Liberdade de expressão

"Gritar fora Dilma é fácil, difícil é gritar fora Castello Branco"

Autor

  • Alexandre Fidalgo

    é doutor em Direito pela USP mestre em Direito pela PUC-SP advogado e sócio do escritório Fidalgo Advogados. Integrante do conselho jurídico da Fiesp e do conselho de liberdade de expressão da OAB Federal.

25 de março de 2015, 8h02

Spacca
O direito fundamental à liberdade de expressão, notadamente assegurado pelo Texto Constitucional, permite movimentos da sociedade como aos que assistimos no dia 15 de março de 2015, em que uma fatia significativa da sociedade ocupou as ruas dos principais centros do país para manifestar e protestar.

O mesmo direito que permitiu os protestos em diversas cidades do Brasil, permitiu, em outros tempos, a chamada marcha da maconha, em que manifestantes organizaram-se para defender publicamente a liberação dessa substância. Não se faz aqui juízo de valor sobre as propriedades medicinais ou psicotrópicas da conhecida erva.

Muito se falou, à época das marchas, que a manifestação popular representava uma incitação ao crime, capitulando-a nas hipóteses dos artigos 286 (incitação ao crime) e 287 (apologia ao crime) do Código Penal, sob o argumento de que não haveria liberdade alguma, tampouco de expressão, quando se defendesse a prática de alguma ilegalidade e, no caso, a maconha é classificada como um entorpecente.

Instado a se manifestar, por força da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 187, o Supremo Tribunal Federal entendeu por garantir duas liberdades individuais revestidas de caráter fundamental: O direito de reunião e o direito à livre expressão de pensamento.

Sob a perspectiva do direito de liberdade de expressão, acertadamente o Supremo Tribunal Federal entendeu que, a despeito de a maconha constituir efetivamente uma droga ilícita, dado que incluída na relação de entorpecentes, a manifestação que ocupou as ruas buscava contrapor esse entendimento majoritário, sustentando a descriminalização dessa droga. Vale dizer que a garantia da contraposição das minorias às maiorias representa efetivamente a ideia democrática da liberdade de expressão.

A propósito, Hans Kelsen dizia que “a vontade da comunidade, numa democracia, é sempre criada através da discussão contínua entre a maioria e a minoria, através da livre consideração de argumentos a favor e contra certa regulamentação de uma matéria.”

Considerou-se, portanto, inexistirem, de um lado, os elementos típicos dos artigos 286 e 287 do CPB, vez que a hipótese revelava o exercício de um direito de reunião e de manifestação de pensamento.

Vale transcrever excerto da ementa:

A LIBERDADE DE EXPRESSÃO COMO UM DOS MAIS PRECIOSOS PRIVILÉGIOS DOS CIDADÃOS EM UMA REPÚBLICA FUNDADA EM BASES DEMOCRÁTICAS – O DIREITO À LIVRE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO: NÚCLEO DE QUE SE IRRADIAM OS DIREITO DE CRÍTICA, DE PROTESTO, DE DISCORDÂNCIA E DE LIVRE CIRCULAÇÃO DE IDEIAS – ABOLIÇÃO PENAL (ABOLITIO CRIMINIS) DE DETERMINADAS CONDUTAS PUNÍVES – DEBATE QUE NÃO SE CONFUNDE COM INCITAÇÃO À PRÁTICA DE DELITO NEM SE IDENTIFICA COM APOLOGIA DE FATO CRIMINOSO – DISCUSSÃO QUE DEVE SER REALIZADA DE FORMA RACIONAL, COM RESPEITO ENTRE INTERLOCUTORES E SEM POSSIBILIDADE LEGÍTIMA DE REPRESSÃO ESTATAL, AINDA QUE AS IDEIAS PROPOSTAS POSSAM SER CONSIDERADAS, PELA MAIORIA, ESTRANHAS, INSUPORTÁVEIS, EXTRAVAGANTES, AUDACIOSAS OU INACEITÁVEIS.

