Direito Civil Atual

As cláusulas de raio nos contratos de shopping centers e o CDC

Autores

  • Larissa Maria de Moraes Leal

    é advogada professora de Direito Civil e de Direito do Consumidor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e doutora em Direito Privado pela mesma instituição. Foi leiloeira pública oficial.

  • Venceslau Tavares Costa Filho

    é advogado doutor em Direito pela UFPE professor de direito civil da UPE Vice-Presidente da Associação de Direito de Família e Sucessores – Seção Pernambuco (ADFAS-PE) e Diretor da Escola Superior de Advocacia da OAB-PE.

30 de março de 2015, 13h09

Em nossa primeira participação na coluna Direito Civil Atual, coordenada pela Rede de Direito Civil Contemporâneo, vamos tratar do interessante problema da submissão das cláusulas de raio nos shopping centers às normas de proteção dos consumidores. Com a expansão do modelo de negócio dos shopping centers em todo o país, inclusive em municípios do interior, têm surgido demandas nas quais se discute a validade das cláusulas que impedem a criação de um mesmo estabelecimento em dois shoppings geograficamente próximos.  É sobre esse tema de que se ocuparão a coluna desta semana e a da próxima.

Os contratos de shopping centers, com as suas cláusulas específicas, sobremaneira a cláusula de raio, que tem por fim restringir a concorrência de oferta de bens e serviços em seu entorno, atentam contra os interesses e direitos dos consumidores?  A partir dessa indagação, incursionamos na investigação do regime de contratação dos centros de compras e seus efeitos lançados na sociedade de consumo, o que resultou nas considerações que seguem, divididas em duas partes.

Na chamada Sociedade dos Consumidores, os shopping centers têm marcado o seu surgimento na década de 50, do século XX. Esse empreendimento teve expansão rápida no Ocidente em razão de sua dupla finalidade: proporcionar aos empresários uma eficiente tecnologia organizacional — facilitando a reunião de insumos das atividades comerciais e aglutinando a clientela — e oferecer aos consumidores um espaço de convivência apresentado como seguro, confortável, de fácil acesso e com considerável número de lojas.

 Os shopping centers são propostos e negociados, por meio de contratos coligados, como uma vantagem de mercado (goodwill of trade) construída, arquitetada e organizada, para criar demanda e satisfazê-la, a bem dos lojistas[1].

Não é possível negar que os shopping centers fazem parte do cotidiano das pessoas que residem nas cidades. A compreensão do papel exercido pelos centros de compras pode assentar-se na evidência de sua dupla função social atualmente reconhecida.

No plano empresarial, a função afirmada em relação aos próprios contratantes. No plano das relações de consumo, a função social afirmada em relação ao restante da sociedade, os consumidores.

Apesar do aparente consenso em torno da expressão “contrato de shopping center” como adequada ao tipo, não é possível descurar que o fenômeno sob análise não pode ser reduzido a apenas um contrato especificamente. Por sua própria natureza, dinâmica e finalidade, esse empreendimento é um complexo de relações jurídicas (contratuais ou não) pertinentes às atividades de Shopping Center.

Reputa-se que a coligação contratual ocorre quando duas ou mais relações contratuais diferentes vinculam-se, promovendo eficácia tanto interna como paracontratual[2].

As relações jurídicas de shopping center decorrem da incidência da norma em uma coligação contratual. São relações encetadas entre os lojistas, o empreendedor e a associação de lojistas. Essa coligação de contratos, exclusivamente empresarial, deve ser regulada pelo Direito Privado Geral, sendo suporte fático para a incidência das normas civis e empresariais, nunca das normas consumeristas.

Em que pesem as divergências doutrinárias situadas temporalmente na década de 90, nas quais autores de postura maximalista defendiam a aplicação do Código de Defesa do Consumidor ao lojista frente ao empreendedor ou Administradora, a tutela consumerista deve ser excluída, cabendo aplicação das normas de natureza civil e empresarial.

Por estar consolidada, na doutrina e na jurisprudência, a corrente finalista na definição de consumidor, conforme prescreve o artigo 2º, do Código de Defesa do Consumidor, considerar o lojista como consumidor frente à Administradora levaria a duas consequências de todo inconvenientes e indevidas: I- quebra da base negocial do empreendimento; II- confusão de condições jurídicas de seus atores que poderiam, em uma situação de responsabilidade pelo vício do serviço, estar tanto na condição de fornecedores perante o destinatário final dos serviços do Shopping Center, como de consumidores, situação inaceitável porque dela decorreria a diminuição da eficácia normativa do comando constitucional de promoção da defesa do consumidor, qual seja, o destinatário final das ações promovidas pelo empreendimento.

Geralmente, o lojista aluga determinados setores do empreendimento instituído, estruturado e administrado pelo empreendedor, também conhecido como Administradora. O empreendedor age no sentido de agregar vantagens ao Shopping Center; no intuito ofertar benefícios aos lojistas, tendo por escopo último o bom funcionamento da empresa de conjunto para a verificação e a elevação dos ganhos. A dinâmica negocial dos centros de compras compreende, portanto, “uma reunião de contratos em que os lojistas recebem em locação espaços destinados ao exercício da sua atividade empresarial, beneficiando-se da estrutura montada pelo empreendedor”[3].

