Tribuna da Defensoria

Compete ao defensor avaliar a necessidade da remessa dos autos

Autor

  • Caio Paiva

    é defensor público federal e chefe da Defensoria Pública da União em Campinas/SP. Especialista em Ciências Criminais. Professor de Processo Penal e Direitos Humanos do Curso CEI. Coeditor do Clube do Direito (www.clubedodireito.com). É autor dos livros Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro e Prática Penal para Defensoria Pública e coautor do livro Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos.

10 de novembro de 2015, 7h10

A primeira base normativa da prerrogativa da intimação pessoal foi a Lei 1060/50, que, alterada pela Lei 7871/89, passou a prever que “nos estados onde a assistência judiciária seja organizada e por eles mantida, o defensor público, ou quem exerça cargo equivalente, será intimado pessoalmente de todos os atos do processo (…)” (artigo 5°, parágrafo 5º)[1]. A redação original da LC 80/94, derrogando neste ponto a Lei 1060/50, previa como prerrogativa dos defensores públicos “receber intimação pessoal em qualquer processo e grau de jurisdição (…)”, tendo a LC 132/2009 alterado os artigos 44, I, 89, I, e 128, I, para acrescentar que, além da intimação pessoal, “quando necessário”, os autos também devem ser entregues à Defensoria Pública com vista. Pelo regime anterior, portanto, conforme explica Guilherme Freira de Melo Barros, “feita a intimação através de mandado, estava atendida a prerrogativa da intimação pessoal da Defensoria Pública, ainda que não tivessem sido encaminhados os autos do processo”[2].

A prerrogativa da intimação pessoal mediante entrega dos autos com vista possui pelo menos dois fundamentos. Vejamo-los.

O primeiro deles tem natureza estrutural ou sistêmica e consiste em viabilizar a prestação da assistência jurídica integral e gratuita diante do acúmulo de trabalho e da carência de estrutura e de recursos humanos da Defensoria Pública, o que não caracteriza algo temporário, fruto da ação deste ou daquele governo, mas um elemento estrutural ou sistêmico da instituição, cujos membros não escolhem os seus assistidos[3]. Daí, portanto, que a prerrogativa deverá ser mantida inclusive após uma “estruturação ideal” das Defensorias Públicas. Em sentido semelhante, contextualizando esse fundamento, já registrou o — então — ministro Francisco Rezek:

“Por derradeiro, observo que não se deveria atribuir um novo ônus à defensoria pública que, contrariamente ao advogado constituído, tem o múnus público. Não lhe é dado escolher tal ou qual causa. Imperioso é que atue em benefício do pobre. (…) Assim, sendo uma instituição essencial à função jurisdicional em um país que a cada dia vê crescer o número de necessitados, não me animo a patrocinar mais uma dificuldade à sua atuação. O que se impõe é bem o contrário: na medida do possível facilitar-lhe o ofício” (voto proferido na condição de relator do HC 70100, 2a Turma, julgado em 22/10/1993).

O segundo deles, de natureza orgânica ou institucional, diz respeito à responsabilidade processual diferenciada dos membros da Defensoria Pública na defesa dos direitos dos necessitados[4], o que impõe aos defensores públicos uma preocupação não sentida com o mesmo grau pela advocacia privada: a atuação deles projeta um serviço público colocado à disposição dos cidadãos necessitados, de modo que qualquer ineficiência poderá ser imputada ao Estado, inclusive gerando responsabilidade civil e prejuízo ao erário. Nesse sentido, o ministro Ricardo Lewandowski já ressaltou que “o defensor público age na qualidade de representante do Estado na proteção dos interesses do seu assistido, hipossuficiente, nos termos da lei. É por essa, entre outras razões, que, de certo modo, o defensor público possui um tratamento processual diferenciado, como por exemplo, o direito à intimação pessoal e prazo em dobro para cumprir os respectivos atos processuais” (HC 112573, relator ministro Ricardo Lewandowski, 2ª Turma, julgado em 27/11/2012).

