Diário de Classe

Proposta metodológica para a análise do conceito de princípio no Direito

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14 de novembro de 2015, 7h00

Spacca
O termo princípio é utilizado pelos juristas com diferentes perspectivas e intencionalidades.[1] Quando se fala em princípio no direito, nem sempre se está diante da mesma referência objetual. Em termos conceituais, o espaço denotativo do conceito de princípio é abrangente.

Ocorre que, aqueles que trabalham com a linguagem jurídica, nem sempre se preocupam em precisar o sentido com que estão operando no momento em que fazem uso do conceito de princípio. Incorre-se, assim, em uma confusão decorrente do uso aleatório do conceito.

Daí que, uma análise rigorosa que se faça a respeito do conceito de princípio, deve partir de um esclarecimento inicial a respeito de suas diversas possibilidades de uso.

No contexto atual, o termo princípio é certamente um dos mais recorrentes tanto no plano da produção teórica do direito, quanto no nível das práticas cotidianas dos tribunais. Afirma-se que os princípios são “as normas fundantes e nucleares de um sistema”[2]; que se apresentam como demarcadores do “ponto inicial dos estudos de uma disciplina jurídica”; que são instrumentos de colmatação de lacunas, nos termos do artigo 4o da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro; que são normas[3]; que são “normas de normas”[4]; que representam um “fechamento interpretativo limitador da discricionariedade judicial”[5] etc.

Uma simples aproximação inicial em meio a esses diversos enunciados aleatoriamente mencionados no parágrafo anterior é suficiente para perceber que, tais assertivas, não se referem necessariamente ao mesmo campo significativo. Ao contrário, cada uma possui uma origem específica em um determinado espaço de experiência que lhe projeta, ou lhe abre, um correspondente horizonte de expectativa que irá estabelecer as possibilidades semânticas de significação do conceito.[6]

Para facilitar a compreensão, podemos agrupar esses diferentes usos do conceito em três dimensões que comportam, do ponto de vista da história conceitual, um diferente espaço de experiência e um específico horizonte de expectativa. Essas três dimensões cobrem um movimento histórico que se deflagra no século XIX e chega até o nosso contexto atual. Assim, é preciso distinguir e perceber as rupturas que existem entre três possibilidades de uso do conceito: a) os princípios gerais do direito; b) os princípios jurídico-epistemológicos e c) os princípios constitucionais.

Princípios gerais do Direito
A utilização do conceito de princípio para se referir à ideia de princípios gerais do direito remonta ao século XIX e a formação dos sistemas codificados de direito privado, notadamente a realização máxima desse conjunto de experiências que são os Códigos Civis (os mais representativos, nesse contexto, são: o Código Civil francês de 1804 e o Código Civil alemão de 1900).

Na verdade, a introdução dos princípios gerais do direito nesse espaço de experiências representa um abalo no ideal de completude que revestia a codificação francesa (é sempre lembrada nesse sentido a prescrição napoleônica que proibia a interpretação dos dispositivos do código) e na formula dedutivista de aplicação do direito criada pela pandectistica alemã. Representariam eles “axiomas de justiça” que poderiam reforçar o sistema codificado em casos de lacunas legislativas.

No fundo, os princípios gerais do direito continuavam a operar com a mesma lógica que estava pressuposta pelo sistema de direito privado: a lacuna legislativa seria apenas aparente. O sistema seria sempre completo, uma vez que os princípios gerais do direito seriam postulados racionais que estariam pressupostos pelo sistema codificado. Sua aplicação a casos particulares, além de excepcionalíssima, obedeceria ainda às regras do método dedutivo- axiomático. O apelo à razão é significativo aqui porque denota, de forma expressiva, como tais “princípios gerais” representavam uma espécie de reminiscência jusnaturalista dentro do sistema positivo de direito privado, plasmado nas codificações.

Princípios jurídico-epistemológicos
O tempo histórico que conforma o uso desse conceito é o mesmo daquele verificado para os princípios gerais do direito. Todavia, o espaço de experiência é distinto. Dessa forma, o tipo de expectativa que se gera desse uso do conceito de princípio difere nitidamente daquela observada acima.

Em primeiro lugar, os princípios gerais do direito possuem uma clara intencionalidade aplicativa. Vale dizer, eles se propõem a resolver um problema de aplicação do direito em casos que, aparentemente, não existe nenhuma regra clara disponível no sistema para resolver o caso concreto apresentado. Já os princípios jurídico-epistemológicos intencionam dirigir e organizar o estudo de uma disciplina científica particular do direito.

No século XIX, inaugura-se também um movimento de autonomização de diversas disciplinas no estudo do direito. A ciência jurídica que até então englobava todo o estudo do direito – principalmente o direito privado – passa a adotar filhotes que demarcaram as particularidades de uma série de especialidades que não apareciam no espaço de experiência dos juristas medievais e dos primeiros representantes da modernidade jurídica.

