Passado a Limpo

O uso dos passaportes em 1927 e o caso da dupla nacionalidade

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

12 de novembro de 2015, 8h42

Spacca
Arnaldo Godoy [Spacca]Em 1927 a Consultoria-Geral da República respondeu consulta formulada pelo Ministério das Relações Exteriores relativa a um problema de dupla nacionalidade. Chama atenção, no conteúdo do parecer então confeccionado, um conjunto de digressões e ponderações sobre a emissão e uso de passaportes.

Revela o parecerista, Rodrigo Otávio, especialista em Direito Internacional, que o passaporte é uma exigência que decorre de tempos de guerra e que, historicamente, era mero documento de identidade, não necessariamente exigível para que se transpusesse fronteiras. O texto é fino exemplo de doutrina explicitada em produção técnica, aproximando teoria e prática; um exemplo de redação jurídica, objetiva, direta e substancialmente focada na solução de um problema concreto. Segue o parecer:

     “Gabinete do Consultor-Geral da República – Rio de Janeiro, 28 de novembro de 1927.

Exmo. Senhor Ministro de Estado das Relações Exteriores – Dignou-se V. Exa., com o Aviso nº PE/189 de 20 de outubro próximo findo, submeter a meu exame a questão de saber se:  1º) Seria inconstitucional a lei que estabelecesse, para a concessão de um passaporte brasileiro a um indivíduo com dupla nacionalidade, inclusive a nossa, a prévia renúncia da nacionalidade estrangeira, quando essa renúncia fosse aceita pela nação respectiva? 2º) Seria inconstitucional negar o Governo passaporte aos brasileiros em tais condições que não quisessem ou não pudessem renunciar a nacionalidade estrangeira, no caso de pretenderem dirigir-se ao país de que são, também, legalmente nacionais? 3º) Não poderia o Governo considerar incurso na letra a do § 2º do art. 71 da Constituição e, conseguintemente, sujeito a perder a nacionalidade brasileira, o brasileiro com dupla nacionalidade que usasse de passaporte estrangeiro, isto é, de um título de nacionalidade estrangeira?

Havendo estudado a matéria com a devida atenção, é meu parecer, Senhor Ministro que para eficaz solução destes casos, como de outros que com eles se relacionam, seria mister não só uma lei completa sobre passaporte, como um entendimento internacional a respeito.     Esta matéria foi entre nós, até agora, tratada sem maior atenção, como, aliás, na generalidade dos Estados; sendo que, desde o último quartel do século passado, a exigência do passaporte foi sendo por toda a parte abolida, ao menos de tal modo negligenciada (…) que, ao irromper a grande guerra, pode se disser que apenas a Rússia, a Turquia, alguns países balcânicos e a China, exigiam passaportes para a entrada em seus territórios. Quanto á nós, como é notório, a própria Constituição, em seus art. 72,§ 1º, nessa parte, aliás, hoje modificada pela reforma de 1926, desclassificou o passaporte, pois permitia a quem quer que fosse que, sem ele, em tempo de paz, entrasse no país e dele saísse. Aliás, o passaporte não era geralmente tido senão como um simples documento de identidade, cuja falta podia ser suprida por outro qualquer meio de prova.

Foi à guerra quem veio restaurar a obrigatoriedade vexatória da exibição do passaporte e, até certo ponto, dar-lhe caráter de documento comprobatório de nacionalidade. Entretanto, ainda hoje o passaporte, na generalidade dos Estados, é, principalmente, um documento de natureza policial, preciso por uma circunstância ocasional, tanto que é geralmente concedido por autoridades locais e para valer por um tempo limitado, em algumas partes, apenas por seis meses.

