Mudança de paradigma

A atuação do juiz no novo Código de Processo Civil

Autor

  • Benedito Cerezzo Pereira Filho

    é advogado doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com pesquisa pós-doutoral pela Universidad Complutense de Madrid na Espanha professor dos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) pesquisador do Grupo de Pesquisa Processo Civil Acesso à Justiça e Tutela dos Direitos (CNPq/UnB) e membro Efetivo do Instituto Brasileiro de Direito Processual e da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC).

30 de março de 2015, 8h21

A sanção presidencial, com pouquíssimos vetos, ao código de processo civil, coloca o cenário jurídico processual cível sob a expectativa do novo e seus interrogantes.

O novel estatuto, Lei 13.105, de 16 de março de 2015, não obstante ser apontado por vários juristas como sendo um Código do Povo, é fruto do Poder e, como tal, teve e tem suas preferências, não sendo de todo correto afirmar ser um “código popular”.

Sempre com o rótulo de se atender ao cidadão, até os últimos momentos, foram disputados, dentro desse espaço de poder, preferências e conquistas legislativas, com pressões sobre o Executivo para que artigos fossem mantidos ou vetados. Sancionado, cabe a todos, principalmente à doutrina, elaborar uma construção interpretativa vocacionada à implementação dos preceitos fundamentais previstos na Constituição Federal.

Tal tarefa, contudo, transcende a ideia do código, enquanto instrumento procedimental, para propiciar uma mudança de paradigma que, a primeira vista, pode não estar evidenciada. Nesse contexto, o papel reservado ao juiz nos parece de suma importância.

O Juiz do Código atual
O Código moribundo recepcionou um juiz “historiador”, cujas preocupações são voltadas apenas para a reconstrução do passado, refletindo os anseios de uma época em que a função do Direito era somente “garantir a livre circulação das ideias, das pessoas e, particularmente, dos bens”. (Gomes, 2001, p. 17)

Não sem outra razão, a primeira forma de Estado, após a revolução burguesa, foi baseada no “princípio da limitação da intervenção estatal, na liberdade do indivíduo e na crença na superioridade da regulação espontânea da sociedade pela “mão invisível” do mercado (Adam Smith).” (Gomes, 2001, p. 17)

Sendo este o modelo de Estado, não intervencionista, o direito, e, por conseguinte, o processo civil, reservaria ao juiz um papel de mero coadjuvante. É o juiz sem poder, mero aplicador dos textos legislativos sabiamente elaborados pelo poder competente e que, pela sua excelência, bastaria ser aplicado à situação pretérita para ordenar a sociedade. Estava assim, exaltado o “sucesso” do princípio da subsunção.

O Código de Processo Civil, então, ajustou esse modelo de juiz. Neutro, imparcial, equidistante das partes para, após cognição ampla, plena e exauriente, dizer o direito ao caso concreto com certeza, reconstruindo o passado (historiador) e declarando o valor indenizatório devido ao dano causado.

Veja que inexiste intervenção e, muito menos, interação do juiz (Estado) com as partes. Sua postura é exatamente o contrário: de equidistância. “É defeso ao juiz emitir ordens às partes”. (Liebman, 1980) Essa é a construção legislativa e teórica da “doutrina” que influenciou o processo civil atual.

A própria estrutura[1] do código, alicerçado em três processos, conhecimento, execução e cautelar, fundados em dois procedimentos distintos, comum e especial, cuja classificação ternária da sentença em condenatória, declaratória e constitutiva, arduamente defendida pela doutrina, principalmente pela “escola paulista de processo”, evidencia bem esse quadro. “Essas sentenças, como atos integrantes do processo de conhecimento clássico, não permitem ao juiz atuar a não ser no plano normativo, e assim apenas objetivando afirmar a vontade da lei e a autoridade do Estado-legislador”. (Marinoni, 2004, p. 37)

Por óbvio, pela limitação de espaço do presente trabalho, não se pode discorrer, com mais vagar, sobre toda ideologia pela qual passou o processo civil atual. Não obstante, não se tem como negar o fato de que o juiz deste código é aquele que em muito se assemelha com a atividade do historiador. Seu trabalho é voltado, preponderantemente, para o passado, com raras exceções nos e em alguns procedimentos especiais,[2] mas, estes, até pela própria nomenclatura, evidenciam pertencer aos especiais, que, constituem a minoria da população. Não é por outro motivo que a ineficácia do processo civil está fundada no procedimento comum e seus condicionantes.