O processo, por exemplo, antes um apêndice dos estudos sobre o direito privado, passa a ser estudado autonomamente com pretensões de instituir uma ciência autônoma: a ciência processual. As disciplinas de direito do Estado (Constitucional, Administrativo e Tributário) passam, igualmente, por um processo de autonomização com relação à filosofia política e aos precários estudos sobre o “direito público”, reivindicando, igualmente, o status de ciência.

A ideia de ciência, aqui, não está ligada à aplicação de um método experimental, mas, sim, à ideia de sistema. A questão é estudar, de forma autônoma e sistemática, cada uma dessas disciplinas.

Todas essas disciplinas irão recorrer ao conceito de princípio para organizar e sistematizar os seus conteúdos. Porém, nesse caso, a preocupação é com o estudo e a análise dos temas cobertos por cada uma dessas especialidades e, não necessariamente, uma reposta a um problema de aplicação do direito. Esse último aspecto pode até aparecer no campo de analise, porém esse será um efeito indireto. A função primordial do conceito de princípio aqui é de natureza epistemológica: organizar o estudo de uma disciplina jurídica específica.

Princípios constitucionais
No contexto das transformações que se verificam na teoria jurídica a partir do final da Segunda Guerra Mundial, também o conceito de princípio sofre, ao mesmo tempo, um processo de ruptura no contextos de espaço e experiência e horizonte de expectativa levando à abertura de novas dimensões significacionais.

Nesse caso, os princípios – agora associados à Constituição e a toda sua carga política de conformação de uma nova sociedade e da possibilidade de instituição de um melhor governo, limitado e respeitador dos direitos fundamentais – passam a incorporam um elemento pragmático muito forte. Há uma semelhança de intencionalidade com relação aos princípios gerais do direito. Ambos atuam num contexto de aplicação do direito. Todavia, a composição metodológica do conceito de principio geral do direito é axiomático-dedutiva, ao passo que, os princípios constitucionais são fortemente pragmáticos.

Josef Esser fala, aqui, em “princípios problemáticos” expressão que, em sua obra, serve para abarcar a tradição que se desenvolve na segunda metade do século XX na qual se dá primazia para o “momento” concreto de aplicação do direito, em detrimento do “momento” abstrato-sistemático[7]. É importante advertir, todavia, que esta denominação não pode ser aceita de uma maneira acrítica. Isto porque, no cenário das teorias jurídicas contemporâneas, esse caráter “problemático” assumido pelos princípios jurídicos poderá ser encarado de diversas maneiras. No caso de Esser, apesar de se valer constantemente da experiência anglo-saxã a partir daquilo que se denomina comparative jurisprudence, sua abordagem se aproxima em grande medida da tópica de Viehweg[8], o que não está em jogo nesta investigação. No entanto, não cabe aqui uma abordagem minuciosa desta questão. Importa neste momento compreender em que sentido tal significado do conceito de princípio se diferencia dos demais e como, de alguma maneira, faz os dois significados anteriores entrarem em crise e, com eles, também os conceitos de fundamentação e discricionariedade se tornam problemáticos.

Nessa medida, opera-se uma mudança na intencionalidade com relação ao direito que, em última análise, trará consigo propostas jusfilosóficas dispostas a repensar o seu sentido de modo a não tratá-lo mais como um sistema cerrado, construído abstratamente a partir de modelos epistemológicos fundados na subjetividade e modelados conforme os padrões matemáticos de conhecimento. Para Castanheira Neves, esse era o tempo de se afirmar a autonomia do direito, mas de um modo diverso daquele que afirmou a autonomia dogmática do positivismo “numa forte tentativa da sua superação, justamente em nome de uma autonomia do direito de outro sentido e mais profunda que diferenciava não apenas objetivo-formalmente o jurídico do político, mas, axiológico-materialmente no seu sentido e na sua intencionalidade”[9].

Dito de outro modo: “o problema deixava de ser apenas o da legitimidade (legitimidade política) da criação-constituição do direito, do direito-lei (…), para ser o problema do fundamento-validade constitutiva do direito enquanto direito”[10]. Isso tudo implica na afirmação de um direito (ius) distinto da lei (lex), ou seja, de um direito que se forma a partir de elementos normativos constitutivos diferentes da lei. Nesse sentido, a afirmação dos conceitos de “direitos fundamentais”, das chamadas “cláusulas gerais”, dos “enunciados abertos” e, evidentemente, dos “princípios”. Todos estes elementos – que passam a ser constitutivos da normatividade – são reconhecidos independentemente da lei ou apesar dela.

Dessa maneira, os debates teóricos e os problemas jurídicos passam a reivindicar o estatuto da “prática” e a atividade jurisdicional assume um lugar proeminente nesta questão.

