Opinião

Revolucionar o federalismo é decisivo para o desenvolvimento do país

Autores

  • Marco Aurélio Marrafon

    é advogado professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com estudos doutorais na Università degli Studi Roma Tre (Itália). É membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

  • Daniel Vargas

    é professor da FGV Direito Rio doutor e mestre em Direito pela Harvard Law School.

6 de novembro de 2015, 5h17

O Brasil já não cabe dentro da sua federação. O federalismo que copiamos dos norte-americanos e delineamos na Constituição de 1988 é formado por um conjunto de ideias gerais e regras padronizadas que nos impede de avançar.

Por um lado, o federalismo limita a formação de excelências variadas em cada ente e região do país. Por outro, a generosidade que caracteriza nosso povo nunca conseguiu nutrir e informar a relação entre os entes federados; em vez de cuidarmos uns dos outros, cada unidade da federação cuida de si mesma.

Resquícios do paradigma estadualista e do seu oposto, o paradigma centralista, na cultura política brasileira têm impedido o avanço da cooperação. Mesmo após 1988, o amplo rol de competências comuns (art. 23 CF/88) não foi suficiente para evitar que o governo central exercesse forte competência regulatória nas políticas públicas, inibindo o avanço e o amadurecimento do planejamento institucional dos entes subnacionais.

Assim, se de um lado a nossa história indica que a descentralização favoreceu as elites regionais e não cumpriu seu papel de fortalecimento democrático; de outro, é nítido que os movimentos centralizadores do pêndulo federativo levaram ao chamado “desenvolvimento pelo alto”, paternalista, com foco no consumo e gerando perdas consideráveis na formação de uma cultura de participação política, além de limitar a formação de vocações e caminhos variados de desenvolvimento.

É chegada a hora de substituir a estratégia uniforme de inclusão superficial pelo consumo, por meio de políticas nacionais e centralizadas do lado da demanda, por uma nova estratégia de crescimento assentada no empoderamento dos cidadãos, na formulação e concretização de estratégias descentralizadas e regionais de empreendedorismo e no fomento de participação do lado da oferta. Enquanto a democratização do consumo se pode fazer apenas com redistribuição de renda (estimulando políticas compensatórias), a democratização da oferta requer mudanças institucionais na forma de organização da economia, da política e da sociedade.

O ponto de partida decisivo deste novo horizonte de desenvolvimento do país é a reorientação do federalismo no Brasil. Vivemos a antevéspera de uma revolução federativa. Em todos os cantos de nosso território movimentações intelectuais e políticas reclamam a alteração das regras que disciplinam o contato entre os entes federados. A mais marcante inovação é a criação do chamado Brasil Central, movimento que envolve governadores de Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Distrito Federal, Tocantins e Rondônia e que deve resultar na criação de autarquia interfederativa que ajudará a liderar o projeto de desenvolvimento regional.

O texto a seguir possui três objetivos. O primeiro e principal é examinar os limites fundamentais do regime federativo brasileiro: o paradoxo da incapacidade, que aflige as regiões mais carentes; o paradoxo da capacidade, que trava as regiões mais afluentes; e o drama do isolacionismo, que irriga todo o Brasil com um misto de egoísmo e ignorância. O segundo objetivo é sugerir, a partir da solução de cada um destes desafios, novas diretrizes para o federalismo no país. O objetivo de fundo é provocar a construção de um novo regime que tenha maior capacidade de abrigar e desenvolver as potencialidades do povo brasileiro.

Paradoxo da incapacidade
O primeiro defeito profundo do federalismo brasileiro pode ser definido como o paradoxo da incapacidade: quem mais precisa é também quem menos pode. Quando identificamos as localidades do Brasil com maiores dificuldades na prestação dos serviços públicos de qualidade, observamos também que são estas mesmas localidades as mais carentes em capacidade institucional para enfrentar e resolver seus problemas.

O efeito deste descompasso radical entre “necessidade” e “capacidade” é de preservar ou ampliar a desigualdade dentro da federação. Como na estrutura atual cada ente federado se limita a “cuidar do seu”, ninguém se preocupa com o problema que afeta os demais.  Ao longo do tempo, estados mais preparados avançam em sua capacidade de prestar serviços gradualmente mais qualificados, ao mesmo tempo em que quem mais precisa tende a manter-se estanque na rabeira da federação.

