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Processo socioeducativo administrado pela Fundação Casa é, no mínimo, desastrado

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2 de novembro de 2015, 7h00

No início do ano, neste importante espaço, revelamos algumas das múltiplas mazelas do processo socioeducativo administrado pela Fundação Casa[1]. Apontamos, entre outros aspectos, que os serviços prestados pelo Estado de São Paulo, por meio da fundação especificamente destinada a este fim, há muito estão conspurcados por superlotação das unidades, insalubridade das instalações habitacionais e das condições de trabalho dos funcionários, escassez de servidores, rebeliões e tumultos, torturas, elevados índices de reincidência, inexistência de vagas em locais próximos da residência familiar, unidades sob influência de organizações criminosas, e ausência de formação e supervisão adequadas que viabilizem capacitação e aperfeiçoamento dos servidores da entidade.

A repercussão do texto ensejou até mesmo uma resposta do órgão. Argumentou-se, na tentativa de desacreditar aquilo apontado e até mesmo, eventualmente, do articulista que os fatos descritos refletiam impressões pessoais, e que os relatórios decorrentes das visitas realizadas a cada dois meses pelos promotores de São Paulo — inclusive pelo responsável pelo artigo em questão — constatam de maneira inequívoca que os jovens, em síntese, têm acesso a um processo socioeducativo adequado e eficiente.

A impessoalidade e isenção das supostas impressões foi logo comprovada. Em artigo publicado em fevereiro deste ano[2], onze Promotores de Justiça especializados na área da infância e juventude prognosticaram a falência da Fundação Casa, expuseram as mesmas máculas do serviço socioeducativo e demonstraram que as políticas públicas relacionadas aos adolescentes infratores não apresentaram, ao menos no Estado de São Paulo, resultados minimamente satisfatórios.

Os gravames e desastres mencionados no artigo original também foram ratificados por estudo estatístico inédito realizado pelo Ministério Público[3]. Demonstrou-se, para além de qualquer dúvida, que o índice de reincidência, dentre aqueles que cumprem ou cumpriram medida socioeducativa de internação, é superior a 55% (sem computar aqueles que, posteriormente, ingressam no sistema penitenciário); que 61,7% dos atos infracionais são praticados com violência ou grave ameaça à pessoa (sendo que 52,7% do total é equivalente a crime de roubo majorado); que mais de 90% dos internados definitivamente lá estão em razão da prática de atos infracionais graves (roubo, roubo majorado, latrocínio, homicídio doloso qualificado, estupro, e tráfico de drogas); que o número de internações é de 40,9% (muito aquém daquilo que poderia ser aplicado); que 67,5% dos adolescentes internados na Fundação Casa ali permanecem menos de nove meses, e apenas 13,3% mais de um ano; e que das 2.111 internações monitoras pelo estudo, apenas uma perdurou o prazo máximo de três anos; entre outros inúmeros aspectos.

Também demonstramos, nesta mesma coluna, que no estado de São Paulo, o excesso de internações é um mito inverídico[4]; e discorremos sobre o princípio da brevidade da medida de internação[5].

Passados quase onze meses, os graves fatos testemunhados por toda a população paulista afastaram vez por todas eventuais dúvidas sobre a qualidade dos serviços socioeducativos oferecidos. Isto porque, apenas em 2015 e até o momento foram registradas quase 530 fugas de unidades de internação da Fundação Casa. O montante corresponde a mais de 5% dos adolescentes e jovens submetidos à mencionada medida. Em 2012 ocorreram 417 fugas; em 2013 foram anotadas 454; e em 2014 outras 382 fugas[6].

A título meramente elucidativo da tragédia representada por estes números, no complexo penitenciário de Ribeirão das Neves (MG), instalado em janeiro de 2013 e que abriga aproximadamente 3.040 pessoas, há notícia, nestes quase três anos de funcionamento, de apenas três fugas a primeira ocorreu apenas quase um ano após sua inauguração[7]. O gasto mensal com cada preso é de aproximadamente R$ 2,8 mil. No mesmo período, a Fundação Casa, que atualmente acolhe menos de 10 mil adolescentes e conta com investimento médio aproximado de R$ 11,3 mil ao mês por internado, registra 1.366 fugas.

E não se argumente, com isso, que menores de 18 anos devem ser submetidos a regime equivalente ao dispensado aos penalmente imputáveis — ao contrário, devem contar com processo socioeducativo qualificado e que respeite seus direitos, sobretudo sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Mas, certamente, da perspectiva disciplinar, manter encarcerados milhares de adultos condenados pela prática de crimes é tarefa mais árdua do que custodiar adolescentes.

Não bastasse, os episódios de fugas não vêm isolados. Ordinariamente são acompanhados de rebeliões, tumultos e agressões. Como nem sempre estes eventos resultam em evasões, forçoso concluir que o número destes incidentes é ainda superior ao de escapadas.

Fica claro, consideradas todas estas circunstâncias, que as fugas e rebeliões não são a origem do problema, mas a consequência das graves violações de direitos humanos anteriormente reveladas. Como salientado no artigo original, reafirmado por 11 promotores de Justiça, e confirmado pelo idealizador e criador do Estatuto da Criança e do Adolescente, o processo socioeducativo administrado pela Fundação Casa é, no mínimo, desastrado[8].

Trata-se de uma tragédia, previsível, prevista e anunciada pelo Ministério Público desde a ação civil pública proposta em agosto de 2014[9], e que almeja resolver o problema da superlotação, das unidades de internação e semiliberdade em desacordo com a lei, e as infrações a direitos fundamentais rotineiramente identificadas dos adolescentes, seus familiares, servidores da fundação estatal e de toda a sociedade.

As soluções, como há muito apontado, exigem a reavaliação das políticas públicas relacionadas aos jovens e adolescentes em conflito com a lei, e a consequente gestão da Fundação Casa, braço do estado de São Paulo responsável pelos autores dos mais graves atos infracionais. Dentre as medidas a serem adotadas será preciso terminar, vez por todas, com o problema da superlotação, e garantir um processo socioeducativo satisfatório pelo tempo necessário à reeducação dos adolescentes, que apresente à sociedade resultados eficientes e proporcionais ao expressivo investimento feito pelos cofres públicos, com estrito respeito aos direitos destes jovens e à legislação vigente.

 


[9] Autos número 1073999-72.2014.8.26.0100, em curso na Vara da Infância e da Juventude do Foro Central da Capital.

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