Processo Familiar

Transformações sociais e econômicas
colocam monogamia em xeque

Autor

  • Rodrigo da Cunha Pereira

    é advogado presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) doutor (UFPR) e mestre (UFMG) em Direito Civil e autor de vários artigos e livros em Direito de Família e psicanálise.

1 de novembro de 2015, 7h00

A legislação brasileira tal como está, e ao contrário do que muitos pensam, é incentivadora de relações familiares simultâneas. Sim, pois se não há responsabilidade e responsabilização em dividir patrimônio ou pagar pensão alimentícia, ou previdenciária, para quem estabeleceu uma família paralela, estamos incentivando e premiando quem escolhe ter mais de uma família ao mesmo tempo. Por isto o Estatuto das Famílias, PLS 470/2013 elaborado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e apresentado ao Senado pela senadora Lídice da Mata (PSB-BA), em seu artigo 14, parágrafo único, propõe responsabilizar quem fez esta escolha na vida: “A pessoa casada, ou que viva em união estável, e que constitua relacionamento familiar paralelo com outra pessoa, é responsável pelos mesmos deveres referidos neste artigo, e, se for o caso, por danos materiais e morais”. As relações paralelas ao casamento têm sido tratadas pelo Código Civil (artigo 1.727) como concubinato, e discutidas no campo do direito obrigacional, como se não fossem famílias.

Todo o Direito de Família está estruturado e organizado em torno do princípio da monogamia, que funciona como um ponto chave das conexões morais.  A monogamia é uma importante questão filosófica e precisa ser melhor pensada no século XXI. Ela envolve muitos outros valores como, paixão, amor, ciúme, traição, fidelidade, família, assassinato, violência, castigo, dinheiro etc., que fazem parte do nosso dia a dia, e compõem as relações afetivas e também jurídicas. Não pode ser vista como uma regra moralista e insere-se em nossa cultura, inclusive jurídica, como um valor que parece estar em mutação.

A infidelidade, por si só, não significa a quebra da monogamia, e nem sempre a quebra da monogamia traz consigo a infidelidade. Embora o adultério não seja mais um tipo penal desde a Lei 11.106/2015, a infidelidade não perdeu sua importância. Apenas deixou de ser uma questão de Estado, sepultada pela Emenda Constitucional 66/2010, já que não se discute mais culpa pelo fim do casamento. Quando se estabelece uma relação duradoura, constituindo uma família simultânea à outra, não há que se falar em culpa, mas em responsabilidade. Se essa relação é eventual, e se o outro for apenas amante, não decorre daí direitos. Amante não tem direito a nada, a não ser aos prazeres que dá e recebe. Há quem diga que amantes têm até uma função social de manutenção dos casamentos.

A infidelidade existe desde que o mundo é mundo e continuará existindo enquanto houver desejo sobre a face da terra. O seu poder destruidor tem sido objeto de preocupação desde sempre, e de clássicos da literatura como Anna Karenina, de Leon Tolstói; Madame Bovary, de Gustave Flaubert; o primo Basílio, de Eça de Queiroz; Capitu, de Machado de Assis e tantos outros. No fundo, vincula-se muito mais à deslealdade do que propriamente a uma traição sexual. Muitos casais toleram mais facilmente infidelidades sexuais do que financeiras, que se caracterizam pelo desvio ou ocultação de bens que seriam do casal: “vá o corpo, mas fiquem os anéis”.

Monogamia e infidelidade andam juntas e são dois lados da mesma moeda, como dizia Engels: a infidelidade é o complemento necessário da monogamia. Se alguém estabelece uma relação afetiva paralela ao seu casamento ou à sua união estável, constituindo ali um outro núcleo familiar, é óbvio que está deixando de ser monogâmico. Mas isto não significa que ali não tenha uma família simultânea. Se continuarmos ignorando essas famílias brasileiras que se constituem simultaneamente, repetiremos a injustiça histórica de condenação à ilegitimidade e invisibilidade jurídica e social, como se fez com os filhos havidos fora do casamento até a Constituição da República de 1988. Se o Direito deve proteger muito mais a essência do que a formalidade que o cerca, não podemos ser hipócritas e fazer de conta que essas famílias não existem: elas são milhares e todos conhecem alguma que tenha se constituído assim, em um percurso do desejo que foi se constituindo , inclusive em suas contradições ou escolhas conscientes ou inconscientes.

Tem gente que gosta de se relacionar afetiva e sexualmente com mais de uma pessoa ao mesmo tempo e/ou simultaneamente. Sinceramente, não entendo, mas devemos respeitar. Isto deveria ser tratado tão somente como uma questão de estado da pessoa e não como uma questão de Estado. Intimidade e privacidade são valores e princípios fundamentais de um Estado laico e democrático.

A equação que o mundo jurídico precisa fazer para estar mais próximo do ideal de Justiça, e não desrespeitar o direito alheio, é ponderar a monogamia com o princípio da dignidade, responsabilidade, afetividade e solidariedade. É óbvio que se deve respeitar também a parte que já era casada ou vivia em união estável. Afinal, se ela não escolheu ter outra família não pode pagar por isso. E assim, os direitos patrimoniais para a família simultânea, na maioria dos casos, ao invés de dividir em três partes, com a família paralela partilha-se apenas a parte de quem escolheu ter outra família simultânea, ou seja, de seus 50%. Esta seria uma boa forma de responsabilizar o sujeito pelas suas escolhas, sem cair em regras morais estigmatizantes e muitas vezes excludentes de direitos.

O sistema monogâmico surgiu por razões econômicas, e com uma divisão sexual do trabalho que atribuiu ao homem uma preponderância. Este sistema só se sustentou até hoje porque suas regras de fidelidade eram válidas para a parte economicamente mais fraca. A partir do momento em que não houver mais diferenças econômicas entre os gêneros, e na medida em que as leis vão proclamando a igualdade, certamente as regras de fidelidade e monogamia sofrerão modificações.

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