Falta de reconhecimento

O genocídio armênio e o silêncio conivente do Brasil

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25 de março de 2015, 9h02

No dia 24 de abril de 2015, o mundo relembrará 100 anos do primeiro genocídio do século XX, que matou aproximadamente um milhão e meio de armênios. E a pergunta que não cala é “você já ouviu falar sobre o genocídio armênio?”. Muito provavelmente a resposta será negativa, e aí o tranquilizamos, já que infelizmente essa resposta está dentro dos padrões de normalidade de cultura e educação do nosso país.

Na realidade, é muito difícil encontrar alguém no Brasil que já tenha ouvido falar sobre o massacre que vitimou dois em cada três armênios que viviam no Império Turco Otomano. As razões principais são pelo fato de o assunto não ser alvo de estudo nas grades curriculares (tanto do ensino básico como do superior) e de os meios de comunicação, em sua esmagadora maioria, ignorarem rotineiramente o ocorrido. Dito isso, traremos um breve contexto histórico.

O plano de extermínio armênio teve como origem a crise do Império Turco Otomano. A tentativa de reestruturação feita no século XIX, que buscava modernizar o Império, não deu resultados efetivos. Para os armênios, surgiu um código de conduta, com direitos e deveres que foi avalizado pelo Patriarcado da Igreja Apostólica Armênia de Constantinopla (representativa de 80% dos armênios do Império). Esse arranjo jurídico-politico foi sustentado por uma Assembleia Nacional Armênia, que nada mais era que um órgão representativo sem poder algum, instalada em 1863 como interface nos diálogos com o Sultanato.

As pressões sobre os armênios só aumentavam. A sobretaxação da produção agrícola, opressão cultural com a proibição do idioma armênio em muitas regiões e a incitação para que grupos curdos atacassem vilas armênias eram algumas das violências perpetradas contra a maior minoria do Império. O quadro se agravou quando nas regiões orientais do Império Otomano, nas proximidades da área de influência da Rússia czarista, muitas províncias armênias começaram a se rebelar contra os desmandos dos governadores turcos. Pra piorar, disseminava-se entre a população turca e curda que os armênios, cristãos, eram aliados dos russos e que estavam mancomunados com o exército czarista para destruir o Império Otomano.

A escalada da violência culminou com os chamados massacres hamidianos (alusão ao Sultão Abdul Hamid II) que entre 1894 e 1896 ceifaram a vida cerca de trezentos mil armênios em represália aos movimentos rebeldes[1]. As pressões internacionais por reformas profundas abalavam a estrutura do Império Otomano. Internamente a oposição ao sultão crescia, especialmente entre o oficialato e o funcionalismo público que havia perdido privilégios e cargos com o encolhimento gradual do território, fruto de derrotas nos Bálcãs e nas cercanias do mundo árabe. Esses grupos, descontentes e declaradamente contra o sultão, formaram o movimento chamado de Jovens Turcos que agrupava também liberais e militantes nacionalistas.

Em 1906 eles se fundiram no Partido de União e Progresso (antes uma sociedade revolucionária secreta) que rapidamente soube capitalizar o descontentamento generalizado. Propondo mudanças culturais e políticas, os Jovens Turcos, maioria dentro do Partido de União e Progresso, conseguiu a convocação de um parlamento para realizar uma reforma constitucional que diminuiria sensivelmente o poder do Sultão. Muitos grupos políticos armênios aceitaram participar dessa tentativa de mudanças, já que há tempos vinham suplicando por melhores condições de vida e eram ignorados por quem estava no poder.

Porém, foi se desenhando um perverso plano. Os líderes dos Jovens Turcos decidiram eliminar a população armênia do território. A lógica genocida iniciava sua ação para acabar de vez com o que eles chamavam de “Questão Armênia”. Por essa lógica criminosa, eles afastariam o risco de um avanço russo pela Anatólia, que supostamente contaria com apoio dos armênios. Ao mesmo tempo saqueariam todas as propriedades armênias e assim solucionariam enormes pendências na economia.

