Segunda Leitura

A crise da água é uma boa oportunidade de mudança de rumos

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

22 de março de 2015, 7h24

Spacca
Domingo, 22 de março, Dia Mundial da Água. Nós, brasileiros, não temos muito a comemorar. A crise de falta d'água que atinge a Região Sudeste pegou a todos de surpresa. Há muito falava-se dos efeitos do aquecimento global e da mudança do clima. Contudo, as opiniões dividiam-se entre os céticos, que repeliam qualquer afirmação, e os que acreditavam que isto ocorreria, mas só daqui a 30 ou 50 anos. Mas eis que, repentinamente, as chuvas cessaram.

Na capital de São Paulo, o sistema Cantareira baixou seus níveis a índices jamais vistos. No interior do estado, diversas cidades tiveram que racionar o uso da água (por exemplo, Itu). Não foi diferente em Minas Gerais, onde municípios chegaram a proibir o uso da água para lavar carros (por exemplo, Viçosa, em 10 de outubro de 2014), e em Campina Verde, onde o carnaval foi proibido.

No Rio de Janeiro, enorme parte do território passa por falta de água. O Espírito Santo não fica de fora: Cachoeiro do Itapemirim virou cartão-postal da seca; e em Graçui, desde outubro, os moradores só recebem água 12 horas por dia (Revista Época, edição de fevereiro de 2015, página 63).

Contudo, esta situação não deve ser vista como a aproximação do apocalipse. Ao contrário, deve ser encarada como uma boa oportunidade de alterarem-se procedimentos.

O aquecimento global é uma realidade. Seus efeitos, anunciados por Al Gore (A Terra em balanço – ecologia e o espírito humano, 1992), serão a elevação das águas do oceano, inundações, falta de chuvas, secas prolongadas e refugiados hídricos.

Se este é o futuro inevitável, a única coisa a ser feita é preparar-se para enfrentá-lo. De nada adiantará procurar culpados para a seca do Sudeste e seus efeitos. Mais fácil será admitir que somos todos culpados, por ação ou omissão. E doravante, conscientes dos efeitos da seca, reformularmos nossos hábitos e fiscalizarmos as ações do poder público, da agricultura e da indústria. Este é o primeiro passo.

O Poder Executivo tem que dar o exemplo. E no caso do Brasil, a partir da Agência Nacional de Águas (ANA), a quem cabe “implementar e coordenar a gestão compartilhada e integrada dos recursos hídricos e regular o acesso à água, promovendo seu uso sustentável em benefício das atuais e futuras gerações”. Apesar de sua importância, a agência reguladora não assumiu este papel e não lidera as políticas públicas na área, as quais limitam-se a ações isoladas de estados e municípios.

Os órgão estaduais de meio ambiente também têm relevante missão a cumprir. Cumpre-lhes orientar, adotar medidas práticas, como a restauração da mata ciliar em áreas rurais (Secretária do Meio Ambiente de São Paulo, Valor, de 30 de janeiro de 2015, B11) e sancionar os infratores. Por sua vez, órgãos de saneamento têm missão da máxima relevância. Por exemplo, cabe à SABESP, no Estado de São Paulo, decidir sobre a implantação de rodízio. A mesma missão têm as secretarias de recursos hídricos ou agências reguladoras estaduais.

Ao Poder Legislativo cabe editar leis adequadas aos novos tempos. Por exemplo, é preciso regular, a nível nacional, o uso da água de chuva. No Brasil, há um vazio legislativo. Depois do Código de Águas de 1934, nenhuma lei federal tratou da matéria, prevalecendo a tese de que é coisa de ninguém (res nullius).

A captação e o uso desse recurso seguem feitos indiscriminadamente e podem causar danos ambientais. Por exemplo, se colhida em grande quantidade, pode vir a prejudicar o sistema hidrológico, que dela depende para alimentar os aquíferos.

O que há são leis municipais. Em Curitiba, desde 2003, por força da Lei 10.785, os novos prédios devem ter na cobertura um local próprio para captação e armazenamento de águas pluviais.

Vejamos agora a partilha no uso das águas.