O juiz do (direito) Estado Constitucional
O juiz do Direito não é o juiz do Código.[3] Este é o historiador, aquele o “interventor”. Em outras palavras, essa intervenção é o contraponto ao juiz “neutro”, “sem poder”, simplesmente reproduzindo “a vontade da lei”, ou seja, “a boca da lei”. Precisamos de um juiz e não de um historiador!

A dinamicidade do direito e os valores que permeiam a vida na sociedade não coadunam com a insensibilidade e com a indiferença. “Se o processo ficar limitado à legislação processual ou, melhor dizendo, tiver a sua feição escravizada à lei, muitas vezes ele poderá ficar distante das necessidades dos direitos e da vida” (Marinoni, 2004, p. 28).

Ao contrário do tempo em que a proteção jurídica visava o patrimônio e, por assim dizer, se preocupava com poucos, o direito atual passou a servir ao homem, enquanto sujeito de direito, dando relevo à sua dignidade, pois, não há bem de igual ou maior relevo. É conclusivo, pois, que “As transformações do papel do Estado obrigam, irremediavelmente, à adoção de um novo papel também do direito”. (Gomes, 2001, p. 19)

Um novo modelo de Estado e de Direito, por lógica, exige, igualmente, outro modelo de juiz. Assim, o vetusto princípio da subsunção cede lugar ao da criação. A interpretação judicial é iluminada de requinte constitucional, notadamente, dos seus fundamentos e valores (artigos 1º e 3º da CRFB). O acesso à justiça passa ser uma inteligência vocacionada a efetiva tutela dos direitos e não como uma mera faculdade de se ajuizar ação processual.[4]

Um Novo Código. Um Novo Paradigma. Um Novo Juiz
O Código recentemente sancionado, apesar de não refletir fielmente essa alteração paradigmática, caso pretenda realmente ser instrumento de Justiça para o cidadão, deverá ser interpretado por esse viés. Sua eficiência será verificada não enquanto mero instrumento, mas, na sua exata capacidade de concretizar direito no mundo dos fatos e num tempo satisfatório para as partes interessadas.

O processo e os respectivos procedimentos devem ser pensados na medida em que sejam capazes de tutelar o direito material. Em outros termos, é deixar de pensar o processo pelo próprio processo para dar concretude ao direito material projetado na norma. Essa é a interpretação que se deve empregar à tutela jurisdicional, como corolário à plena garantia do direito fundamental de ação (artigo 5º, inciso XXXV, da CFRB).

Marinoni (2004, p. 147), especialista no tema, esclarece que: “A tutela jurisdicional, quando pensada na perspectiva do direito material, e dessa forma como tutela jurisdicional dos direitos, exige a resposta a respeito do resultado que é proporcionado pelo processo no plano do direito material”.

O direito fundamental à adequada tutela jurisdicional exige do juiz uma postura capaz de dar proteção condizente com os preceitos normativos previstos na norma de direito material. Ainda que o processo se ressinta de técnica processual para tal mister, caberá ao juiz empregar esforços para, em respeito ao direito fundamental de proteção, atender efetivamente o que lhe é pleiteado.

Sendo essa a característica da tutela dos direitos e, como frisado, a busca pela proteção da norma de tal forma que o ilícito não ocorra ou, se ocorrido, que seja imediatamente removido, precisa-se, inexoravelmente, de um juiz atuante.

O poder do juiz
Marinoni (2000, p. 25) assevera que: “o juiz e o processualista, se um dia realmente se pensaram ideologicamente neutros, mentiram a si próprios, pois a afirmação de neutralidade já é opção ideológica do mais denso valor, a aceitar e a reproduzir o status quo.”