Não tem o passaporte aquele caráter nos Estados Unidos, onde é considerado positivamente como um título comprobatório da nacionalidade. Para tanto, porém, foi preciso que ali se introduzissem rigorosos princípios legislativos, achando-se a matéria, presentemente regulada por um ato do Presidente W.  Wilson, de 1 de fevereiro de 1915, incorporada aos Revised Status of the Limited States (BORCHARD, The Diplomatic Protection of citizens abroad, § 219, pág. 508). Nos Estados Unidos, pois, o passaporte é um documento que, “no ponto-de-vista internacional, constitui prima facie, prova de nacionalidade ”para isso, porém, foi mister que a lei determinasse: 1º) que o passaporte só fosse expedido mediante demonstração concludente da nacionalidade; 2º) que todo o passaporte fosse concedido pessoalmente pelo Secretário de Estado;

Constituindo-se o passaporte um documento autêntico e solene, expedido em consequência de um processo e de cujo teor consta, necessariamente, que o pretendente prestou juramento de subordinação (allegiance) aos Estados Unidos. Nos demais papéis, porém, o passaporte não tem esse caráter nem a matéria está regulada por tal forma. Entre nós não são muitos os textos legais sobre o assunto. O dispositivo originário é o art. 12 da famosa lei conservadora da organização centralista do Império, número 261 de 3 de dezembro de 1841, que dispunha que: ninguém poderá viajar por mar ou por terra, dentro do Império, sem passaporte, nos casos e pela maneira que for determinada nos regulamentos do governo.

Esse princípio, a que deram regulamentação os arts. 67 e seguintes do Decreto nº 120, de 31 de janeiro de 1842, foi dada pela Lei nº 1.414-A, de 17 de agosto de 1867, mandado aplicar aos passaportes para viajar para fora do Império, lei a que, por sua vez, deu regulamento Decreto nº 4.176, de 6 de maio de 1868, em cujo art. 8º se dispunha que: esses passaportes seriam expedidos pelas mesmas autoridades que atualmente os concedem. Essas autoridades eram segundo o art. 77 do Regulamento nº 120, de 1842: na Corte e nas capitais das províncias os Ministros de e Secretários de Estado, pela maneira até agora praticada, os Presidentes das Províncias e os chefes de polícia. Fora dessas capitais, os delegados e, nas cidades, vilas ou freguesias, em que não residirem delegados, os subdelegados ainda mesmo a estrangeiros, valendo estes últimos só dentro da Província.

Como se vê os passaportes, mesmo para fora do país podiam ser concedidos sem distinção de nacionalidade, por autoridades brasileiras. É certo que o art. 2º do citado Regulamento de 1868, sobre passaportes para fora do Império, dispunha que: Os estrangeiros, para saírem do Império, deverão apresentar o passaporte com que nele entraram ou, na falta desse passaporte, outro, expedido pelas respectivas ligações ou consulados; mas o art. 5º desse mesmo regulamento estatuía que: as autoridades brasileiras deverão, todavia, conceder os passaportes, requeridos por nacionais e estrangeiros, que o quiserem por motivo de proteção e para facilidade do viajante.

Esses dispositivos eram, naturalmente, para vigorar em tempo de paz, sendo o Governo autorizado pelo art. 9º do Regulamento, a alterá-los provisoriamente, em caso de guerra ou grave perturbação interna (art. 87 do Regulamento 120, de 1842); normalmente, porém, tem entre nós o passaporte caráter acentuadamente administrativo de ato de polícia local.

É assim que por Aviso de 19 de dezembro de 1864 “ficou a Secretaria da Polícia da Corte autorizada a expedir passaportes para o exterior, na conformidade do referido art. 77 do Decreto nº 120, mantendo-se, porém, a faculdade da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros de expedi-los também aos agentes diplomáticos e consulares, nacionais e estrangeiros, aos encarregados de despachos, empregados públicos de categoria superior, ou pessoas particulares em iguais circunstâncias. ”

De então em diante, mantida a discriminação de passaportes comuns e diplomáticos, ficou, a competência para a concessão destes definidos nos Regulamentos da Secretaria de Estado, hoje denominada das Relações Exteriores, e a dos comuns estabelecida nos Regulamentos de organização policial. Para que não haja omissão na indicação de nossas leis a respeito, consigne-se que o Decreto nº 1.531, de 10 de junho de 1855, que isentou os estrangeiros do título de residência, contém algumas disposições sobre passaportes, tendo siso essa lei em parte modificada pela de nº 2.466, d 21 de setembro de 1859.