O avanço trazido pela LC 132/2009, porém, teve o seu potencial reduzido com a inserção da expressão “quando necessário” na redação dos dispositivos que disciplinam a intimação pessoal, impondo um condicionamento para a remessa dos autos que não é encontrado na legislação institucional nacional do Ministério Público, cuja Lei 8625/93 estabelece como prerrogativa dos membros do MP “receber intimação pessoal em qualquer processo e grau de jurisdição, através da entrega dos autos com vista” (artigo 40, IV). Além da criação de uma diferença indevida e injustificada entre as carreiras da Defensoria Pública e do Ministério Público, a LC 132/2009 abre margem, nesse ponto, para a discricionariedade judicial, que pode ativar a insensibilidade e a incompreensão de juízes sobre a amplitude da prerrogativa em estudo. Melhor seria que a expressão “quando necessário” fosse retirada do texto da LC 80/94.

No entanto, a expressão existe e devemos interpretá-la. A meu ver, o condicionamento da remessa dos autos à Defensoria Pública a uma necessidade, em razão do seu potencial para criar situações de fragilização do direito de defesa, principalmente na área penal, com reflexos diretos para a condição processual do necessitado, viola não somente a Constituição Federal, mais especificamente o aspecto substancial do direito à igualdade (artigo 5°, caput), que abriga em seu conteúdo a paridade de armas[5], mas também a Convenção Americana de Direitos Humanos, que estabelece como garantia mínima de toda pessoa acusada de um delito a concessão “do tempo e dos meios necessários à preparação da sua defesa” (artigo 8. 2, c)[6]. Sobre a igualdade processual entre as partes, vejamos a lição de Nereu José Giacomolli:

“(…) Exige-se a manutenção de simetria entre ação e reação, imputação e defesa. A observância do mesmo grau de oportunidades às partes (informação, prova, recursos, v. g.) afasta o predomínio de um sujeito sobre outro. No processo penal, como regra, a acusação pública dispõe de um nível superior de possibilidades de atuação no processo, não só pela especialidade de seus agentes, mas também pela própria organização da estrutura oficial. É um dos deveres do terceiro imparcial manter a igualdade de oportunidades, tanto à acusação quanto à defesa, de modo que não haja supremacia a tal ponto de produzir uma desvantagem processual”[7].

No mesmo sentido, já se manifestou a Corte Interamericana de Direitos Humanos que, para existir o devido processo legal, é preciso:

“Que um jurisdicionado possa fazer valer os seus direitos e defender seus interesses, de forma efetiva e em condições de igualdade processual com outros jurisdicionados. Efetivamente, é útil relembrar que o processo é um meio para assegurar, na maior medida possível, a solução justa de uma controvérsia. (…) Para atingir seus objetivos, o processo deve reconhecer os fatores de desigualdade real daqueles que são levados perante a justiça. Assim é que se atende ao princípio da igualdade perante a lei e os tribunais e a correlata proibição de discriminação. A presença de condições de desigualdade real obriga a adotar medidas de compensação que contribuam para reduzir ou eliminar os obstáculos e deficiências que impeçam ou reduzam a defesa eficaz dos próprios interesses. Se não existissem esses meios de compensação, amplamente reconhecidos em diversas vertentes do procedimento, dificilmente poder-se-ia dizer que aqueles que se encontram em condições de desvantagem desfrutam de um verdadeiro acesso à justiça e beneficiam-se de um devido processo legal, em condições de igualdade com aqueles que não afrontam essas desvantagens”[8].

Além disso, podemos sustentar que uma interpretação sistemática da LC 80/94 conduziria a não aplicação dessa expressão (“quando necessário”), já que o artigo 4º, V, da mesma LC, igualmente alterado pela LC 132/2009, ao estabelecer as funções institucionais da Defensoria Pública, assentou a de “exercer, mediante o recebimento dos autos com vista, a ampla defesa e o contraditório em favor de pessoas naturais e jurídicas (…)”, sem impor o condicionamento da necessidade para ensejar o recebimento dos autos com vista.

