Paradoxo da Corte

Um veto providencial ao novo Código de Processo Civil!

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17 de março de 2015, 10h00

O presente artigo, de um lado, visa a reafirmar um dos fundamentos dogmáticos mais importantes do processo civil de índole liberal, consistente na ideia de que nemo iudex sine actore, vale dizer, de que o processo se origina por iniciativa exclusiva da parte; e, de outro, a aplaudir o veto providencial, aposto na data de ontem, ao ensejo da sanção presidencial do novo e tão aguardado CPC (Lei 13.105/2015).

A moderna concepção publicística do processo civil não implica dilatação do poder estatal, mediante o exercício ilimitado da atividade jurisdicional, mas, sim, pressupõe a existência de um juiz, independente e imparcial, na direção dos atos processuais, seguindo normas legais predispostas, tendentes a tutelar direitos que reclamam proteção, submetidos à cognição do Poder Judiciário por exclusiva iniciativa dos respectivos titulares ou de quem é legitimado a agir em nome próprio defendendo  interesses alheios. Viceja destarte a instrumentalidade do processo como vetor institucionalizado em prol da efetivação do direito material.

Assim, firme nesse postulado, acredito que deve ser combatida qualquer tentativa de romper o paradigma da inércia da jurisdição, com a imposição de um processo de matriz autoritária, que, a pretexto de prestigiar os princípios fundamentais da duração razoável e da economia processual, vulnere o direito individual do cidadão, a exemplo, aliás, da regra — agora solenemente vetada — do artigo 333 do CPC, na redação então aprovada no Senado Federal, que regrava o disparatado incidente de coletivização da demanda individual.

É sempre importante frisar que a celeridade deve servir às partes e não ao Estado!

Nessa linha de raciocínio, numa notável palestra de Moacyr Amaral Santos, hoje adormecida, infere-se que a ampliação dos poderes do juiz, em especial, aqueles de direção do processo, de modo a assegurar o andamento rápido da causa, nada tem de autoritário, se a atuação judicial não produzir qualquer prejuízo à defesa dos litigantes. Invocando lição de Pontes de Miranda, ressaltava Amaral Santos, que a direção supõe arbítrio, porém esse arbítrio é limitado pelas regras técnicas que dispõem sobre a sucessão de atos procedimentais; ou seja, no exercício da direção do processo, o juiz poderá imprimir-lhe celeridade que se coaduna com o desenvolvimento regular das fases processuais, na conformidade da sua disciplina legal, pois, do contrário, do desrespeito da direção a esta disciplina, resultará prejuízo à defesa dos interessados. De tal modo, ampliando-se embora os poderes do juiz na direção do processo, o legislador deve condicionar o exercício destes à conformação com as normas processuais, o que redunda na negação da discricionariedade, que caracteriza o juiz autoritário. De outra parte, a ingerência e atuação do juiz na direção do processo, a dar-lhe uma alma atualizada com a doutrina publicística, tem, entretanto, que se acomodar aos princípios cardeais do processo de natureza dispositiva (Contra o processo autoritário, aula inaugural do ano letivo de 1959, Revista da Faculdade de Direito da USP, 1959, p. 222-223).    

Enfrentando esta importante temática, José Roberto dos Santos Bedaque, (Instrumentalismo e garantismo: visões opostas do fenômeno processual?,  artigo inédito), com arrimo na prestigiosa doutrina de Barbosa Moreira, escreve que a simplificação do procedimento, a instituição de instrumentos ajustados às especificidades do direito material e o aperfeiçoamento das técnicas tradicionais tendem, com efeito, a ampliar o acesso à ordem jurídica justa, uma vez que, além de imprimir maior celeridade ao meio estatal apto à solução das controvérsias, aumentam o diâmetro de efetividade da tutela jurisdicional. Estas técnicas, destinadas a conferir maior efetividade ao instrumento, “acabam por implicar a concessão de maiores poderes ao julgador na condução do processo, mas de modo nenhum comprometem a liberdade das partes quanto à determinação dos limites objetivos e subjetivos da decisão, que não pode alcançar senão aquilo que fora determinado pelos sujeitos parciais ao fixar os limites da demanda”.

Conclui-se, pois, que a atual concepção de “processo justo” não compadece qualquer resquício de discricionariedade judicial, até porque, longe de ser simplesmente “la bouche de la loi”, o juiz proativo de época moderna deve estar determinado a zelar, tanto quanto possível, pela observância, assegurada aos litigantes, do devido processo legal.

Já sob outro enfoque, à luz da comparação jurídica, tem sido muito criticada uma novidade, introduzida pelo Protocolo 14, de 2009, no âmbito da Corte Europeia dos Direitos do Homem (Tribunal de Estrasburgo), consistente no processo de “arrêt pilote” — julgamento piloto.

Provocada a Corte Europeia por um jurisdicionado, contra ofensa ao seu direito perpetrada por um dos países signatários da Convenção Europeia para a Salvaguarda dos Direitos do Homem, a demanda individual pode ser convertida em processo coletivo, destinado a examinar a matéria e condenar o Estado requerido a regulamentá-la de forma genérica, em prol de todos os cidadãos potencialmente interessados.

Anote-se que a coletivização da demanda individual fica ao exclusivo critério do Tribunal Constitucional: “l’effet collectif n’est pas organisé par les requérants, il l’est unilateralmente para la Cour” (cf. Affef  Ben Mansour, Un processus inédit: les arrêts “pilotes” de la CEDH, Les actions en justice au-delà de l’intérêt personnel (obra coletiva), Paris, Dalloz, 2014, p. 223).