 

Sob o regime republicano o passaporte foi deste logo abolido no Brasil. O Governo Provisório, por Decreto nº 212, de 22 de fevereiro de 1890: considerando que a exigência legal do passaporte,       além de estar em manifesta oposição a um regime de completa liberdade individual, é também um gravame ao emigrante, resolveu decretar que: todas as pessoas podem entrar e permanecer no território nacional ou dele retirar-se, em tempo de paz, como e quando lhe convenha, levando consigo os seus bens, independentemente de passaporte, guardadas as leis de polícia e os direitos de terceiros.

 

Contra esse ato, que tinha força legislativa e que o texto constitucional, já citado, veio corroborar, nenhum outro foi editado pelo Poder Legislativo. O passaporte é, no Brasil, em tempo de paz, facultativo, e a exigência de sua apresentação a entrada ou saída de passageiros, não tem assento legal. É, puramente, arbitrária.

Por isso, abolida, por lei, a exigência de passaporte no Brasil, o seu uso se tornou facultativo e dependente da vontade do interessado. E como se tratava de uma providência legal, passou essa matéria a ser considerada de competência estadual. E sob esse regime a concessão do passaporte, no Distrito Federal, depende de pedido do interessado, existindo como único dispositivo á respeito, o art. 32, nº XIV, do Regulamento para o Serviço Policial, aprovado pelo Decreto nº 6.440, de março de 1907, que dispõe o seguinte: É da competência do Chefe de Polícia: Conceder passaportes às pessoas que o requerem, observado o dispositivo do art. 72, § 10, da Constituição Federal.

E é tudo. Nos Estados a matéria é livremente regulada por seus Poderes Públicos, e isso basta para demonstrar que, no Brasil, o passaporte não tem caráter de título de nacionalidade nem mesmo é documento de natureza federal. Sendo assim, se se pretende considerar, sob qualquer aspecto, esta matéria, a primeira necessidade é procurar regular de modo preciso a concessão de passaportes e definir sua natureza e efeitos, convindo registrar, desde logo, que a Reforma de 1926, modificando a redação do § 10, do art. 72 do nosso estatuto constitucional, retirou dele as expressões que poriam fundadamente em dúvida a legalidade da exigência do passaporte para que, em tempo de paz, quem quer que fosse, entrasse no território nacional ou dele saísse.

Isto posto, examinemos a consulta que visa especialmente o passaporte em face da situação da dupla nacionalidade.

O critério adotado por nós, para tal situação, o só critério, aliás, razoável, tendo-se em conta que a situação da dupla nacionalidade é criada pelo efetivo divergente, mas concomitante, de duas leis igualmente respeitáveis, por isso que emanam de duas soberanias, o critério adotado por nós é o da jurisdição territorial, definido pelo Barão do Rio Branco, no caso de Carlos Levi (…). Desde que o indivíduo, a igual direito e por força de leis igualmente soberanas, é, por exemplo, brasileiro e francês, brasileiro porque nasceu no Brasil e francês porque seu pai era francês, é claro que, estando ele no Brasil, não pode a França pretender ação sobre ele não pode o Brasil, se ele estiver em França.

O caso do passaporte escapa, porém, à aplicação desse critério, por isso que se trata de um ato a ser praticado no Brasil, é certo, mas para produzir efeito em França. Como fazer, pois, para que posa ter plena eficácia em França um passaporte dado, no Brasil, a um indivíduo na situação de dupla nacionalidade, em relação ao nosso país e á França e, para que, antes disso, os agentes consulares de França no Brasil possam apor o visto no passaporte brasileiro concedido a esse indivíduo?