Não se pode pensar em tutela do direito sendo prestada por um juiz espectador, preocupado na recomposição do passado (historiador). Ao contrário, pressupõe um juiz que possa emitir ordens e fazê-las cumprir.

No entanto, aos incautos, preocupados com o aumento do poder do juiz, cabe relembrar que não se trata, na verdade, de aumento. O que se busca é uma racionalização do seu poder ante a necessidade de prestar uma tutela em nível constitucional.

Em outras palavras, o poder é inerente à atividade jurisdicional. O juiz exerce parte da soberania do Estado exatamente porque é membro e não mero representante dele. Por isso, a expressão Estado/juiz. Sendo assim, é um erro falar em aumento ou diminuição desse poder.

O que se tem, isso sim, são meios de controle, notadamente, pelas garantias constitucionais/processuais do direito de ação, contraditório, fundamentação[5] das decisões etc. No entanto, se apesar disso, o juiz se mantiver “neutro”, acaba por anular o uso do seu poder, necessário para sua atuação.

Luhman, citado por Gomes (2001, p. 28), bem compreendeu essa questão e esclarece que, “ante a complexidade e a interdependência nas sociedades modernas, aumenta a necessidade de decisões rápidas, sincronizadas e tempestivas. Assim, o risco não é de um excesso, mas sim de um déficit de poder.”

Parece-nos lógica essa questão. Se o judiciário é chamado, cada vez mais, a participar da vida dos cidadãos, por decisões que possam permitir, até mesmo, inclusão social,[6] a racionalização do uso do poder exige procedimentos capazes de dar vazão a essa necessidade.

O juiz sem poder, portanto, é um mito! “Na verdade, a idade dos sonhos dogmáticos acabou. A nossa modernidade está na consciência de que o processo, como o direito em geral, é um instrumento da vida real, e como tal deve ser tratado e vivido” (Marinoni, 2000, p. 19). O papel reservado ao juiz, então, deve ser pensado e exercido à luz dos direitos fundamentais, notadamente, do direito de ação.

Síntese conclusiva
Todo trabalho que se diz “científico” exige uma conclusão. No Direito, contudo, ousamos discordar. Acreditamos que a discussão tem de ser permanente e jamais haver conclusão. Quando muito, o que se tem são enunciados, visões de como deve ser, naquele caso concreto, aplicado o direito. Sempre com Lyra Filho: “direito é sendo” (1982), ou seja, não se pode sequer, conceituá-lo, quem dirá, conclui-lo. Contudo, seguindo as regras da academia, apresentamos, apenas, uma síntese conclusiva e, desde já, deixamos o convite para a reflexão a todos que se propuserem a analisar nossas ponderações.

Para a compreensão do que pretendemos expor acima, é de vital importância levar em consideração o dado fundamental que modificou, no nosso sentir, toda a estrutura normativa pátria. Para nós, a Constituição Federal de 05 de outubro de 1988, além de inaugurar uma nova ordem jurídica, alterou, sensivelmente, o paradigma até então existente, de tal sorte que os conceitos de lei e jurisdição foram radicalmente modificados.

Com efeito, os fundamentos da República Federativa do Brasil (artigo 1º) e os objetivos fundamentais em construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento social; erradicar a pobreza e marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (artigo 3º) retiraram da lei o seu sentido absoluto. Sua importância passou a ser subordinada à obediência aos direitos fundamentais previstos no texto constitucional.

A jurisdição por sua vez, iluminada pelo dever de se prestar uma tutela adequada, tempestiva e efetiva, como corolário ao direito fundamental de ação, passa a ser vista como um meio de se realizar os fins do Estado.

Para tanto, o entendimento de acesso à justiça e, sobretudo, do papel do juiz, são remodelados para se vislumbrar um juiz atuante, inclusive, para decidir e determinar políticas públicas, já que o mito da neutralidade foi sepultado, de uma vez por todas, quando a Constituição albergou a necessidade de se prestar tutela não somente à lesão, mas, principalmente, à ameaça (artigo 5º, inciso XXXV).