Pendendo outros processos análogos, determina-se o sobrestamento destes, que ficam na expectativa do “julgamento piloto”, cuja decisão projetará eficácia em relação a todas as eventuais demandas individuais.

Em tom crítico, a doutrina estrangeira de um modo geral, tece crítica à suspensão dos processos, impedindo que a parte interessada possa influir na construção da decisão da demanda afetada, por livre escolha da Corte Europeia. Na verdade, os processos suspensos sequer serão examinados. A inexorável demora causada pelo procedimento mais complexo, nestas hipóteses, também vem apontada como fator negativo. É que, julgado procedente o pedido em relação a todos os que estiverem em situação idêntica ao autor da demanda, este deverá aguardar que o Estado réu tome providência global, muito mais ampla, custosa e demorada, do que atender à necessidade imediata de um único interessado, que cuidou de ajuizar demanda individual.  O requerente deve esperar a execução pelo Estado das medidas gerais a fim de evitar a persistência da violação.

A suspensão das demandas similares colocam os respectivos requerentes, que já esgotaram todas as vias de recursos internos, em uma situação muito desconfortável, visto que não será cumprida a garantia da duração razoável do processo. Chega-se mesmo à seguinte indagação: o prolongamento do procedimento para estes requerentes não equivale a uma ulterior violação dos direitos do requerente de ver a sua causa julgada dentro de um prazo razoável?

Esta idêntica problemática também se reflete na infeliz novidade, introduzida no apagar das luzes da tramitação legislativa do novo CPC, sob a rubrica “conversão da ação individual em ação coletiva”.

Preceituava, com efeito, o vetado art. 333: “Atendidos os pressupostos da relevância social e da dificuldade de formação do litisconsórcio, o juiz, a requerimento do Ministério Público ou da Defensoria Pública, ouvido o autor, poderá converter em coletiva a ação individual que veicule pedido que:  I – tenha alcance coletivo, em razão da tutela de bem jurídico difuso ou coletivo, assim entendidos aqueles definidos pelo art. 81, parágrafo único, incisos I e II, da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), e cuja ofensa afete, a um só tempo, as esferas jurídicas do indivíduo e da coletividade;  II – tenha por objetivo a solução de conflito de interesse relativo a uma mesma relação jurídica plurilateral, cuja solução, por sua natureza ou por disposição de lei, deva ser necessariamente uniforme, assegurando-se tratamento isonômico para todos os membros do grupo. § 1º Além do Ministério Público e da Defensoria Pública, podem requerer a conversão os legitimados referidos no art. 5º da Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985, e no art. 82 da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor).  § 2º A conversão não pode implicar a formação de processo coletivo para a tutela de direitos individuais homogêneos.  § 3º Não se admite a conversão, ainda, se:  I – já iniciada, no processo individual, a audiência de instrução e julgamento; ou II – houver processo coletivo pendente com o mesmo objeto; ou  III – o juízo não tiver competência para o processo coletivo que seria formado. § 4º Determinada a conversão, o juiz intimará o autor do requerimento para que, no prazo fixado, adite ou emende a petição inicial, para adaptá-la à tutela coletiva. § 5º Havendo aditamento ou emenda da petição inicial, o juiz determinará a intimação do réu para, querendo, manifestar-se no prazo de 15 (quinze) dias. § 6º O autor originário da ação individual atuará na condição de litisconsorte unitário do legitimado para condução do processo coletivo. § 7º O autor originário não é responsável por qualquer despesa processual decorrente da conversão do processo individual em coletivo. § 8º Após a conversão, observar-se-ão as regras do processo coletivo. § 9º A conversão poderá ocorrer mesmo que o autor tenha cumulado pedido de natureza estritamente individual, hipótese em que o processamento desse pedido dar-se-á em autos apartados. § 10. O Ministério Público deverá ser ouvido sobre o requerimento previsto no caput, salvo quando ele próprio o houver formulado”.

A análise deste longo dispositivo que quase chegou a se transformar em lei leva facilmente à crença de que contem ele flagrante inconstitucionalidade, porquanto ofensivo às garantias do devido processo legal, bem como se descortina como exemplo emblemático de processo autoritário.

Como é sabido, delineia-se invejável o nosso modelo jurídico de proteção aos direitos difusos e coletivos, investindo de legitimação ativa considerável número de sujeitos.

Considere-se outrossim que este referido “sistema processual de tutela coletiva”, que sempre se articulou de forma autônoma e independente, jamais se imiscuiu no âmbito das ações individuais.

Daí, porque totalmente inoportuna e desnecessária a ingerência que seria  instituída, no âmbito do processo civil individual, no afã de obter um julgamento que pudesse abranger maior número de interessados, em flagrante afronta ao direito do cidadão, que, confiando na Constituição Federal, procurou advogado e ajuizou demanda própria, sobre a qual sempre teve ampla disponibilidade!

Toda vez que o juiz, de ofício, transportar para as fronteiras do processo o interesse particular ou público de outrem, estranho à relação jurídica deduzida em juízo, haverá nítida deturpação do princípio da autoridade, uma vez que transforma o juiz em protagonista, não simplesmente da direção do processo, mas, sim, da própria sorte do objeto litigioso, ferindo de morte a legalidade que deve nortear a realização de todos os atos processuais.

A tal propósito, lembro que Barbosa Moreira (O futuro da justiça: alguns mitos, Temas de direito processual, 8ª s., São Paulo, Saraiva, 2004, p. 5), de forma enfática, procurou sintetizar o desejo de todos os operadores do direito e, de modo particular, dos jurisdicionados, no sentido de que a prestação jurisdicional venha a ser mais eficiente do que realmente é; no entanto, “se para torná-la melhor é preciso acelerá-la, muito bem: não, contudo, a qualquer preço”!

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