Novamente estamos diante de manifestações deflagradas nas ruas do Brasil e podemos perceber uma profusão de reivindicações. Melhoria do ensino, melhores condições na saúde, na segurança pública, solicitação de apear da cadeira do planalto a presidente da República, mediante o procedimento de impeachment, entre outros tantos pedidos, que, se de um lado causam incômodo a diversos setores (jurídico, político, econômico, financeiro…), de outro constituem a voz de grande parte da população (maioria ou minoria).

Nenhuma ilegalidade há nisso, muito pelo contrário, trata-se efetivamente da consagração de um Estado Democrático de Direito, tendo em vista que as manifestações transcorrem dentro de um estado legal.

Mas, no meio das manifestações, eis que aparecem algumas faixas requisitando intervenção militar. Bem, podemos sustentar que a reivindicação, feita por uma, duas, três pessoas, ou quantas sejam, quer expressar a preocupação com a situação política do país e que, na visão dessa minoria, seria necessária a aplicação do artigo 142 da Constituição Federal[1].

A Lei Complementar 97, de 9 de junho de 1999, regulamentando o artigo supracitado, estabelece que as Forças Armadas se submetem ao Ministério do Estado e da Defesa, órgão do poder Executivo sob o comando da Presidente da República.

Dito isto, podemos concluir que os pedidos de intervenção militar — sob a perspectiva acima — constituem livre manifestação de pensamento, pois há um grupo minoritário de pessoas que entende, por mais chocante, insuportável, desagradável a ideia, ainda que sob o argumento de que as instituições políticas brasileiras estão de alguma forma comprometidas em razão de atos de corrupção que pululam no noticiário, ser necessário que a presidência da República convoque as Forças Militares para restabelecerem a ordem.

Portanto, essa intervenção constitucional, ainda que também absolutamente desnecessária no plano democrático, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato da presidência da república[2].

No entanto, como se estabeleceria o direito fundamental da livre manifestação de pensamento se a proposta tivesse a finalidade de produção de um golpe militar?

A ideia aqui não é apresentar as razões retrógradas ou mesmo estapafúrdias daqueles que defendem a ideia de a nação ser novamente controlada por forças autoritárias. A questão é saber se a defesa pública dessa corrente está inserida no direito fundamental da livre manifestação de pensamento.

Pensamos que não!

Qualquer manifestação em defesa de um golpe militar viola a forma política de como o estado brasileiro deve representar os valores de sua nação. O artigo 1º da Constituição Federal assegura que o país é um Estado Democrático de Direito.

Um Estado Democrático a significar que o governo é formado pelos cidadãos, em que os representantes são escolhidos livremente pelo voto. Estado de Direito que impõe estruturas estatais pautadas pelos critérios do Direito, e não pelas da força, da prepotência ou do arbítrio[3].

A ideia de intervenção militar como golpe constitui ruptura ao plano jurídico social existente, com rompimento das garantias dos direitos fundamentais, sociais e políticos. Significa dizer que o povo, titular do poder num Estado Democrático, renuncia o controle de sua vida, oferecendo-a ao poder autoritário.

Não se discute, portanto, uma ponderação de valores constitucionais, em que, em determinada hipótese, um se sobrepõe a outro; mas sim ruptura da própria ordem democrática.

Manifestar apoio à ruptura do Estado Democrático de Direito é efetivamente romper com o modelo de Estado que a atual sociedade, depois de anos de luta, deve preservar; é, portanto, ato de profunda lesa-pátria.

Como dizia Rui Barbosa, "a liberdade não entra no patrimônio particular, como as coisas que estão no comércio, que se dão, trocam, vendem, ou compram: é um verdadeiro condomínio social; todos o desfrutam, sem que ninguém, o possa alienar; e, se o indivíduo, degenerado, a repudia, a comunhão, vigilante, a reivindica".


[1] CF 142. As Forças Armadas constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, soba a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

[2] Art. 15, § 2º, da Lei Complementar nº 97, de 1999

[3] Cf. Jairo Gomes Leal. Princípios de direito eleitoral. São Paulo: Atlas, 2011

Autores

  • é sócio titular do escritório Fidalgo Advogados, doutorando em Direito Constitucional na USP; mestre em Processo Civil pela PUC-SP; especializado em Direito da Comunicação e Direito Penal.

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