No limite, se uma criança brasileira nasceu em um município pobre no interior do Norte, onde falta saúde e educação com qualidades mínimas, o restante do Brasil “lava suas mãos”. A verdade dura e não dita os estados mais desenvolvidos têm pouca ou nenhuma preocupação com o drama dos municípios mais sofridos do Brasil.

Paradoxo da capacidade
O segundo defeito do federalismo brasileiro caminha no sentido inverso do anterior e pode ser definido como o “paradoxo da capacidade”: quem pode mais é justamente quem é mais tolhido. Quem mais sente os efeitos restritivos impostos pelas regras gerais de organização e controle dos serviços públicos na federação são justamente as regiões que conseguiram conquistar os melhores rendimentos.

O prêmio que o federalismo brasileiro concede ao município ou estado que, apesar dos pesares, consegue se superar e ir além da média nacional é uma camisa de forças. Sob o pretexto de garantir a igualdade de tratamento a todos os entes federados, impomos, de cima para baixo, um teto baixo aos mais capazes. A cidade de Sobral, no semiárido do Ceará, por exemplo, chama atenção por ter atingido o maior índice de qualidade da educação fundamental no Brasil. Dentro das regras que disciplinam o ensino, a escola e a rede municipal, Sobral já não tem muita margem de avanço.

Por que não “libertar” as escolas, parte delas ou toda a rede de Sobral para flexibilizar as condições de prestação do serviço de educação – inovações curriculares, alocação flexível de recursos e critérios diferençados de gestão? Sob o pretexto de tratar com igualdade as unidades da federação, algemamos Sobral para que não se desgrude da média medíocre do restante do país. Somos incapazes de perceber como as lições de excelência de quem mais consegue subir na escala de qualidade podem servir de exemplo e lição para o restante da federação.

Drama do isolacionismo
O terceiro desafio do federalismo brasileiro é o drama do isolacionismo: há pouco ou nenhum compartilhamento de experiências entre os entes federados no Brasil. O federalismo brasileiro, no máximo, comunica estatísticas e recursos da União para os estados e municípios. Mas somos radicalmente incapazes de comunicar quadros e experiências entre setores e regiões do país.

Como Goiás atua para avançar suas políticas, por exemplo, é, em geral, indiferente para a atuação dos servidores do Maranhão ou do Paraná. Quem lidera as políticas de segurança em Tocantins não tem, como regra, qualquer contato com lideranças de Alagoas. Como cada unidade da federação é fechada em si mesma, limitamos radicalmente as possibilidades de aprendermos uns com os outros.

Compartilhar experiências bem-sucedidas no país requer a organização de mecanismos de colaboração horizontal dentro da federação – entre municípios, entre estados e entre regiões do Brasil. Em especial, é importante organizar a comunicação de quadros entre os entes federados.

A razão é que não se aprende a gerir uma escola, uma rede hospitalar ou um sistema de segurança pública estadual apenas observando dados estatísticos comparados, consultando um bom exemplo na internet ou visitando uma cidade bem-sucedida em um fim de semana. A maneira mais rápida de se aprender a fazer algo, em qualquer área, é “fazendo”, em especial “fazendo junto”.

Veja o exemplo do desenvolvimento industrial da China. Boa parte da grande indústria chinesa é resultado de joint ventures entre empresas públicas chinesas e multinacionais para desenvolverem juntas, em território chinês, produtos de ponta. O efeito do trabalho integrado entre quem sabe e quem não sabe, ao longo do tempo, foi a formação de uma geração de empreendedores e engenheiros e a estruturação de novas cadeias de produção que permitiram o spin off de novos empreendimentos de ponta no país.

De forma similar, a colaboração que mais importa no federalismo brasileiro é a disseminação do “saber fazer”. Quem sabe deve colaborar com quem não sabe. Isso só será possível superando o drama do isolacionismo que impera no Brasil, promovendo, em seu lugar, a colaboração horizontal entre organizações e entes federados.

Raiz do problema
Quando combinamos os três problemas profundos do federalismo brasileiro, o que obtemos é o seguinte cenário: em cima, o federalismo brasileiro declara guerra aos mais capazes; embaixo, ele abandona os mais necessitados à própria sorte. E no meio da federação, ele celebra o isolamento dos municípios e estados uns dos outros, ensimesmados em suas próprias limitações.

Duas razões de fundo explicam estes três problemas do nosso federalismo.

