Documento adulterado

Advogado que fraudou processo eletrônico é condenado por estelionato judiciário

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4 de novembro de 2015, 7h34

Ajuizar ações por meio de fraude no processo eletrônico, induzindo a Justiça a erro, é estelionato judiciário, conforme o artigo 171, parágrafo 3º, do Código Penal. O entendimento levou a 4ª Seção do Tribunal Regional Federal da 4ª Região a negar provimento a embargos infringentes apresentados por um advogado catarinense. Ele queria a prevalência do voto minoritário que considerava atípica a figura do estelionato judiciário — o que reduziria substancialmente a sua pena —, após ter a condenação, por maioria, mantida no julgamento de apelação.

O advogado foi denunciado pelo Ministério Público Federal por produzir, adulterar e apresentar ao Juizado Federal Cível de Florianópolis, a fim de fixar sua competência, 13 documentos destinados a comprovar o endereço de clientes, além de tentar obter valores devidos a ex-militares, por parte da União, por meio de ações lastreadas em procurações falsas. A maioria das ações, ajuizadas entre junho e outubro de 2006, pleiteava a devolução em dobro de descontos irregulares promovidos pelo Fundo de Saúde do Exército (Fusex). Todos os documentos fraudados — incluindo os comprovantes de endereços adulterados — foram escaneados e inseridos no e-proc, o sistema de processo eletrônico da Justiça Federal da 4ª Região.

No primeiro grau, a 7ª Vara Federal de Florianópolis não acolheu a desculpa de que as falsificações teriam partido de terceiro, que propôs ‘‘parceria’’ com o réu e depois sumiu sem deixar rastro, nem o argumento de que não houve apropriação de valores de clientes, já que a denúncia se apoia em estelionato na sua forma tentada. E muito menos a tese de que os ‘‘supostos documentos falsos’’ — utilizados para alimentar o e-proc — não se prestariam à comprovação da materialidade delitiva. Afinal, o documento eletrônico tem os mesmos atributos do documento tradicional — autenticidade, integridade e tempestividade. Logo, goza de fé pública.

O fato de os documentos originais não terem sido encontrados durante as investigações, segundo o juiz federal substituto Rafael Selau Carmona, não retira do advogado a obrigação de preservá-los até o final do prazo para interposição de ação rescisória, como dispõe o artigo 365, parágrafo 1º, do atual Código de Processo Civil. Além disso, o artigo 5º da Resolução 13/2004 do TRF-4 — que regula o processo eletrônico nos Juizados Especiais Federais — diz que, até o trânsito em julgado, os originais devem ser guardados, para serem apresentados, caso requisitados, pelo juízo. ‘‘Portanto, verifica-se, inicialmente, que o acusado infringiu a determinação legal. Ao ser questionado sobre isso, o réu simplesmente afirmou que não sabia que deveria guardar os referidos documentos’’, complementou o juiz.

‘‘A culpabilidade do réu, no sentido da reprovabilidade de sua conduta, é extremada em grau máximo, haja vista que é advogado, de modo que lhe é, ainda mais, exigida conduta diversa, sobretudo quando, de modo reprovável, utiliza de sua condição de advogado para a prática de crimes no exercício da profissão’’, ponderou o julgador.

O réu acabou incluído nas sanções previstas no artigo 171, parágrafo  3º, combinado com os artigos 14, inciso II, e 71, por 10 vezes; e no artigo 298, pela prática do crime previsto no artigo 304, combinado com o  artigo 71, por três vezes, todos do Código Penal. Ou seja: estelionato cometido em detrimento de entidade assistencial na forma tentada e de maneira continuada; e falsificação de documento particular com o emprego de papéis falsificados ou alterados (comprovantes ‘‘frios’’ de endereços), de maneira continuada. As penas: quatro anos, cinco meses e 20 dias de prisão no regime semiaberto e pagamento de multas.

Duas teses em confronto
No julgamento da apelação pela 8ª Turma da corte, o desembargador relator Victor Luiz dos Santos Laus afirmou que todos os fatos arrolados na denúncia do MPF enquadram-se apenas no delito de uso de documento falso. Manteve, portanto, sua condenação nessa imputação, por 13 vezes. A seu ver, o ‘‘estelionato judiciário’’ ainda enfrenta ‘‘dissenso doutrinário’’ e não está pacificado na jurisprudência. Logo, a conduta é atípica pelos seguintes motivos: ‘‘inidoneidade presuntiva’’ do julgador para ser enganado, impossibilidade de se considerar a sentença judicial como uma ‘‘vantagem ilícita’’ e existência de tipos penais específicos para a proteção da administração da Justiça.

‘‘Assim, cuidando-se de infração penal inserida no capítulo dos delitos patrimoniais e de natureza material, o prejuízo viria do uso da sentença/decisão judicial. Contudo, tenho que esta não pode ser entendida como vantagem ilícita, porquanto decorrente do exercício constitucional do direito de ação. Deve-se ainda ter em conta que as alegações das partes estão sujeitas ao contraditório, o que indica que o dolo em iludir direciona-se à parte contrária, e não ao julgador’’, explicou no voto. Por derradeiro, afirmou que não cabe ao julgador interpretar extensivamente em desfavor do réu, criando ação delituosa não prevista em lei.

Laus, no entanto, não foi acompanhado pelos colegas. Prevaleceu o entendimento do desembargador João Pedro Gebran Neto, que confirmou os termos da sentença, inclusive a dosimetria. No voto-revisão, Gebran destacou que, para a caracterização de estelionato (artigo 171 do Código Penal), é essencial o emprego de algum artifício ou meio fraudulento; o induzimento em erro da vítima; a obtenção da vantagem ilícita pelo agente; e o prejuízo de terceiros. E mais: é indispensável que haja o duplo resultado (vantagem ilícita e prejuízo alheio), decorrente da fraude e o erro que esta provocou.

A questão, aliás, já foi objeto de apreciação na turma, quando Gebran, acompanhando o colega Leandro Paulsen, assim se manifestou no acórdão 5000858-94.2011.404.7118, lavrado na sessão do dia 19 de dezembro de 2014 : ‘‘O artigo 171 do CP constitui tipo aberto, de forma que a obtenção da vantagem pode ser efetuada por qualquer meio fraudulento. Assim, a ação judicial movida fraudulentamente pode configurar o delito em questão, qualificado pela jurisprudência como estelionato judiciário’’.

A discussão foi pacificada na 4ª Seção do TRF-4, que reúne os desembargadores da 7ª e 8ª turmas, especializadas em matéria penal, que refutou a tese de atipicidade para o crime de estelionato como narrado nos autos. O relator dos embargos infringentes, juiz convocado Marcelo Malucelli, disse que a conduta de quem usa de ardil para manter o Poder Judiciário em erro é grave e merece a atenção do Direito Penal, pois lesa a dignidade da função jurisdicional do Estado.

‘‘O exercício da profissão de advogado pelo réu justifica a valoração negativa da vetorial culpabilidade, demonstrando elevada intensidade do dolo, pois agiu por meio de prerrogativa inerente à profissão, consistente na capacidade postulatória, para perpetrar crimes’’, criticou.

Clique aqui para a Resolução 13/2004 do TRF-4.
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