Constituição e Poder

Autoengano político coloca em risco o Estado de Direito

Autor

  • Marco Aurélio Marrafon

    é advogado professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com estudos doutorais na Università degli Studi Roma Tre (Itália). É membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

24 de março de 2015, 12h05

A democracia vive de tensões. E as tensões são o fio condutor para o constante reconstruir das estruturas sociais e das instituições, levando ao desenvolvimento político saudável. No entanto, em um mundo de valores fragmentados, marcado pelas diferentes visões e modos de enxergar a realidade, é preciso maturidade para evitar o canto da sereia autoritária, seja no próprio judiciário (os justiceiros estão a toda hora violando o devido processo legal, na tentativa de coibir ilegalidades a partir do cometimento de novas ilegalidades), seja no debate político. Uma democracia jovem precisa de tempo para que os cidadãos aprendam a viver com os conflitos e a respeitar o próximo. Do contrário, as sementes ditatoriais criarão raízes e florescerão.

Analisando o contexto brasileiro atual, em que as lutas políticas vêm sendo marcadas por grave cegueira em relação ao direito à diferença (o que se nota nos discursos de ódio propalados de lado a lado), fiquei tentado a refletir sobre as raízes de tamanha intolerância.

Uma das explicações que nos ajudam a compreender esse quadro está na obra Auto-engano, de Eduardo Giannetti (São Paulo: Companhia das Letras, 1997). Nela o autor procura responder uma instigante pergunta: como é possível que uma pessoa acredite nas mentiras que ela mesmo conta?

A resposta surge a partir da investigação da arte do engano: impulsionados pela necessidade de sobreviver e reproduzir, o fenômeno do engano está presente no mundo natural (basta lembrar do mimetismo do camaleão), no social (pequenas mentiras inofensivas deixam a vida mais suave e evitam conflitos desnecessários) e até no individual, ou seja, a psique humana adota mecanismos de falseamento da realidade, aliviando o sentimento de culpa e tornando a vida mais colorida ante ao fato de sermos seres imperfeitos e cometermos erros. Este último revela o autoengano.

O autoengano, ensina Giannetti, não é um processo racional ou racionalizável, ele é involuntário e acontece quando o sujeito menos percebe. Também não diz respeito ao aspecto critico ou questionador, mas antes à dogmática aceitação de convicções individuais como se fossem verdades absolutas. Daí a produção ensimesmada de sentidos: aquilo que para o sujeito pode ser a solução de todos os males do mundo, pode significar apenas uma idiotice para os outros. É o argumento do apaixonado que, de tão envolvido na causa (ou na pessoa), não consegue enxergar seus defeitos.

Mas por que é tão difícil mudar de opinião, mesmo quando há evidencias de erro em seu próprio argumento? Como é possível que alguém continue acreditando em uma ideia pré-concebida ainda que haja fortes razões em sentido contrário?

O fenômeno do autoengano se realiza na dinâmica entre três variáveis: desejo, conflito interno fomentado pelo sentimento de culpa e argumento salvador.

Um exemplo cotidiano pode explicar esse processo: quando se tem pressa, é comum que a pessoa sinta um súbito desejo de furar a fila (banco, correio etc.). Diante dessa situação, imediatamente seu aspecto racional, o lado apolíneo da psique humana, lhe causa um mal estar: furar a fila não é correto! Daí vem certo sentimento de culpa. Passo seguinte, em face do conflito “desejo X sentimento de culpa”, surge um argumento salvador, um motivo “superior” para justificar, naquele momento, a ação inadequada.

Mesmo sabendo que furar a fila não é correto, sempre se encontra um ou mais argumentos que dão “razão” para a atitude tomada, ainda que desrespeitando o direito do outro. Assim, por acreditar nesse novo argumento racional, a pessoa deleta o sentimento de ilicitude/inadequação do ato cometido, se autoenganando quanto à correção da ação realizada.

O mesmo ocorre com aqueles que bradam contra a corrupção e contra a classe política, mas forjam atestados médicos para faltar ao trabalho ou ainda tentam subornar policiais para não pagar multa.

Esse fenômeno revela a parcialidade moral que pode atingir as ações humanas, parcialidade especialmente aguçada pela proximidade: maior valor é dado aos semelhantes (mesma classe social, mesmo sotaque, gíria, jeito de vestir), que recebem tratamento mais condescendente e perdão, enquanto que o estrangeiro, o diferente, é tratado de maneira mais dura, com maior exigência ética ou ainda desprezado. Deveres éticos para os outros, para os diferentes, não para mim e os meus – eis o lema fundamental da hipocrisia social.