Há que se considerar, ainda, que no âmbito da common law, tradicionalmente, o juiz não formula questões abstratas sobre as fontes ou sobre o método jurídico. Portanto, também o conceito de principles fica, de certo modo, afastado de toda carga axiomática da qual está revestido na tradição continental dos princípios gerais do Direito, que atende, em última análise, à excessiva necessidade da civil law de codificar as regras positivas. Esser procura atentar para isso a partir da distinção de dois modelos de sistema: 1) um aberto, cujo protótipo moderno é o método do direito inglês e angloamericano; 2) um sistema fechado, que se manifesta no modelo jurídico da codificação. Desse modo, dois conceitos distintos de princípios serão produzidos: no sistema fechado os princípios terão as características axiomático-dedutivistas que já aludimos anteriormente; enquanto que no sistema aberto, os princípios são critérios pragmáticos que renunciam a uma conexão dedutiva, assumindo um modo de ser retórico muito mais evidente do que na tradição continental[11].

A atenção se desloca — tal qual diz Esser — do elemento abstrato-sistemático para a atividade concreta do juiz que deixa de ter o caráter de uma simples atividade de dedução de conceitos – parte da estrutura sistemática da ordem jurídica — e passa a ser colocada na necessidade de justificação judicial diante da providência e comprobabilidade dos critérios supralegais de valoração que surgem como elementos constitutivos da normatividade jurídica.

Do conceito de princípio pragmático-problemático podemos dizer, com o auxílio de Castanheira Neves, que “se distinguem decisivamente dos ‘princípios gerais do direito’ que o positivismo normativista-sistemático via como axiomas jurídico-racionais do seu sistema jurídico, pois são agora princípios normativamente materiais fundamentantes da própria juridicidade, expressões normativas de ‘o direito’ em que o sistema jurídico cobra o seu sentido e não apenas a sua racionalidade”[12]

De forma percuciente, Lenio Streck afirma existir uma ruptura paradigmática entre os princípios constitucionais e os princípios gerais do direito. Trata-se de uma verdadeira descontinuidade em que os primeiros não podem simplesmente ser considerados sucedâneo dos outros.[13]

Em suma, cabe registrar que esses elementos que permeiam o conceito de princípios constitucionais, embora projetem maior luz para o fenômeno da decisão judicial, não podem ser tidos como permissivas para livre criação jurisprudencial do direito. O dever de fundamentação das decisões somente é plenamente satisfeito na medida em que as decisões se apresentam adequadas à Constituição. No fundo, os princípios constitucionais oferecem espaços argumentativos que permitem controlar os sentidos articulados pelas decisões. Ademais, o conteúdo dos princípios constitucionais não é pré-definido por lei, muito menos pode ser livremente determinado pelos tribunais, isso porque eles são manifestação histórico-cultural que se expressa em determinado contexto de uma experiência jurídica comum.


[1] Para uma análise pormenorizada da questão, permito-me remeter o leitor para Rafael Tomaz de Oliveira. Decisão Judicial e o Conceito de Princípio. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
[2] Cf. Celso Antônio Bandeira de Melo. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 2011, passim.
[3] Por todos, Cf. Robert Alexy. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008, em especial capítulo I.
[4] Cf. Marcelo Neves. Entre Hidra e Hércules. Princípios e Regras Constitucionais. São Paulo: Martins Fontes, 2013, passim.
[5] Cf. Ronald Dworkin. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002; Lenio Luiz Streck. Verdade e Consenso. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
[6] Nesse aspecto, seguimos os passos metodológicos da História dos Conceitos, notadamente no desenvolvimento que lhe dá Reinhart Koselleck na construção de sua “semântica dos tempos históricos”. Nesse sentido Cf. Reinhart Koselleck. Futuro Passado. Contribuições à Semântica dos Tempos Históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006, pp. 305 e segs.
[7] Cf. ESSER, Josef. Principio y Norma em la Elaboración Jurisprudencial del Derecho Privado. Tradução de Eduardo Valentí Fiol. Barcelona: Bosch, 1961. pp. 62 e segs.
[8] Citando explicitamente Viehweg, Esser afirma que “es el problema, y no el ‘sistema’ en sentido racional, lo que constituye el centro del pensamiento jurídico”. (Cf. ESSER, Josef. op. cit., p. 09 e segs.). 
[9] CASTANHEIRA NEVES, Antônio. A Crise Actual da Filosofia do Direito no Contexto Global da Crise da Filosofia. Tópicos para a possibilidade de uma reflexiva reabilitação. Coimbra:  Coimbra editora, 2003, p. 104.
[10] Idem, ibidem.
[11] ESSER, Josef. op., cit., p. 66. 
[12] CASTANHEIRA NEVES, Antonio. op. cit., p. 108.
[13] STRECK, Lenio Luiz. op., cit., p. 518.

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