A execução foi meticulosamente planejada. No Domingo de Páscoa de 1915, dia 24 de abril, intelectuais armênios foram presos supostamente para averiguações. Lideranças políticas e religiosas da comunidade foram pouco a pouco sendo encarceradas em Constantinopla e outras cidades. Nas vilas armênias a população masculina foi convocada para cavar trincheiras. Levados para longe eram mortos e soterrados nas valas que eles próprios abriram. Em poucas semanas a imensa maioria da população armênia começava a ser deportada para o Deserto de Der El Zor, inóspita região hoje dentro do território sírio. A estratégia era afastar a população armênia das vistas de observadores internacionais. Mesmo assim, relatos dramáticos de torturas, violência e perversidade chegaram ao ocidente graças a seres humanos comprometidos com a verdade e a justiça[2].

A vida dos poucos sobreviventes é o relato fiel do que realmente aconteceu. Em poucos meses quase a totalidade dos armênios do Império Otomano foi morta de forma criminosa. Pereceram um milhão e quinhentos mil armênios inocentes. Afora o crime humano, famílias foram separadas, orfanatos tentavam organizar a vida de crianças desesperadas e traumatizadas e um milenar patrimônio cultural foi destruído.

Somos descendentes dos poucos sobreviventes que depositaram em nós a gana por justiça. Eles chegaram ao Brasil nos anos de 1920 e 1930 e adotaram essa nacionalidade integralmente. Herdamos deles a obrigação de continuar essa luta pelo reconhecimento internacional do genocídio.

Embora mais de 20 países já o tenham reconhecido, como Alemanha, França, Canadá, Rússia, Holanda, Grécia e inclusive nossos vizinhos Argentina, Chile, Uruguai, Venezuela e Bolívia, o Brasil ainda passa vergonha internacionalmente por não reconhecer um dos maiores crimes já cometidos contra a humanidade[3].

E esse silêncio irritante acaba indiretamente fazendo com que o nosso país se torne (por que não?) cúmplice desse massacre, já que tem o conhecimento de todos os fatos, tem o poder de tomar uma decisão, mas prefere quedar silente e ignorar o ocorrido. Dessa maneira, a interpretação lógica e automática é que há um posicionamento brasileiro sim, mas ao lado do opressor.

O lobby turco é muito forte, assim como os laços da economia e da política entre os dois países. Porém, do outro lado há um povo com uma história de mais de 4 mil anos que não se cansa nunca. Um povo que luta todos os dias para que um dia esse crime saia do vale das sombras e ganhe luz, para que a verdade seja dita e todos saibam o que aconteceu em 1915.

Um milhão e meio de vidas assassinadas não podem ter menos importância do que um receio de estremecimento nas relações diplomáticas[4]. Portanto, nesse aniversário de 100 anos, o povo armênio e principalmente todos aqueles que lutam pelos direitos humanos clamam: “Brasil, reconheça o genocídio armênio!”.


[1] Os estudos do intelectual turco Taner Akçam, uma das maiores autoridades mundiais em genocídio, no seu livro “Do império a república: o nacionalismo turco e o genocídio armênio, fundamentam a comprovação dessa barbárie.

[2] Destacamos notadamente o livro “A história do Embaixador Morgenthau”, da Editora Paz e Terra, que é um documento cabal do hediondo crime contra a humanidade.

[3] Há uma lista enorme também de organismos internacionais que já o reconheceram, como o Tribunal Permanente dos Povos, o Parlamento Europeu e a Assembleia Geral da ONU (há uma Resolução). Para acessar a lista completa: http://www.genocide-museum.am/eng/international_organisations.php

[4] Ainda mais porque isso não se comprovou em todos os países que o reconheceram. Ou seja, esse argumento não é válido também.

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