O juiz historiador, então, ficou na história!

Referências
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. trad. por Ellen Gracie Northfleet, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1988.

GINZBURG, Carlo. Il giudice e lo storico: considerazioni in margine al processo Sofri. Milano: Feltrinelli, 2006.

GOMES, Diego J. Duquelsky. Entre a lei e o direito: uma contribuição à teoria do direito alternativo. trad. Amilton Bueno de Carvalho e Salo de Carvalho. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2001.

HERKENHOFF, João Baptista. O direito dos códigos e o direito da vida. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1993.

LIEBMAN, Enrico Tulio. Processo de execução. 4. ed., São Paulo: Saraiva, 1980.

LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. São Paulo: Brasiliense, 1982.

MARINONI, Luiz Guilherme. A questão do convencimento judicial. Revista Peruana de Derecho Procesal, v. 11, 2008. pp. 569-590.

_____. Novas linhas do processo civil. São Paulo: Malheiros, 2000.

_____. O procedimento comum clássico e a classificação trinária das sentenças como obstáculos à efetividade da tutela dos direitos. Revista Peruana de Derecho Procesal, Lima, v. 5, 2002. pp. 171-191.

_____. Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

_____. Tutela inibitória: individual e coletiva. 3 ed., rev., atual e ampl., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Do formalismo no processo civil. 3. ed., São Paulo: Saraiva, 2009.

PAULA, Jônatas Luiz Moreira de. A jurisdição como elemento de inclusão social: revitalizando as regras do jogo democrático. Barueri/SP: Manole, 2002.

PEREIRA FILHO, Benedito Cerezzo. O poder do juiz: ontem e hoje. Revista da Ajuris, v. 104, 2006, p. 19-33.

PEREIRA FILHO, Benedito Cerezzo; MORAES, Daniela Marques de. A tutela dos direitos e a remodelação do papel reservado ao juiz como corolário principiológico do acesso à justiça. PENSAR Revista de Ciências Jurídicas. v. 17. Fortaleza: Fundação Edson Queiroz – Universidade de Fortaleza, jan./jun. 2012. p. 33-56.

PEREIRA FILHO, Benedito Cerezzo; OLIVEIRA, Emerson Ademir Borges de. A estrutura do código de processo civil: uma afronta à igualdade. Anais do XIV Congresso Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005. p. 295-296.

RICOEUR, Paul. O historiador e o juiz. In: _____. A memória, a história, o esquecimento. trad. por Alain François. Campinas/SP: Editora da UNICAMP, 2007a, pp. 330-347.


[1] A respeito, examinar os textos: O poder do juiz: ontem e hoje (PEREIRA FILHO, 2006) e A estrutura do código de processo civil: uma afronta à igualdade (PEREIRA FILHO; OLIVEIRA, 2005).

[2] Consultar: O poder do juiz: ontem e hoje (PEREIRA FILHO, 2006); Do formalismo no processo civil (OLIVEIRA, 2009); O procedimento comum clássico e a classificação trinária das sentenças como obstáculos à efetividade da tutela dos direitos (MARINONI, 2002).

[3] Ver: O direito dos códigos e o direito da vida (HERKENHOFF, 1993) e O que é direito (LYRA FILHO, 1982).

[4] “Na ótica dos estados liberais burgueses dos séculos dezoito e dezenove, o direito à jurisdição significava apenas o direito formal de propor ou contestar uma ação” (MARINONI, 2000, p. 26)

[5] Assim, de suma importância o artigo 489, parágrafo primeiro e seus incisos, previsto no novo código, ao enumerar diversas hipóteses em que não se considerará fundamentada a decisão. Esse dispostivo deixa bem claro o limite do poder e, acima de tudo, legitima a atuação do poder judiciário.

[6] Ver, neste sentido: A jurisdição como elemento de inclusão social: revitalizando as regras do jogo democrático (PAULA, 2002)

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