Além dos lojistas e do empreendedor ou Administradora, não se pode olvidar da Associação de Lojistas do Shopping Center como um dos sujeitos relevantes do intrincado complexo negocial sob análise.

Tal associação costuma receber as contribuições dos lojistas associados para um fundo de promoção e publicidade, a serem utilizadas nas campanhas publicitárias do empreendimento, o que tem grande relevância para o êxito e eficiência do negócio. Atente-se, de modo especial, para o fato de que o lojista será compelido a integrar tal associação, sem que isto resulte em infração à garantia fundamental da liberdade de associação. Isso porque o ingresso do lojista nessa associação dá-se a partir do momento em que aceita a fazer parte da estrutura do empreendimento, em uma situação de antecipação da vontade livre e consciente de assumir os ônus do empreendimento e de beneficiar-se com os atos de cooperação e colaboração empresarial que lhe são característicos.

Se o lojista pode optar por não participar do Shopping Center, resta evidenciada a ausência de obrigatoriedade à associação. Por outro lado, “se aceita participar do shopping é porque aceita compor a associação, já que há uma relação de dependência entre tais situações jurídicas” [4].

Observe-se, pois, que a relação jurídica mantida entre os lojistas e o empreendedor termina por gerar conseqüências jurídicas nas relações entre os lojistas e a associação de lojistas, ou, ainda, entre a associação de lojistas e o empreendedor.

Além da causa de cada um dos contratos individualmente considerados, há uma causa sistêmica que constitui o elemento de conexão entre esta gama de relações jurídicas: o sucesso do empreendimento e a inafastável interdependência mútua empresarial.

A coligação contratual costuma recorrer a vínculos de extensão diversa, que podem ser classificados basicamente em três grandes categorias, quais sejam: I. vínculos de acessoriedade; II. vínculos de dependência; e III. vínculos de coordenação.  

Dá-se o liame de acessoriedade quando certo contrato se presta à viabilização ou aperfeiçoamento do cumprimento específico de outro contrato, que permanece como negócio jurídico principal no contexto da operação econômica.

 Já no vínculo de dependência constata-se a subordinação da eficácia ou finalidade econômica de certo contrato a outro acordo de vontades, enquanto o vínculo de cooperação consiste em uma ordenação una entre diferentes pactos ou negócios, com ou sem um núcleo de poder contratual centralizado. Neste último caso, não há o exercício de uma posição jurídica hegemônica de um contratante em relação aos demais. A vinculação ocorre, geralmente, em moldes associativos, com a convergência de forças para a realização de um objetivo comum, pautada por solidariedade e cooperação mútua dos atores negociais, que não poderia ser atingido se os participantes atuassem isoladamente[5].

Não são poucos os doutrinadores brasileiros que reputam que o instituto jurídico sob análise corresponde a um contrato de locação. Entendemos, não obstante, tratar-se de uma situação de coligação contratual, haja vista a impossibilidade, inerente ao tipo, de sua redução a um contrato específico.

A confusão entre as espécies contratuais, sem sombra de dúvidas, está ligada ao fato da menção do Shopping Center na Lei de Locação de Imóveis Urbanos (Lei nº 8.245/1991) e à remuneração que normalmente é praticada nesta atividade. Como o lojista obriga-se a pagar ao empreendedor um aluguel pela utilização de certo espaço, tendo em vista a localização mais ou menos privilegiada no empreendimento, esse aluguel, inicialmente, salta aos olhos, obscurecendo os demais vínculos negociais estabelecidos no empreendimento dos centros de compras.

Essa remuneração é comumente chamada de aluguel mínimo, para distingui-la de outra prestação, que não se apoia na locação do espaço, “mas, sim, na utilização do aviamento do empreendimento, suas vantagens de mercado, os serviços de logística e mercadologia que oferece e pelo qual é remunerado, como parceiro, com uma participação no faturamento”[6].

Fala-se, nesse último caso, do aluguel percentual, que visa remunerar a estrutura organizacional e a estratégia mercadológica, que servem e atuam para incrementar a captação de clientes e para a aquisição dos produtos e serviços ofertados pelos lojistas.  

A atuação aventada engloba desde a definição de aspectos arquitetônicos da edificação que irá receber o empreendimento até a identificação do público-alvo e a definição da presença de lojas de ramos diversos, a fim de incentivar a visitação e atrair os consumidores.

Essa coordenação mercadológica de diversos fatores é o tenant mix, que representa um benefício ofertado pelo empreendedor do shopping center aos lojistas. Tendo em vista tais vantagens proporcionadas pelo empreendimento, a remuneração não se prende a um valor fixo, pelo que se estabelece um acordo de parceria em razão do qual a administração também é remunerada com base no êxito do empreendimento. Destarte, o aluguel percentual é, apenas, o resultado de remuneração fundada em cláusula de sucesso e definido pela incidência de percentual sobre a receita do estabelecimento.

