulneráveis aos afetos e sentimentos deles derivados. Disso ninguém duvida.

Mas, o somos inadvertidamente, sobretudo, vulneráveis ao sentimento de culpa que, diversamente dos outros sentimentos, tem a peculiaridade de ser também inconsciente. E, ao se tratar do inconsciente, como disse Freud, não somos lá muito donos de nossa mente.

Se a culpa não deve mais ter o lugar que tinha no Direito de Família, cabe dizer que em termos psíquicos, ela é um sentimento com o qual estamos sempre às voltas, no incessante trabalho mental de diferenciar entre a culpa e a responsabilidade.

Assim, por ser um sentimento também inconsciente, lhe somos particularmente vulneráveis, do que decorre o imenso poder de controle dos comportamentos e das relações.

Ninguém desconhece nos relacionamentos, sobretudo os familiares, o poder e o custoso trabalho de discriminação que o sentimento de culpa demanda no processo de individuação e do assumir responsabilidades.

A culpa é um sentimento inerente ao ser humano e muito do trabalho mental e de amadurecimento se dá no sentido da transformação de uma posição de vítima passiva das circunstâncias e dos outros em agentes e narradores da própria vida. Por exemplo, é natural durante a infância e adolescência, atribuir-se a culpa e responsabilidades aos pais, para se chegar à equação da responsabilidade que aqueles cabe e coube, para aquela que efetivamente agora cabe ao sujeito, inclusive quanto às suas escolhas.

Longo o caminho de amadurecimento de sujeito assujeitado a sujeito agente, com a devido equilíbrio na atribuição das responsabilidades — a si e ao outro.

Longo o percurso da cidadania, e de valores democráticos e republicanos, de sujeito assujeitado, vítima passiva de instituições e de ideologias que lhe ferem direitos fundamentais, para sujeito que assuma responsabilidades, e que, devidamente, as possa assim, também, cobrá-las.


[1] Nome que leva à confusão com o Estatuto das Famílias proposto pelo IBDFAM e apresentado pela Senadora Lídice da Mata.
[2] GROENINGA, GISELLE CÂMARA. A (In)Operabilidade do Conceito de Culpa no Direito de Família – uma perspectiva interdisciplinar. Dissertação de mestrado em Direito Civil defendida na Universidade de São Paulo, 2008.

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    é psicanalista, doutora em Direito Civil pela USP, diretora da Comissão de Relações Interdisciplinares do IBDFAM, vice-presidente da Sociedade Internacional de Direito de Família, professora da Escola Paulista de Direito.

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