 O agora é concebido como mais importante que o longo prazo, daí a dificuldade de se implantar uma consciência ambiental e de se planejar as políticas públicas, pois aquilo que não é imediato parece não ter valor ou importância.

O autoengano revela aspectos individualistas – o eu centro do meu universo – que fazem sentido a partir da teoria dos círculos concêntricos. Essa teoria diz respeito aos códigos de identificação que posicionam o sujeito no mundo.

Quando perguntam “quem é você?”, a resposta expressa os códigos de identificação que te localizam perante a existência, perante o mundo, perante as demais pessoas. Começa pelo nome (indicativo de sua individualidade), passa pelo nome de família (te diferencia como parte de um primeiro agrupamento humano) e assim por diante: sua escola, sua religião, sua cidade natal e seu país são variáveis que te posicionam no mundo, impregnando sua condição existencial e, logo, sua subjetividade.  

Quanto mais códigos de identificação semelhantes, maior benevolência, afinidade e conforto. Quanto mais longe, mais fraco é o vinculo fraterno. Edgar Morin explica que desde um nível muito básico – o nível intracelular do ego computo – em que o sujeito não tem ainda a consciência de si, mas já trabalha com o código binário igual X diferente, é possível notar a existência de um código de sobrevivência em que o igual é protegido e o diferente aniquilado[1].  

 O ego cogito (o eu que pensa) também não escapa dessa lógica e ela é reproduzida nos vínculos de fraternidade. O diferente causa um certo estranhamento, por isso a cultura de viver em diversidade é tão difícil para o ser humano. O mesmo, o igual, traz uma simpatia “natural”, uma certa segurança, um certo conforto e isso influencia o julgamento. As pessoas mais inteligentes são aquelas que pensam como nós.

Oriundos da ação humana, o direito e a política não escapam desse fenômeno. Certamente a proximidade de códigos de identificação do réu com o magistrado, ainda que inconscientemente, pode gerar interpretações e decisões judiciais mais favoráveis ao réu.

No limite, o autoengano legitima – em nome de uma boa causa e fomentado por um bom argumento salvador – a ação de justiceiros que violam a lei em nome da proteção da lei.

Na política, vislumbra-se a presença de diferentes níveis de autoengano. Ele pode ser percebido na inconsciência de classe no interior do Parlamento em que as leis originadas expressam fielmente soluções para os problemas imediatos da classe social ali dominante (o que, por si só, justificaria a necessidade de maior diversidade social entre os legisladores para que a lei pudesse se aproximar de interesses comuns da coletividade).

Mais grave, no entanto, é o hiperindividualismo e o autoengano em excesso dos sujeitos que, protegidos por um partido, grupo ou classe social, extrapolam toda sua parcialidade moral e adotam posições totalitárias, crendo que sempre estão com a razão.

Não percebem o quanto se autoenganam e acreditam em vãs fabulações que confirmam sua concepção de mundo perfeito. Em nome de uma boa causa, matam e não percebem a ilicitude de seus atos. De direita ou de esquerda, esses germes levam ao autoritarismo e ao desprezo pelas conquistas civilizatórias que garantem os direitos fundamentais de todos – iguais e diferentes – à medida que não conseguem lidar com a diversidade e não suportam as tensões democráticas.

Por essa razão, ao assistir o crescimento desses germes autoritários e da intolerância nos discursos políticos, mais do que nunca é preciso serenidade e luta em prol do Estado Democrático de Direito, da Constituição que lhe serve como lei fundamental e de suas instituições. Todo debate deve estar circunscrito às regras do jogo, sem tentativas constituintes ou ditatoriais.

Se é certo que jovens democracias em países de pouca tradição democrática precisam de insistência para poder se sustentar e evitar o retrocesso, mais certo ainda é que essa é uma luta pela qual vale a pena lutar, pois sem liberdade e capacidade de ação politica, sobra muito pouco para diferenciar a humanidade dos rebanhos bovinos.


[1] MORIN, Edgar. O método 3: conhecimento do conhecimento.  Trad. Juremir Machado da Silva. 4 ed. Porto Alegre: Sulina, 2011.

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