A primeira é a concepção formalista do federalismo e do direito brasileiro. As ideias e regras que disciplinam a relação entre os entes federados no Brasil, importadas sem pudor dos gringos americanos, distribuem as competências legislativas e executivas no país segundo critérios iguais na superfície, porém radicalmente diferentes na dinâmica real. As circunstâncias geográficas, socioeconômicas e políticas de cada região do país influenciam profundamente as possibilidades de ação de cada ente federado. Porém, estão fora da organização do jogo federativo.

O alto grau de burocracia e as exigências legais para contratar são as mesmas em pequenos e grandes municípios e estados. Parece não importar que Borá-SP possui apenas 805 habitantes (Censo 2010) enquanto que a  cidade de São Paulo já está na casa dos 12 milhões de habitantes.

A segunda razão é a cegueira do federalismo para a dinâmica de “capacitação institucional”. A liberdade que importa no país não é a que está prevista em abstrato na Constituição e dividida em prestações iguais entres os entes federados, mas a liberdade real, que só pode ser compreendida no chão de cada realidade brasileira e que avança ou reduz com a experiência. Mais importante que saber se, em tese, Espírito Santo e Alagoas possuem as mesmas autorizações para lidar com sua educação, saúde, segurança e desenvolvimento econômico é saber como estão, de fato, avançando em cada caso.

Este federalismo formal, simétrico, estático, medíocre, injusto e ensimesmado não serve. É menor que o Brasil, menor que nosso povo e que nossas possibilidades regionais.

Novo federalismo
O novo federalismo brasileiro deveria ser informado por quatro orientações centrais.

Primeiro: quem mais avança deve receber mais liberdade. A resposta da federação ao sucesso de ente federado na prestação de um serviço público deve ser a flexibilização gradual do regime geral. No limite, localidades com desempenho de excelência conquistariam a liberdade de inventar seus próprios critérios de gestão. Para voltar ao exemplo da educação de Sobral, o alto rendimento escolar da cidade deveria autorizar o relaxamento dos critérios de gestão, financiamento e organização curricular. A cidade se tornaria a vanguarda nacional, que desbravaria novos continentes educacionais.

Segundo: quem menos pode deve ser resgatado. Em uma república federativa o direito de cada cidadão é dever de toda a federação. Se uma cidade pobre no interior do país não possui condições mínimas de prestar um serviço de qualidade, a federação reunida deve ir ao alcance deste ente federado, resgatá-lo e devolvê-lo em melhores condições. Há várias formas de se organizar o resgate institucional. Uma maneira é organizar um quadro de servidores selecionados dos três níveis da federação, eventualmente com apoio da sociedade civil, para integrar força-tarefa com poderes amplos para corrigir o que não funciona, em um determinado prazo de tempo.

Terceiro: o aparato burocrático, o regime jurídico de direito público e a própria organização política devem atentar para as diferenças locais e regionais, de acordo com o grau de presença e amadurecimento institucional, da complexidade das demandas e do quantum populacional, de modo a tornar mais flexíveis as exigências legais que regulam (e limitam) a ação coletiva, ao tempo em que permite maior abertura e fiscalização democrática.

Quarto: as unidades da federação devem cooperar intensamente. A organização de canais orgânicos de compartilhamento de quadros e de experiências é decisiva para antecipar os erros e acelerar os avanços em cada parte do país. Todos ganharemos se compartilharmos e ensinarmos, uns aos outros, o que deu certo e o que não deu certo. Há inúmeras maneiras de começar a colocar em prática este ideal em cada setor. Em educação, por exemplo, cada região do país poderia criar centros regionais de formação de professores e diretores escolares, que também seriam responsáveis por mapear e transferir melhores práticas na região.

A combinação dessas quatro diretrizes construirá um federalismo muito distinto do atual. Promoverá o surgimento de excelências alternativas – em setores, localidades e regiões distintas. Fomentará a difusão de ideais e práticas dentro da federação, colocando a inteligência colaborativa no lugar de um ensimesmamento ignorante. Será muito mais republicano, como o federalismo precisa ser, e estenderá as mãos a quem mais precisa.

Manter a unidade, respeitar as diferenças e promover a liberdade para que se diminuam as desigualdades. Eis a ideia central. Todos seremos mais livres com o avanço de cada um em ritmos e direções diferentes.

Autores

  • Brave

    é presidente da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst), professor de Direito e Pensamento Político na UERJ. Membro da Comissão de Especialistas do Senado Federal instituída para debater e propor o novo pacto federativo (2012).

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    é professor de Direito da FGV Direito Rio. Doutor e Mestre em Direito pela Harvard Law School.

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