Grito de alerta

"Técnicos jurídicos" já se preparam para atuar no mercado dos EUA

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16 de março de 2015, 11h08

No verão do Hemisfério Norte, em data ainda a ser definida entre junho e agosto, uma nova classe de profissionais do Direito começará a atuar no estado de Washington, nos EUA: os “técnicos jurídicos" com licença limitada (LLLT – limited license legal technicians). Os estados da California, Oregon, Colorado e Novo México já anunciaram que vão seguir a liderança de Washington.

Os “técnicos jurídicos” irão atuar, inicialmente, em Direito da Família — divórcios, guarda de filhos, pensão alimentícia, entre outros — e, possivelmente, violência doméstica. No futuro, poderão avançar para outras áreas, como a trabalhista e a imobiliária. Mas sempre dentro da área civil. Nunca dentro da área criminal, em que a assistência jurídica é exclusiva do estado e de advogados.

Não poderão, igualmente, atuar em julgamentos. Nesse caso, demandantes e demandados farão a autodefesa, se não puderem contratar um advogado. Poderão fazer pesquisas jurídicas, preparar petições, contratos e todos os demais documentos que, até hoje, eram preparados por advogados — ou pelo próprio demandante ou demandado. E aconselhar seus clientes, tal como faz qualquer advogado.

Como as coisas chegaram a esse ponto? Os honorários dos advogados nos EUA são, relativamente, muito altos. Nem mesmo advogados recém-formados podem prestar serviços jurídicos acessíveis a maior parte da população, porque seus custos também são muito altos. Quando um advogado se forma, ele tem uma dívida de pelo menos US$ 150 mil, do financiamento do curso de Direito. E todas as demais despesas de praxe. Ele tem de arrecadar o suficiente para continuar atuando.

Um honorário básico para fazer um divórcio, por exemplo, é de US$ 255 por hora, de acordo com o jornal The Washington Post e outras publicações. Um advogado pode passar de cinco a oito horas em um tribunal, apenas no dia dedicado a uma tentativa de mediação — que ainda não é o julgamento. E mais muitas horas em reuniões com o cliente e na preparação de documentos.

Por isso, a profissão de “técnico jurídico com licença limitada” foi criada com uma missão: baratear os serviços jurídicos para milhões de americanos, para que tenham alguma assistência jurídica em processos civis, em vez de nenhuma.

De acordo com levantamentos feitos pelo Judiciário de Washington, de 80% a 90% da população de baixa renda dos EUA comparece aos tribunais sem qualquer assistência jurídica. No estado de Washington são 85%. Se a classe média for adicionada a esse panorama, 78% das pessoas envolvidas em ações civis sequer procuraram a assistência de um advogado, de acordo com um estudo de 2013.

A criação da profissão de “técnico jurídico” é um tema controverso, com o qual a comunidade jurídica não soube lidar em seu devido tempo. Na iminência dos acontecimentos, foram propostas alternativas, como a criação de organizações de assistência judiciária gratuita dentro das Faculdades de Direito. Mas essa é uma solução que ainda dá seus primeiros passos e que chegou um tanto tarde.

Os advogados americanos já haviam perdido uma luta contra empresas virtuais, como a LegalZoom, Rocket Lawyer e outras, que disponibilizam formulários jurídicos on-line, a baixo custo. Essas empresas já começaram a oferecer aconselhamento jurídico online, a preços comoditizados. Em 2012, a LegalZoom atendeu a cerca de dois milhões de “consumidores”, de acordo com as informações prestadas à Comissão de Valores Mobiliários dos EUA.

Muitos advogados ironizam a criação da profissão de “técnico jurídico”. Dizem que é uma versão jurídica da profissão de auxiliar de enfermagem ou auxiliar de dentista. Há semelhanças. O “técnico jurídico” terá de fazer um curso de um ano e fazer um estágio de 3 mil horas (cerca de 375 dias, a oito horas por dia) em um escritório de advocacia — bem parecido com a formação de auxiliar de enfermagem ou auxiliar de dentista.

Depois do estágio, o "técnico jurídico" pode abrir seu próprio escritório, sem depender de um advogado. A nova profissão está atraindo principalmente os paralegais.

No curso, “os candidatos precisam aprender Processo Civil, pesquisa jurídica, contratos e Direito de Família avançado”. No estado de Washington, 29 faculdades comunitárias (“community college”) e faculdades técnicas se candidataram a oferecer os cursos. A primeira classe, com 15 candidatos, se matriculou “no inverno de 2014”), já se formou e já está pronta para atuar “no verão” de 2015.

A seccional da American Bar Association (ABA) se opôs a criação da profissão de “técnico jurídico” desde que ela foi aprovada pelo Tribunal Superior de Washington. Alegou que o treinamento rigoroso que os advogados recebem é essencial para lidar com matérias jurídicas e proteger os melhores interesses dos clientes.

“Em vez de acesso à Justiça, tudo o que os técnicos jurídicos vão oferecer é acesso à injustiça”, disse aos jornais a ex-presidente da Seção de Direito de Família da seccional da ABA no estado, Ruth Edlund. “Só porque você é pobre, isso não significa que seus problemas jurídicos são simples”, afirmou.

Porém, há discordâncias até dentro da ABA. A diretora-executiva da ABA, Paula Littlewood, declarou: “Isso vai aliviar a aflição da população e ajudar todo o sistema a poupar tempo. É uma providência revolucionária”. Para a professora da Faculdade de Direito de Colúmbia, Risa Kaufman, “o país vive uma crise jurídica, que pode ser aliviada por essa medida”.

Na teoria, os programas de assistência judiciária gratuita deveriam estar disponíveis a todas as pessoas que não podem contratar um advogado. No entanto, a “Legal Services Corporation”, a organização que financia as provedoras de serviços de assistência judiciária gratuita, não tem verbas para sustentar o programa. De 2010 a 2013, por exemplo, o Congresso dos EUA cortou US$ 80 milhões de seu orçamento. Mais de 1.200 advogados perderam seus empregos.

A comunidade jurídica americana sabe que a autodefesa, a advocacia por venda de formulários on-line e, agora, a atuação de “técnicos jurídicos” é “uma desgraça”, segundo definem, para a população e para a Justiça. No entanto, não fizeram, como classe profissional, um esforço suficiente para impedir o que veem como um “despautério”. Talvez isso sirva de exemplo a seus colegas em outros países.

A próxima perda para os ideais da advocacia, nos EUA, já é uma crônica anunciada: a permissão para não advogados se tornarem sócios dos escritórios de advocacia, como já sucede na Inglaterra e na Austrália — e obrigar os sócios a prestar contas a seus acionistas, não a seus clientes.

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