Considera a consulta a providência de subordinar a concessão de um passaporte brasileiro para tal efeito, à prévia renúncia da outra nacionalidade. Evidentemente, desde que ao passaporte fosse dado o caráter de título comprobatório de nacionalidade, ele só poderia ser outorgado mediante a prova completa da nacionalidade brasileira do pretendente, nos termos que a lei determinasse. Mas, à vista dos dispositivos constitucionais do art. 69, nº 1, que: declara como cidadãos brasileiros os nascidos no Brasil, ainda que de pai estrangeiro, não residindo este a serviço de sua nação, e o art. 71, § 2º, que declara que se perdem os direitos de cidadão brasileiro: a) por naturalização em país estrangeiro; b) por aceitação de emprego ou pensão de governo estrangeiro, sem licença do Poder Executivo Federal, não vejo que outra prova adicional de nacionalidade pudesse legalmente ser exigida, desde que o indivíduo houvesse provado de modo indiscutível, que nasceu no Brasil, a não ser a da não existência das circunstâncias especificadas nos dispositivos transcritos e que excluem da nacionalidade.

Não me parece, pois, regular a exigência da renúncia da outra nacionalidade. A dupla nacionalidade é uma situação meramente de fato, mas que, por sua realidade, se impõe à consideração dos governos. As nações, porém, não lhe podem reconhecer efeitos jurídicos, tanto assim que não reconhecem os direitos do outro Estado em causa. E não reconhecendo os efeitos jurídicos da situação de dupla nacionalidade, o Estado não pode subordinar a efetividade de seus direitos sobre um indivíduo que, por suas leis, é, de modo absoluto, seu nacional, à renúncia que ele faça de outra nacionalidade de que, porventura, também esse indivíduo participe e que esse Estado não pode reconhecer.

Acresce que a renúncia da nacionalidade é providência que nem todas as legislações facultam. A própria França, que desde a reforma do art. 8º, do seu Código Civil, por lei de 26 de junho de 1889, admitia aos 21 anos, a renúncia da nacionalidade jure soli para adotar a do pai estrangeiro (§ 4º), acaba, por lei recentíssima, promulgada a 10 de agosto último, de abolir esse direito à renúncia, estatuindo que: O filho legítimo de francês, nascido em França ou no estrangeiro, é Frances de nascimento, sem a faculdade de opção ulterior por outra nacionalidade.

É o princípio       de nosso sistema constitucional que, especificando expressamente como se perde o direito de cidadania, não menciona a renúncia (Constituição, art. 71, § 10). O brasileiro, nascido no Brasil, é, para o Brasil, brasileiro só, sem partilha, sem faculdade de declarar ser de outra nacionalidade. Para ele, o meio de perder a nacionalidade brasileira será a naturalização em outro país, que é ato a ser praticado perante o Governo desse outro Estado, e não perante o próprio Governo Brasileiro, como seria o ato de opção por outra nacionalidade, ou de renúncia da nacionalidade brasileira.

E, ainda por este ponto de vista, não seria aconselhável a providência de exigir o Brasil a renúncia de outra nacionalidade, ao indivíduo com dupla nacionalidade, que pretendesse um passaporte brasileiro, uma vez que não poderíamos oferecer a reciprocidade de procedimento ao outro Estado em causa.      Tratando-se de problema, cuja solução deve ter reflexo, para ser eficiente, em dois Estados diversos, é evidente que, só por meio de um acordo internacional, podia ser posta em prática, e a base de qualquer acordo dessa natureza é a possibilidade da reciprocidade de tratamento.

Por estas considerações, não me parece que a renúncia de uma nacionalidade estrangeira possa ser a base para o regime da concessão de passaporte a brasileiros na situação da dupla nacionalidade. Do mesmo modo, não me parece que se possa, legitimamente, considerar incurso na letra a do § 2º do art. 71 da Constituição, e conseguintemente, sujeito a perder a nacionalidade brasileira, o brasileiro com dupla nacionalidade, que usasse de passaporte estrangeiro.