E não é só. Para inibir e prevenir a violação da prerrogativa deve a Defensoria Pública, ainda, insistir que “quando necessário” significa quando o defensor público entender necessário a partir da sua compreensão sobre a defesa técnica do cidadão, e não o entendimento da outra parte, do Ministério Público ou do juiz, que desconhecerão as dificuldades enfrentadas pela Defensoria Pública[9].

Assim, conclui-se que ou a expressão “quando necessário” é inconstitucional, por violar o direito à igualdade na sua acepção da paridade de armas (art. 5º, caput, da CF), e inconvencional, por violar a garantia mínima da obtenção do tempo e dos meios necessários para a preparação da defesa (artigo 8, 2, c) da CADH, ou ela não deve ser aplicada a partir de uma interpretação sistemática da LC 80/94, notadamente pela leitura conjugada do artigo 4º, V, ou, finalmente, a sua aplicação deverá ocorrer a partir de uma interpretação conforme à Constituição, considerando que compete ao defensor público, e somente à ele, verificar se a remessa dos autos é ou não necessária.

Finalmente, o defensor público deve cuidar da sua prerrogativa com zelo e responsabilidade, concebendo-a como um instrumento que lhe é proporcionado para potencializar a defesa dos necessitados, e não como um privilégio de uso indiscriminado. Assim, estando diante de situações que não justificam a remessa dos autos, notadamente quando a demora possa ocasionar prejuízo para o seu assistido (como, por exemplo, uma intimação de sentença condenatória em plenário do Tribunal do Júri ou mesmo de uma sentença proferida em audiência no procedimento comum, da qual já pode — em regra — imediatamente recorrer, impondo-se a remessa dos autos tão somente para apresentar as razões; ou uma intimação em audiência para a sua continuação para data muito próxima etc.), deve o defensor público dispensar a observância da prerrogativa, sempre ressaltando que tal juízo cabe exclusivamente a ele.


