Embargos Culturais

Franklyn Távora, o Cabeleira e o tema da injustiça social

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

15 de novembro de 2015, 7h00

Spacca
Arnaldo Godoy [Spacca]O escritor cearense Franklyn Távora (1842-1888), ligado a Tobias Barreto e à Escola do Recife[1], idealizou um protótipo de cangaceiro, o Cabeleira (título do livro). Trata-se do imaginário José Gomes. Este personagem, o Cabeleira, perambulou pelo interior do Pernambuco, injustiçado, tentando levar para os menos favorecidos uma justiça que o Estado e os poderosos se negavam a implementar. É de alguma forma um antepassado remoto do herói do sertão, um bandido social, tipologia que foi também explorada por Eric Hobsbawn.

Eis o personagem, na descrição do escritor cearense: “O Cabeleira chamava-se José Gomes, e era filho de um mameluco por nome Joaquim Gomes, sujeito de más entranhas, dado à prática dos mais hediondos crimes. ”[2] Além de idealizar um anti-herói, cujo ambiente familiar vincula-se a um sujeito metaforicamente prenhe de más vísceras, Franklyn Távora, ao longo da obra, também inventou um juiz ventríloquo das ordens dos mais fortes. Assim: “(…) mais sou eu acaso juiz? Não sou mais do que o executor de uma ordem do governador. Acredito que prendi um criminoso, para o qual, se a mim competisse julgá-lo, teria eu uma condenação mais branda. Mas o direito de o mandar ir embora não o tenho eu. ”[3]

Franklyn Távora insurgiu-se contra a (in) justiça de sua época, e sua obra traduz um desencanto. É um crítico. Ao narrar a execução do Cabeleira, o escritor cearense valeu-se de imagens fortes para criticar uma justiça cega, se é possível um equívoco malicioso: “O juiz nomeado pelo Governador para assistir à execução em conformidade do disposto na provisão régia, ordenou que o escrivão repetisse a leitura da sentença. Os delinquentes ouviram pela vigésima vez, com sincera contrição, esse padrão do absolutismo colonial. ”[4] E após a execução da sentença: “Cena bárbara que enche de horror a humanidade, e cobre de vergonha e luto, como tantas outras, a história do período colonial! ”[5]

Para Franklyn Távora os efeitos pedagógicos da pena eram nulos: “A execução do Cabeleira e seus corréus não atalhou as desordens e delitos, a que se refere a provisão; não trouxe terror nem emenda aos malfeitores. ”[6] E zurziu a pena de morte, em passagem bem atual: “Ah! Meu amigo, a pena de morte, que as idades e as luzes têm demonstrado não ser mais que um crime jurídico, de feito não corrige nem moraliza. O que ela faz é enegrecer os códigos que em suas páginas a estampam, por mais liberais e sábios que sejam como é o nosso; é abater o poder que a aplica; é escandalizar, consternar e envilecer as populações em cujo seio se efetua. ”[7]

Franklyn Távora imputou à sociedade os crimes que a justiça condenava. Escreveu: “A justiça executou o Cabeleira por crimes que tiveram sua principal origem na ignorância e na pobreza. Mas o responsável de males semelhantes não será primeiro que todos a sociedade que não cumpre o dever de difundir a instrução, fonte da moral, e de organizar o trabalho, fonte da riqueza? Se a sociedade não tem em caso nenhum o direito de aplicar a pena de morte a ninguém, muito menos tem o de aplicá-la aos réus ignorantes e pobres, isto é, àqueles que cometem o delito sem pleno conhecimento do mal, e obrigados muitas vezes da necessidade. ”[8]

Aqui a singular posição de Franklyn Távora. Raivoso para com o sistema o qual, a seu ver, reproduzia a miséria, verdadeira causa do chamado comportamento marginal, legou-nos uma obra genuinamente brasileira, reveladora de nossas mazelas, e de pontos recorrentes que nos cobrem de insatisfações e frustrações. Ler este livro de Franklyn Távora, ainda hoje, é um encontro com um tipo ideal — ainda que literário — que transita por nossos rincões e grandes cidades. Os injustiçados estão entre nós, porque a injustiça também está em nós, ainda que clamemos, o tempo todo, que a buscamos a justiça, todo o tempo.


1 Nesse particular, conferir, especialmente, Aguiar, Cláudio, Franklyn Távora e o seu tempo, São Caetano do Sul: Ateliê Editorial, 1997, pp.69-88.

2 Franklyn Távora, O Cabeleira, São Paulo: Ática, s.d.,pág. 19.

3 Franklyn Távora, O Cabeleira, pág. 150.

4 Franklyn Távora, O Cabeleira, pág. 153.

5 Franklyn Távora, O Cabeleira, pág. 154.

6 Franklyn Távora, O Cabeleira, pág. 155.

7 Franklyn Távora, O Cabeleira, pág. 155.

8 Franklyn Távora, O Cabeleira, pág. 155.

Autores

  • Brave

    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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