(…)

No estado atual do direito, porém, o passaporte não pode ser considerado, em toda a parte, no rigor da expressão – um título de nacionalidade, – como foi visto que não é entre nós. E, para que o simples fato de um indivíduo, que tenha necessidade de fazer uma viagem, para a qual lhe seja indispensável, ou mesmo apenas conveniente, obter um passaporte, solicitar esse passaporte, não pode ser considerado como ato de renúncia de sua nacionalidade. No caso particular que aqui nos interessa, vimos já: a) que o brasileiro não é facultado simples ato de renúncia        de nacionalidade; b) que para perdê-la é mister naturalizar-se em país estrangeiro.


 

E assim, para que o ato de solicitar um brasileiro um passaporte estrangeiro possa importar, de acordo com a nossa Constituição, na perda da nacionalidade brasileira, seria mister que, nos termos da lei do país a que pedisse ele o passaporte, o pedido e a outorga do passaporte constituíssem ato de naturalização ou de reconhecimento solene de nacionalidade, como, por exemplo, nos Estados Unidos, onde o passaporte só é concedido mediante: a) prova de nacionalidade; b) juramento de subordinação política.

 

Para mim, Senhor Ministro este caso, que terá grande importância prática enquanto os Estados não restabelecerem o princípio liberal da livre locomoção, em tempo de paz, deve ser resolvido por meio de um acordo internacional, entre os países interessados, por força do qual se proclamem os seguintes princípios: 1º) em relação aos Estados que pretendam ter, sobre o mesmo indivíduo, direitos de soberania, o passaporte, concedido por qualquer deles a esse indivíduo, é meramente um documento de natureza policial, pra fins de identificação pessoal e de faculdade de se ausentar do país em que esteja: 2º) estes passaportes devem ser visados por qualquer  dos cônsules de qualquer dos países interessados, não constituindo, para qualquer efeito, prova de nacionalidade, apenas facultando ao portador dele invocar, quando necessário, a proteção consular ou diplomática, em qualquer lugar que não seja o território do outro Estado em causa.

Um entendimento nesse sentido, que é o mais largo e não compromete, de qualquer modo, o direito, igualmente respeitável, de qualquer dos Estados interessados, não resolveria, entretanto, o problema senão de um modo limitado e restrito e, no caso, cumpre assinalar, há dois problemas gerais que seria meritório resolver, também, de um modo geral; o problema dos passaportes, os problemas da dupla nacionalidade.

Para se ocupar do primeiro problema, reuniu-se em Paris, em outubro de 1920, sob os auspícios do Comitê Provisório de Comunicações e Trânsito da Sociedade das Nações, uma Conferência que não se ocupou do assunto senão sob um aspecto material e intrínseco. É certo que, desde 1921, a citada conferência de Comunicações e Trânsito se vem ocupando proficientemente destas questões sem, aliás, haver ainda, de meu conhecimento, tomado, a respeito de passaportes, resoluções definitivas; isso, aliás, hoje a nós não importaria, desde que o Brasil se desinteressou da obra comum de organização e regulamentação das relações internacionais do mundo civilizado.

O que teremos de fazer, pois, é procurar entrar em acordo, com as nações com que nos interessa fazê-lo, no sentido de estabelecer regras uniformes no que respeita: a) a concessão de passaportes; b) sua natureza e efeitos, e c) o visto consular.

De acordo com o meu modo de ver, a esse documento se deve dar o simples sentido de um erro documento de identificação pessoal. Dando-se ao passaporte o caráter de um documento comprobatório de nacionalidade, é claro que só por autoridades federais e só a nacionais pode ser concedido; e esse rigor pode levar a situações insolúveis, como é notório que tem surgido inúmeras vezes nos Estados Unidos.

Aí, como neste parecer já se fez ver, o passaporte é título de nacionalidade e dele consta o juramento de subordinação política. Não pode, pois, em caso algum, ser concedido a quem não seja nacional. Ora, depois da lei americana de 22 de setembro de 1922, a estrangeira que se case com americano não adquire, como antes, a nacionalidade americana, ao passo que, de acordo com muitas legislações europeias, perde, por esse fato, a própria nacionalidade. De tais circunstâncias decorre que, por exemplo, uma inglesa, casada nos Estados Unidos com um americano depois da vigência da lei de 1922, não pode obter passaporte. O governo americano não lhe pode dar porque ela deixou de ser inglesa. Ora, tal situação é intolerável e é mister que a ela de remédio a regulamentação que se pretende fazer.