A agricultura, segundo dados da ONU, utiliza 70% da água disponível no mundo. Por tal razão, São Paulo decidiu restringir o uso de água na irrigação, afetando cerca de 3 mil produtores de hortifrúti (Valor, de 22 de janeiro de 2015, página B12). Mas, por outro lado, ela equilibra a balança comercial através da exportação. Então, o que se tem a fazer é exigir que a prática da agricultura seja feita com a mais moderna tecnologia, de modo a assegurar o mínimo de gasto de água possível.

A indústria, evidentemente, terá que adaptar-se às novas tecnologias e promover a maior economia de água possível. Óbvio que isto não é simples. Mais gastos significam preços mais altos, o que afeta a concorrência. Por outro lado, nem todos terão recursos para as modificações necessárias. Mas neste campo não há espaço para dúvidas, é fazer ou fazer. Evidentemente, as autoridades administrativas deverão dar prazo razoável para a adequação, pois nada se modifica em 15 dias.

As pessoas deverão alterar seus hábitos. A crise ora vivida impõe essa mudança. Não há mais lugar para banhos prolongados, torneiras pingando ou máquinas de alta pressão para limpar calçadas. Tais práticas devem ser apontadas quando praticadas em público, fazendo com que os autores meditem a respeito. E não só em casa, como nas repartições públicas, onde muitos pensam que ali nenhuma responsabilidade os alcança.

Abro aqui parênteses. Em 2004, na presidência do TRF-4, marquei, para um sábado à tarde, a vistoria de todas as torneiras e descargas dos dois blocos de nove andares do tribunal. Percorri acompanhado da vice-presidente Marga Tessler, do diretor-geral Ivo Barcellos e funcionários da manutenção todos os gabinetes e secretarias, corrigindo algo desregulado que estivesse a causar gasto excessivo. O objetivo foi não apenas economizar água, mas passar a mensagem às 1,2 mil pessoas que ali trabalhavam de que a economia era importante.

Vejamos, agora, outras iniciativas para enfrentar o problema.

O mau uso da água não pode, em determinados casos, ficar restrito a uma mera sanção administrativa. Por exemplo, deixar o proprietário de conectar seu imóvel às redes de abastecimento de água e de esgotamento sanitários disponíveis é uma conduta grave e rotineira. Isso gera poluição de águas, que podem ser utilizadas no abastecimento público ou no lazer da população. Da mesma forma é perfurar poço artesiano sem autorização da autoridade competente. A perfuração exige outorga do órgão competente porque, se mal feita, pode contaminar os aquíferos. Tais fatos merecem ser elevados à categoria de ilícito penal.

Para as situações de conflito, têm sido propostas ações judiciais. Penso que melhor seria que, na esfera federal, a ANA, agência reguladora da área, desse-lhes solução. Uma alternativa seria a criação de tribunais de águas, administrativos. No Estado do Colorado, nos EUA, existem sete tribunais de águas um para cada bacia hidrográfica. Na Itália há um tribunal de águas para cada região, além um tribunal superior em Roma. Na Espanha, o tribunal de águas de Valência, composto por oito juízes, todos camponeses, decide os conflitos entre vizinhos e suas decisões jamais são contestadas.

Porém, o Brasil direciona-se para a judicialização de tudo, sendo inevitável que os conflitos terminem no Judiciário, pelo que se criaram varas ambientais especializadas. Elas são 16, espalhadas pelo Brasil. Curiosamente, nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, que concentram a maior parte da população e do PIB nacional, ainda não existem varas ambientais, seja na Justiça Federal, seja na Estadual. Note-se que as ações estão ficando cada vez mais complexas. Por exemplo, em janeiro uma margem seca da represa Billings foi invadida para a construção de moradias. Este tipo de conflito exige um juiz especializado.

Como se vê, as dificuldades existem mas podem ser superadas. Cabe-nos agir para que, no futuro que se aproxima, com ciclones, inundações e secas, seja enfrentado com estratégia adequada, inteligência e perseverança. Se não for por nós, que seja por nossos descendentes, que não pediram para vir a estas paragens e que não merecem pagar pelo que seus ancestrais fizeram. 

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente eleito da "International Association for Courts Administration - IACA", com sede em Louisville (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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