A fim de assegurar a eficácia da cláusula de aluguel percentual, costuma-se estipular cláusula que prescreve a fiscalização do movimento financeiro do lojista pelo empreendedor. Resta, pois, assegurado ao empreendedor o direito de sindicar amplamente o faturamento do lojista, a fim de realizar o controle das negociações concluídas naquela unidade e, a partir daí, precisar o faturamento bruto em determinado período[7].

O pagamento do aluguel percentual é uma espécie de contraprestação devida em virtude do chamado tenant mix, ou seja, a ordenação do espaço físico dentro (e até mesmo fora) do shopping center, com o intuito de maximizar os lucros do empreendimento e de atender os interesses de determinada clientela, tendo em vista certa área geográfica ou determinado mercado relevante.

Entende-se que o mercado relevante para um shopping center alcance um raio entre dois e três quilômetros nos grandes centros urbanos, ou qualquer distância que possa ser atingida em quinze minutos de deslocamento, em veículo automotivo, entre o empreendimento e outro, da mesma natureza, sediado em outras regiões.

Assim, o tenant mix está ligado à produtividade do shopping center e à capacidade do empreendimento de fazer com que seus diversos lojistas interajam e aufiram bons resultados[8]. Por meio da conjunção de ofertas, níveis de conforto e acesso, o consumidor incrementa a aquisição de produtos e a contratação de serviços em um único ambiente.

O tenant mix, dentro da perspectiva do shopping center, enquanto espécie de coligação contratual, guarda relação com a chamada causa supracontratual ou sistemática. Na medida em que o tenant mix visa atender os interesses do conjunto integrado por lojistas e empreendedor, ele integra a chamada causa maior do contrato, que sobrepõe-se às causas individuais dos empresários, aos motivos que levaram cada um dos participantes isoladamente a celebrar os diversos contratos que compõem o feixe de relações jurídicas denominado de shopping center.

A causa sistemática (ou supracontratual) consiste na realização do objetivo do conjunto dos lojistas – no sentido de “incluir o seu negócio no empreendimento, beneficiando-se da sua organização e estrutura para atrair mais consumidores e, consequentemente, maiores lucros” -, bem como do empreendedor, que tenciona consolidar o empreendimento no mercado, atraindo mais lojistas e mais consumidores, com um aumento dos seus lucros em virtude da participação nos rendimentos[9].

Nessa toada, para assegurar a integridade do tenant mix, costuma-se estipular cláusula que veda a mudança do ramo de comércio ou prestação de serviços do lojista. Reputa-se que esta espécie de cláusula justifica-se em virtude “de uma das principais características do empreendimento que é o tenant mix do empreendimento, realizado após cuidadosa análise técnica, com o estudo a respeito da distribuição das lojas segundo os diversos ramos”. Se cada lojista pudesse alterar isoladamente o seu ramo de atividade, a ordenação planejada pelo empreendedor restaria sem sentido, já que a tal alteração realizada por um dos lojistas causaria impactos nos demais e em todo o empreendimento[10].

Na próxima coluna será abordada a questão da cláusula de raio e, por fim, os efeitos que as características próprias dos contratos dos centros de compra podem gerar, ou não, nos direitos dos consumidores.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).

 


[1] MAMEDE, Gladston. Manual de Direito Empresarial. São Paulo: Atlas, 2010, p. 259.

[2] LEONARDO, Rodrigo Xavier. Os Contratos Coligados. In: BRANDELLI, Leonardo (org.). Estudos de Direito Civil, Internacional Privado e Comparado: coletânea em homenagem à Professora Véra Jacob de Fradera. São Paulo: Leud, 2014, p. 363.

[3] NEVES, Thiago Ferreira Cardoso. Contratos Mercantis. São Paulo: Atlas, 2013, p. 424.

[4] MAMEDE, Gladston. Manual de Direito Empresarial. São Paulo: Atlas, 2010, p. 264.

[5] LEONARDO, Rodrigo Xavier. Os Contratos Coligados. In: BRANDELLI, Leonardo (org.). Estudos de Direito Civil, Internacional Privado e Comparado: coletânea em homenagem à Professora Véra Jacob de Fradera. São Paulo: Leud, 2014, p. 366.

[6] MAMEDE, Gladston. Manual de Direito Empresarial. São Paulo: Atlas, 2010, p. 261.

[7] GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Contrato de Shopping Center. Revista da EMERJ, v. 5, n. 18 (2002). Rio de Janeiro: Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, p. 214.

[8] CRISTOFARO, Pedro Paulo Salles. As Cláusulas de Raio em Shopping Centers e a Proteção à Livre Concorrência. Revista de Direito Renovar, v. 36 (set./dez., 2006). Rio de Janeiro: Renovar, p.68.

[9] NEVES, Thiago Ferreira Cardoso. Contratos Mercantis. São Paulo: Atlas, 2013, p. 424-425.

[10] GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Contrato de Shopping Center. Revista da EMERJ, v. 5, n. 18 (2002). Rio de Janeiro: Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, p. 219-220.

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