Dado ao passaporte seu natural caráter de documento policial de identificação pessoal, nada obsta a que seja ele concedido, cumulativamente, a marido e mulher, muito embora não tenham eles a mesma nacionalidade, ou a mulher sem o marido, em atenção à nacionalidade do marido; ou, em qualquer caso, que seja concedido pelo consulado do país para onde se destinar o pretendente, desde que não possa obtê-lo de outra autoridade local.

A concessão de um passaporte é um mero incidente episódio, que se pode renovar muitas vezes; a nacionalidade é problema mais complexo e sua prova se faz, conforme as modalidades do caso, de acordo com a lei de cada país, por todos os meios legais. Para mim, seria perigoso, no momento atual, de penetração tão intensa dos povos, fazer do simples passaporte para viagem um documento rigoroso de nacionalidade.

O outro problema ainda correlato à consulta e cuja normalização tanto conviria promover de um modo geral, é o da dupla nacionalidade. Situação permanente de fato, embora constituída diretamente por efeito de leis, mas de países distintos, ela cria na vida política dos Estados uma evidente anormalidade. Consequência, em relação a certos países, como por exemplo, o nosso, de princípios constitucionais que seria difícil modificarem, parece-me evidente que, pelo menos, será possível reduzir os casos e limitar o tempo de duração de tal anormalidade, e, quando o caso não possa ter solução legal definitiva, estabelecer as normas comuns de um conveniente tratamento recíproco.

Para se compreender que as dificuldades não são insuperáveis, basta considerar que, se, em relação aos Estados, é possível admitir-se que, mais de um, por efeito de suas respectivas leis, tenha simultaneamente como seu nacional o mesmo indivíduo, não se pode absolutamente admitir que esse indivíduo se considere, ele mesmo, com duas nacionalidades, isto é, subordinado a duas soberanias.

Já CÍCERO proclamava duarum civilitatem civis esse nostro jure civili nemo potest, conceito que, por ocasião da redação do Código de Napoleão, Treilhard repetiu, exclamando: on ne peut pas avoir deux patries; frase que Proudhon completou, incisivamente, comme on ne peut pas avoir deux méres. É claro que indivíduos em tal situação, devem, necessariamente, num dado momento, ter tomado uma resolução a respeito, inclinando-se por uma ou por outra nacionalidade; e, pois, o que é preciso é estabelecer o meio de dar a essa resolução efetivamente ostensiva, que deva ser reconhecida por ambos os Estados interessados.

Foi devido a uma sugestão minha nesse sentido, em conversa com o Embaixador inglês Sir Page, quando tive a honra de passar pela Subsecretaria de Estado das Relações Exteriores, que esse Ministério foi provocado ás negociações que deram em resultado a Convenção de 22 de julho de 1922, já negociada, entretanto, depois de minha retirada.

Esses são, certamente, casos complexos, que exigem, para seu trato, madura ponderação e cuidado, e a cuja solução, a meu ver, preceder a revisão de nossas leis e regulamentos sobre nacionalidade, onde se encontram manifestas lacunas que devem ser supridas. Tais lacunas e o modo de supri-las, em minha opinião, vêm indicados na 3º edição, que acaba de aparecer, de meu livro elementar de Direito Público Constitucional (…).

Este é o parecer, Senhor Ministro, que, por motivo de acúmulo de trabalho neste Gabinete, não me foi possível enviar com a presteza que eu havia desejado e cujas conclusões tenho a honra de submeter ao critério superior de V. Exa. aproveitando a oportunidade para renovar a V. Exa. o protesto de minha alta estima e distinta consideração.

                                                                           Rodrigo Otávio”

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    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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