[1] Note-se que a redação do artigo 5°, parágrafo 5°, da Lei 1060/50, acrescentado pela Lei 7871/89, parecia restringir o âmbito de incidência da prerrogativa da intimação pessoal apenas para os órgãos de assistência judiciária instalados nos estados, omitindo-se em relação à assistência judiciária prestada pela União. Afirma Frederico Rodrigues Viana de Lima que “a omissão, contudo, não foi intencional, tratando-se, na verdade, de mero descuido, não tão incomum no âmbito do processo legislativo. Se levado em consideração o intuito da criação destas prerrogativas, é certo que não poderia haver a redução do seu campo de abrangência, a fim de conferir o benefício apenas para os órgãos de nível estadual. As razões que nortearam o estabelecimento das prerrogativas contemplam tanto os Estados como a União, sobretudo porque o advento da Lei 1.060/50 teve por meta a estruturação da assistência judiciária prestada por estes entes públicos” (Defensoria Pública. 4ª ed. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 311). No mesmo sentido, cf. ESTEVES, Diogo; ALVES SILVA, Franklyn. Princípios Institucionais da Defensoria Pública. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 552. Embora possa, de fato, ter sido um mero descuido do legislador, importante observar, também, que em 1989 a assistência jurídica gratuita ainda não havia sido prestigiada pela União, tendo a DPU sido organizada somente em 1994, com a LC 80, e criada, em caráter emergencial, apenas em 1995, com a Lei 9020.
[2] MELO BARROS, Guilherme Freire de. Defensoria Pública: Comentários à LC nº 80/1994. 7ª Ed. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 127.
[3] Neste sentido, ver também LIMA, Frederico Rodrigues Viana de. Defensoria Pública, p. 325-326; BRAUNER JÚNIOR, Arcênio. Princípios Institucionais da Defensoria Pública da União. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 20154, p. 107); SOUZA, Fábio Luís Mariani. A Defensoria Pública e o Acesso à Justiça Penal. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2011, p. 164; ESTEVES, Diogo; ALVES SILVA, Franklyn Roger. Princípios Institucionais da Defensoria Pública, p. 548-549.
[4] O mesmo argumento é apresentado pela doutrina institucional do Ministério Público: “[A prerrogativa da intimação pessoal] Destina-se a permitir a melhor análise da causa e das circunstâncias processuais que motivam-se na diferenciada responsabilidade processual do Ministério Público, em defesa de interesses sociais e indisponíveis” (GAVRONSKI, Alexandre Amaral; MENDONÇA, Andrey Borges de. Manual do Procurador da República: Teoria e Prática. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 77).
[5] Também reconhecendo a paridade de armas como uma acepção do direito à igualdade no processo, afirmam Marinoni e Mitidiero que “vale dizer: a proteção jurídica estatal deve ser pensada em uma perspectiva social, permeada pela preocupação com a organização de um processo democrático a todos acessível. Fora desse quadro há flagrante ofensa à igualdade no processo (arts. 5°, inciso I, CRFB, e 125, inciso I, CPC) — à paridade de armas (Waffengleichheit) —, ferindo-se daí igualdade o direito fundamental ao processo justo (procedural due process of law, art. 5°, inciso LIV, CRFB)” (MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Comentário ao artigo 5°, inciso LXXIV. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 491). E assim também a lição de André Nicolitt: “As prerrogativas da intimação pessoal e do prazo em dobro deitam raízes no princípio da igualdade substancial (art. 5° da CRF/1988), tendo por objetivo compensar a Defensoria em razão do excessivo número de feitos sob sua responsabilidade, colocando-a em um patamar de igualdade de armas” (Manual de Processo Penal. 4ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013, p. 238). Sobre o tema “paridade armas”, recomendo a leitura do excelente livro Paridade de Armas no Processo Penal, de Renato Stanziola Vieira, publicado pela editora Gazeta Jurídica (2014).
[6] A garantia do prazo razoável e dos meios necessários para a elaboração da defesa também é assegurada pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 14.3, b) e pelo Estatuto de Roma (art. 6.3, b).
[7] GIACOMOLLI, Nereu José. O Devido Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2014, p. 123.
[8] Corte Interamericana de Direitos Humanos. Opinião Consultiva n.º 16/99 — O direito à informação sobre a assistência consular no âmbito das garantias do devido processo legal, §§ 118 e 119.
[9] Neste sentido, ver também BARROS, Guilherme Freire de Melo. Defensoria Pública: Comentários à Lei Complementar nº 80/1994, p. 127; ESTEVES, Diogo; e ALVES SILVA, Franklyn Roger. Princípios Institucionais da Defensoria Pública, p. 548-549. No mesmo sentido, a lição de Paulo Cesar Ribeiro Galliez: “(…) como se trata de prerrogativa inerente ao cargo de defensor público, que é o seu titular, cabe a si decidir sobre a conveniência ou não da entrega dos autos pelo cartório ou pela secretaria. Pode haver situações em que seja desnecessária a sua entrega mas, em nenhuma hipótese deve o Defensor Público permitir critério contrário a essa prerrogativa. A intenção do legislador foi, sem dúvida alguma, dar segurança ao cumprimento dos prazos processuais, considerando o volume expressivo dos prazos processuais, considerando o volume expressivo de processos envolvendo as atividades dos defensores públicos, sobretudo quando ocorrem substituições em razão do afastamento do colega do órgão de atuação. De qualquer sorte, na dúvida, o processo deverá ser enviado ao Defensor Público, já que ele é o titular da prerrogativa” (GALLIEZ, Paulo César Ribeiro. Princípios Institucionais da Defensoria Pública. 5ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 44).

Autores

  • é defensor público federal, especialista em ciências criminais e professor do curso CEI. É autor do livro "Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro" (2015) e coautor de "Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos".

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